AS TRÊS ÚLTIMAS NOITES

Lorenzo estava tendo uma péssima noite. Acordava de tempos em tempos, tentava ajeitar o travesseiro, cobria-se, descobria-se, levantava, ia ao banheiro, pegava um copo d’água, tirava as meias, colocava as meias, ficava de lado, de bruços, mas não conseguia adormecer. Ao longo de toda aquela noite foram raros os momentos que chegou a cochilar. Sono mesmo, que é bom, nada. Bastava um sobressalto, um zumbido na tevê, um carro passar na rua que ele tornava a acordar.

Por volta das 3 horas da manhã, estalou os olhos de vez. Estava deitado de lado e viu o rádio-relógio marcando, com uma luz vermelha que refletia na parede, o horário. Lorenzo desistiu de dormir, procurou o botão que ligava o abajur, que ficava sobre a mesinha de cabeceira, e ligo-o. Sentou-se à cama, com as cobertas cobrindo-lhe apenas as pernas, e só então reparou na mulher, placidamente acomodada em uma cadeira do outro lado do quarto.

Ela mantinha-se calada, serena, concentrada. Tinha longos cabelos louros, pele clara e vestia um vestido leve – apesar do frio que fazia àquela hora – com estampa de flores amarelas, que descia até seus tornozelos. Lorenzo, por incrível que pareça, não se assustou em nenhum momento, apenas a olhava com curiosidade. É estranho dizer, mas era como se a esperasse. A moça também o observava, e aparentava estar ali já há algum tempo. Enquanto olhava para Lorenzo, ela inclinava a cabeça de um lado para o outro com se tentando decifrar também o que ele estava pensando.

- Olá! Quem é você? – Perguntou Lorenzo sentindo que não se surpreenderia com a resposta.

- Você sabe muito bem quem eu sou. – Ela respondeu calmamente, olhando-o fixamente.

- Desculpe-me, moça, mas eu confesso que não a conheço, apesar de você me ser estranhamente familiar.

- Obviamente que lhe sou familiar, pois foi você quem me criou. – Disse a moça sem parecer estar fazendo uma grande revelação.

- Como, assim, eu a criei? - Lorenzo estava confuso e ansioso para ver aonde aquilo chegaria.

- Exatamente o que ouviu. Você me criou, e depois matou.

- Matei?! – Lorenzo inclinava a cabeça de lado a lado, tal qual a moça fizera segundos antes, buscando uma resposta.

- Sim, matou. Na página 243 do seu segundo livro.

Lorenzo era escritor. Contudo, não era conhecido por este nome; seu pseudônimo era Joaquim Machado. Ele mudara por considerar Lorenzo Piola Ribeiro – nascido de mãe italiana e pai alagoano – pouco vendável. Mas, ao que parece, nem essa mudança ajudou-o comercialmente. Até a noite em questão, Lorenzo publicara cinco livros, mas nenhum com boas vendagens. O segundo livro que Lorenzo havia escrito – o qual se referia a moça no quarto – chamava-se ‘No Rastro de Valentina’. Um suspense policial, daqueles encontrados em rodoviárias de beira de estrada, cujas capas beiravam o cúmulo da cafonice, e que não vendera praticamente nenhum exemplar. O protagonista do livro era um experiente policial que investigava o desaparecimento de Valentina, uma jovem florista, de cabelos louros e pele muito clara. Um amontoado de clichês que não serviriam nem para folhetins televisivos. O fracasso da obra quase selou a carreira de Lorenzo e deixou-o por um bom tempo em maus lençóis perante seus editores. As três obras seguintes do escritor foram tão ruins quanto ‘No Rastro de Valentina’, mas ele insistia na esperança de um dia ser reconhecido. Agora, após o quinto livro e com a não-renovação do contrato com a editora, já havia algum tempo que Lorenzo não escrevia, não encontrava inspiração.

- Página 243 do meu liv... Valentina, é você? – Lorenzo tentava entender o que se passava, se sonhava, se enlouquecia, se, talvez, realidade fosse, enfim, o que acontecia naquela confusa situação.

- Sim, sou a sua Valentina – ela respondeu sem mudar em nada a fisionomia. Sem o menor vislumbre de sorriso.

O estranho era que Lorenzo não ficara assustado, nem, por mais que a lógica o obrigasse a transpassar tais pensamentos, não sentia estar sonhando, muito menos achava estar louco. Era como se, no fundo, ele estivesse realmente aceitando o que via à sua frente, sob a luz do abajur.

- Mas como pode ser isso? E por que você está aqui? - Lorenzo tentava compreender.

- O “como pode ser” não vem ao caso. Agora, quanto ao porquê, nós podemos... melhor, nós iremos falar. – Valentina tinha uma voz suave, quase hipnotizante. - Eu vim pedir para que você me traga à vida novamente, Lorenzo.

- Vida? Mas do que você está falando? Isso é impossível, Valentina, você é uma personagem, fruto da minha mente, da minha imaginação. Vive nela e nas retinas daqueles que a leram... que foram poucos, admito; mas só. – O escritor, apesar da estranheza com a situação, buscava falar calmamente, quase que de maneira didática, tentando explicar à moça, e a si mesmo, o que se passava.

- Eu sei disso. Compreendo perfeitamente, afinal, não é porque sou uma personagem que sou burra, Lorenzo.

- Desculpe-me.

- É difícil explicar, mas eu preciso voltar. Preciso sentir a sensação novamente... – Valentina falava ao olhar para as próprias mãos, para os cotovelos, para os braços enquanto os girava entorno dos próprios eixos, enfim, todo o corpo, sentindo-se, observando-se, estudando-se como se estivesse ali sozinha, divagando.

- Eu compreendo que deve ser difícil para você, Valentina, mas eu não posso, simplesmente, fazê-la voltar à vida. Ninguém pode fazer ninguém voltar à vida. Assim são as regras, eu suspeito.

- Pode sim! - Valentina gritou e logo retomou o tom cordial. - Basta reescrever o livro, mudando o destino que nele me coube.

“Mas que diabos eu estou fazendo? Falando, às 3 horas da manhã, com uma de minhas personagens, que me aparece sentada na cadeira do meu quarto? Só posso estar ficando maluco!”, pensava, inquieto, Lorenzo. Contudo, apesar da estranheza, algo o impulsionava a continuar aquele – no mínimo – curioso diálogo.

- Não posso, Valentina, mesmo que quisesse. O livro não vendeu quase nada, meus editores jamais bancariam outra edição. Sem falar que uma nova edição, com um final diferente, é loucura.

- Então faça outro, com outro nome, e me coloque nele, não me importo! - Valentina subiu a voz novamente, em tom de ordem.

- Mas, mesmo que eu o faça, mesmo que crie uma Valentina protagonista, com seus mesmos traços e características, não será você. Será outra. Você morreu e ninguém volta da morte, Valentina, mesmo que seja personagem.

- Não seja ridículo, Lorenzo! Mais ainda: não seja covarde. É por isso que não faz sucesso, porque és covarde. Tem medo de arriscar. Medo do ridículo, do que vão pensar de você se arriscar. Teme voar, Lorenzo. – Valentina destilava toda sorte de críticas para seu escritor.

- Você pode estar certa, sabia...

- É óbvio que estou certa. E quer maior prova disso do que eu estar aqui. Se o seu quarto, se esta cadeira e os seus olhos aceitam o fato de eu estar aqui, por que um papel não o faria?

- Pois estou me perguntando tudo isso desde que te vi.

- Se não pode explicar o fato de eu estar aqui, falando com você, se a lógica está sendo superada neste exato momento, como pode me dizer que não há como me trazer de volta à vida em outro livro seu? – Valentina tentava colocá-lo contra a parede.

- Não posso explicar, realmente. Mas uma coisa a lógica me diz: se, mesmo estando sentada nesta cadeira, contra toda a lógica, ainda precisa pedir pela própria vida a mim, o homem que a tirou em texto, é porque este poder só eu tenho. Assim, como foi em sua criação e morte, na ressurreição você também me pertence.

Neste instante, a luz do abajur enfraqueceu-se deixando o quarto em uma penumbra que entregava a todas as sombras ares ameaçadores. Coberto por essa escuridão, Lorenzo piscou e perdeu Valentina de vista. O escritor, então, esfregou os olhos, passou a mão pelo rosto, áspero por sua barba grisalha, e desalinhou os cabelos num gesto de ansiedade. Levantou-se e acendeu a luz do quarto que, à exceção dos móveis e do próprio Lorenzo, estava vazio. “Que loucura”, suspirou e voltou-se a deitar.

Lorenzo teve um resto de noite e início de dia péssimos, só pensando no encontro que teve com Valentina. Praticamente não conseguiu tomar seu café da manhã e mal tocou no almoço – uma marmita que comprava diariamente na lanchonete que ficava em frente a seu prédio. À tarde, passou todo o tempo deitado vendo tevê ou tentando ler – mas as letras mal entravam em sua mente e já se embaralhavam, perdendo-se nos meandros de seus pensamentos, tamanha era a dispersão em que ele se encontrava. Algumas vezes, Lorenzo foi ao computador. Teclava meia-dúzia de palavras e, em seguida, as deletava. “Como é que eu vou revivê-la simplesmente trazendo-a de volta a meus textos? Isso é loucura”, questionava-se. Toda aquela história o inquietava. “Por que ela apareceu? Como ela apareceu? Serei eu? Será verdade? Voltará? Estará em minha cabeça?” Mas, mesmo com tantas perguntas, nenhuma resposta. E nada escrevia, repetindo a rotina dos últimos meses. Quando a noite chegou, deitou-se na ansiedade do que o esperava. Valentina apareceria novamente ou não? Ou ele ficaria entre o acordar e o dormir, esperando-a, sonhando ou tendo pesadelos com sua inusitada visitante que jamais voltaria?

A noite de Lorenzo foi outra vez teimosa e insone. A tal ponto que o escritor fez algo que procurava evitar: tomou remédios para dormir. No início, parecia que surtiriam efeito. Porém, logo aquela angústia da noite anterior voltou. Lorenzo virou-se de lado e olhou para o rádio-relógio: 2h58. Suspirou, acendeu o abajur e lá estava ela. Como na noite anterior, Lorenzo não se assustou, pois, no fundo, a esperava. Mas, apesar de não se assustar, surpreendeu-se. Em pé, ao lado de Valentina, encontrava-se um menino.

- Quem é esse agora? - Lorenzo perguntou à Valentina enquanto refazia o seu peculiar inclinar de cabeça, lado a lado.

- Este é Mariano. - Ela respondeu já sabendo que Lorenzo sabia de quem falava.

- Mariano, é? O garoto que morreu por trabalhar para traficantes de uma favela, no meu terceiro livro. – Lorenzo descreveu-o enquanto examinava o garoto de cima a baixo.

- Ele mesmo. Você matou-o na décima quinta página, lembra? - Disse Valentina enquanto balançava a cabeça negativamente, reprovando Lorenzo.

- Vai me dizer que agora você virou defensora pública de personagens de além-túmulo? Vai ganhar muito dinheiro, pois, creio, deve haver poucos profissionais atuando neste ramo. – Lorenzo, talvez por estar acostumando-se com a situação ou por estar de vez insano, tornava-se irônico.

- Não seja insolente, Lorenzo - retrucou Valentina -, que coisa feia! Esse jovem não chegou sequer à puberdade e não merece esse tipo de tratamento. Ainda mais vindo de você.

- Óbvio que não, Valentina – Lorenzo decidira entrar de vez no jogo -, e muito menos passou pela infância, pois ele foi concebido, por mim, já com onze anos de idade. – O escritor sorria enquanto falava. – Será um fato a ser estudado pela medicina? Não, pois foi assim porque eu decidi que seria, que ele entraria e sairia da história quando eu bem entendesse.

- Não percebes que nós temos sentimentos? - Valentina disparava os olhos ardendo em raiva na direção de Lorenzo. Mariano, enquanto isso, nada dizia e mantinha-se de cabeça baixa.

- Ora, se têm é porque eu os dei a vocês! - Lorenzo parecia cada vez mais confortável e dono da situação. - Se dizes que eu lhes criei e lhes tirei a vida, é sinal que lhes dei tudo mais; e também sinal de que posso fazer com vocês o que bem entender. E, neste caso, se assim eu quiser, mantê-los exatamente como estão: mortos.

O garoto começou a chorar baixinho e Valentina acolheu-o no colo. Enquanto acariciava os cabelos do menino, olhava de lado, espumando de raiva, para Lorenzo, que continuava a estampar um sorriso vitorioso no rosto. Mas ela sabia que a conversa não havia se encerrado ali.

Após a troca de farpas, a luz caiu e Valentina foi embora novamente – levando Mariano consigo. Lorenzo, então, pela primeira vez em meses, dormiu sem dificuldade. Acordou bem humorado e passou horas cantarolando. Algo havia mudado em Lorenzo depois daquela segunda conversa. O homem que até então vivia angustiado, com insônias terríveis e dias lerdos e improdutíveis, mudara de alguma forma. Ao que parece, todas as dúvidas que pairavam sobre Lorenzo haviam se dissipado. “Meus personagens vindo me visitar? Isso é extraordinário! Que escritor já viveu tamanha alegria? Que escritor já se deparou com a materialização de seu intelecto, de seu talento, de seu poder?”, Lorenzo exultava. “Sou um gênio, só pode ser. Que escritor tem o dom de dar vida, na acepção da palavra, a seus personagens? Que homem consegue fazer com que suas fantasias respirem, inspirem e transpirem?”, pensava Lorenzo, crente de ter conquistado, a partir do aparecimento de Valentina, a certeza de sua capacidade, de seu dom. A certeza de que eram os críticos e os leitores que eram os equivocados. Lorenzo, enfim, sentia a confiança invadir-lhe e bradava a convicção de que aqueles que o ignoraram perceberiam os erros terríveis de julgamento e o inferno em que o haviam jogado; e pagariam caro por isso.

Chegara a terceira noite. Lorenzo, dessa vez, ao contrário de todas as outras noites, não queria dormir. Faria de tudo para manter-se acordado, esperando Valentina e seus personagens. “Quem virá esta noite?”, tentava adivinhar, ansioso. As horas demoraram a passar, o que custou a Lorenzo uma garrafa inteira de café e muitas idas ao banheiro. Próximo às 3 horas da manhã, ele posicionou-se. Apagou a luz do quarto, acendeu o abajur e sentou-se à cama na mesma posição das noites anteriores – não queria que uma mudança de rotina impedisse de alguma forma as aparições. O fato é que Valentina não tardou a aparecer. Dessa vez, a seu lado, apareceu outra mulher, mais velha, cuja aparência a desenhava entre 65 e 70 anos. Tinha cabelos castanhos, mas com os grisalhos já lhes consumindo, e usava um vestido de época.

- Boa-noite, Valentina! - saudou Lorenzo com um ar de superioridade que não tinha nas duas noites anteriores. A superioridade que só é estimulada pela autoconfiança.

- Boa-noite, Lorenzo. Esperava-me pelo visto.

- Sim. Quem é a sua acompanhante esta noite? Não me lembro dela.

- Esta é Guiomar.

- Guiomar? Ora, mas nunca escrevi nenhuma Guiomar. - Estranhou Lorenzo.

- Já sim. Ela era a avó de Catarina, em seu quarto livro. - Valentina explicava a situação a Lorenzo enquanto olhava para Guiomar, que nada falava.

- Ah, sim, agora me lembro - Lorenzo assentiu com a cabeça -, mas ela só aparecia nas lembranças de Catarina, não era uma personagem propriamente dita.

- Pois é, apenas uma lembrança... – O comentário de Valentina tinha um quê de lamentação.

- Ora, por favor, Valentina, me poupe! Vai me dizer agora que está com pena até de lembranças? Já disse, Guiomar só serviu no livro para descrever aos leitores as raízes de Catarina, nada mais. - Lorenzo interrompeu abruptamente Valentina.

Então, a luz do abajur diminuiu e tornou a subir. Guiomar, como é peculiar às lembranças, havia sumido. Mas Valentina não. Ela percebera a mudança no tom e no comportamento de Lorenzo. Sentia a soberba que lhe acometia e estava certa de que ele não a levava a sério. Valentina acreditara que Guiomar poderia ser o golpe definitivo, aquele que amoleceria de alguma forma o coração de Lorenzo. Mas estava enganada. Equivocou-se ao tentar fazer Lorenzo perceber a singela relação entre uma vida e uma mera lembrança. Valentina, no fundo, também se sentia uma simples lembrança. Uma lembrança que já fora lida, por poucos, não importa, mas que sentira o calor da vida de algum jeito, ao ser tateada por mãos cálidas e por olhos ávidos de histórias... sua história. Ela só queria sua vida – independente dos moldes que tinha – de volta. Mas antes que ela pudesse explicar tudo isso, Lorenzo retomou seu discurso.

- Muito bem, Valentina, no fim das contas, eu é que preciso lhe agradecer. Sabe, o seu aparecimento trouxe novamente a mim a esperança. Vê-la aqui, neste quarto, me deu a certeza de que meus personagens são mais sólidos do que eu imaginava e que, sendo assim, posso retomar minha escrita.

- Mas não foi para isso que eu vim...

- Sim, eu sei que você veio com esse papo de tornar a vida e blá-blá, mas nós dois sabemos que isso não acontecerá. Preciso de coisas novas, não retornarei a histórias passadas. Enfim, apesar do bem que, mesmo inconscientemente, você me fez, creio que está na hora de pararmos com essas conversas, elas já resultaram no que deviam: a minha recuperação.

- Eu não acredito! Você é o homem mais egoísta que deve existir.

- Pense o que quiser, eu a perdoo por tamanha insolência com seu criador.

- Você é patético.

- Bom, acabou, gostaria que se retirasse. Preciso de uma boa noite de sono. Amanhã retomarei minhas atividades e escreverei o mais espetacular livro que já se viu.

- Não, Lorenzo, você não vai retomar nada.

- Do que é que você está falando?

- Eu tentei, confesso que tentei. Ultrapassei barreiras com as quais você não pode imaginar para vir até aqui. Eu só queria que o seu coração percebesse o mal que havia feito a nós. Quase implorei para que me trouxesse à vida novamente, Lorenzo. Não tens idéia do que é ter a vida abreviada e sempre repetida nas mesmas páginas amareladas.

- Não seja tola! Não entende que é exatamente para isso que você estava lá? Morrer era o seu papel, e o papel principal da trama. Queres mais do que isso? É o ápice para um personagem: ser tão importante que seu nome aparece estrelado até no título da obra.

- Isso de nada me serve. No teatro, quando o personagem morre, o ator continua com em cena. Meu único papel, ao contrário, sempre foi o de personagem. E aí está a injustiça. Queria a vida que está além. E, sabendo não ser isso possível, apenas lhe pedi que me devolvesse a única vida que poderia, e que sempre tive: a da repetição, mas com novo fim, no mesmo ou noutro livro, não importaria.

- Bom, desculpe, mas eu não posso fazer nada quanto a isso. – Finaliza Lorenzo, olhando para baixo num penitenciar fingido.

- Pois, muito bem, se não posso ter o que eu quero, você também não terás. – Valentina avisa, como se decretasse naquele momento uma sentença.

Quando Lorenzo ergue a cabeça e volta os olhos para Valentina, vê a seu lado um homem. Ele é alto, de aspecto cansado, tronco curvado e com uma barba grisalha por fazer. A direção da luz do abajur dificulta a visibilidade, mas Lorenzo parece conhecer o homem.

- E agora, Valentina, qual é a sua última cartada? Quem é esse aí? - Pergunta Lorenzo, já cansado daquilo tudo.

- Este é Joaquim Machado.

- Joaquim Machad... Como assim, Joaquim Machado? Joaquim Machado sou eu, esse é o meu pseudônimo.

- Exatamente, Lorenzo, seu pseudônimo... Seu personagem.

- O que você pensa que está fazendo, eu não estou morto, que papo é esse?

- Você não, Lorenzo, mas Joaquim Machado já não escreve há tempos. E para um escritor, isso é a morte. E se Joaquim Machado é uma criação sua, um personagem criado a fim de dar vazão às suas vontades, vive em meu mundo. É você quem escreve, eu sei, mas ele é o autor, ou seja, essa é a função que você deu a seu personagem.

- Mas que papo é esse... – Lorenzo, pela primeira vez naquela noite, vacila.

- Você não acreditava em seu próprio nome, no seu próprio talento, e o criou para ser seu escudo, assim como criou a mim, a Mariano ou a Guiomar. Tudo fruto de sua mente, da sua imaginação.

- Mas que maluquice!

- Concordo – Valentina mantinha-se séria, pois se entristecera por não conseguir seu intento. No fim, seu criador a decepcionara, a machucara ainda mais. Mesmo assim, ela não parecia feliz por aquilo que faria em seguida.

- Despeça-se, Lorenzo – Valentina pede, enquanto inclina a cabeça, agora em despedida -, é chegado o momento de partirmos. Adeus!

- Espere! – Lorenzo grita, em vão.

A luz do quarto apaga-se por um segundo e, em seguida, acende-se sozinha. Valentina sumiu, levando consigo o homem que a pouco se postava em pé a seu lado. Ela nunca mais apareceu para Lorenzo. Nem Mariano, nem Guiomar e muito menos Joaquim Machado.