Onde medre o escuro
... mas não se nos permitira escolher, e não o pensáramos muito. Os dias impostos eram frios e chuvosos e mutilaram-se tristemente. Davam náuseas aquelas comidas caladas, odiávamos até o legado de uns rasgos afortunados - nada fizéramos -, e a implacável opressão de um rosto de outro no espelho. Tudo o que nos rodeava era incessante fonte de discórdia. O mundo não tinha ordem, nem lhe encontrávamos sentido. Do registo de rumos que se nos consentiu sondar, detestamos a maior parte com desprezo, medo, ou indiferença. Perguntávamo-nos se pagava a pena trazer à vida a alguém que não se podia atender, a um viver sem viver entre tanto desamparo; ou para que tanto caminhar, tanto viajar sem nunca arribar a algures. Contudo, não aceitávamos a morte, mais bem a desaparição, ainda que não duma maneira qualquer: desejávamos esvaecermo-nos pela porta traseira sem sermos pressentidos. E do amor, nem falar, nem de beijos, nem carinhos, tão só más caras, rostos e olhares retorcidos, berros e ameaças de primeiro e único prato, sempre intimidados. O contentamento só de quando em quando, com o ar fresco de certas visitas, ainda que naquela casa jamais houvera anfitriões. Do amor à leitura afastava-nos o excesso de imaginação, e a rara ausência de livros, bons leitores, e tempo relaxado. Daquela clausura só se ansiava fugir. Queríamos um lar sem parentes, um bairro sem a vizinhança, um instituto sem professorado; sobrevivermos como pudéssemos entre a guerra de dentro e a de fora, sem trincheiras nem tréguas, sem amigos. Quiséramos acabar com pais, mães, e avôs, ainda que apenas víssemos ao pai, nem fizéssemos caso dos avôs. Nenhum de nós tinha a solução, mas não desejava tampouco a vontade de outros; insubmissos sem causa, não queríamos o sacrifício próprio sem importar o do irmão. Expiávamos culpas de alheias e ignoradas ilusões. Não havia auxílio possível, tudo ser vivo era rival. A nostalgia nunca visitara nosso peito: nada tivéramos, nada perdêramos, nunca, nem sequer a nós. De pedra, porém, parecia o coração. Entretanto a chuva seguia a cair, como os anos, como a vida, a pingar sobre todas as coisas e cada um; pese a que muitas já morreram, as estrelas ainda não se tinham apagado nem esfriado, pois, cabeças agachadas, jamais brilharam para nós. Ia sendo hora de tomar alguma decisão. Sem duvidá-lo, um, o maior, rebelando-se, escapou, pelejou, enquanto o pequeno, sempre retraído, sem mostrar nunca afecto algum, calculador, frio, fechou os ouvidos, a boca, e até o coração. Calou. Aguardou. Desenhando com giz invisível um círculo ao redor, não permitiu que ninguém irrompesse dentro. Mas, passado o tempo, houve de reconstruir a questão uma vez mais. Pois como bem dissera o filósofo, uma coisa é o que fizeram de nós, e outra bem distinta o que nós fizemos com o que fizeram de nós. Tínhamos então a oportunidade de soltar o lastro com o que nos carregaram, iniciar uma singradura alternativa à que parecíamos fatalmente condenados. Foi o momento da palavra não; no meio de gagueiras, avanços e retrocessos, cambaleando, sem as muletas da mãe nem o irmão maior, foi acometida a implacável missão de romper amarras: estou só, disseste; na vida, há distâncias, acrescentaste, são insuperáveis. No entanto, ainda perplexo, continuaste a cegas: rumo ao desconhecido, por um mar de dúvidas - inabarcável. Começaste assim a desconfiar de todo o material com o que estavas construído; tanto do corpo como do espírito, tirando todos os trapos sujos da alma para os lavares e, de seguido, tenderes ao vento sobre a fresca erva. Muitas foram as peças estragadas, e tantas outras as prendas que te vestiram que já não reconhecias: algumas, minguadas após o lavado, foram abandonadas; outras, demasiado grandes para toda aquela vacilação, decidiste devolvê-las aos que com tanto desprendimento como alívio as doaram todinhas para ti: as grandes esperanças, todas as melhores expectativas, os brilhantes porvires sustentados nos piores fracassos, todos, postos em ti. Quanta carga. Vaia fardo insustentável. Olhaste, então, em redor, e não viste nada. O mundo era tão estranho. A gente, tão alheia, aferrando-se como plantas com desespero à rocha da que o vento as há de arrancar. Entanto tu, sobre areias sempre, te sentes sem raízes no teu desapego. Mas ainda como bicho diminuto a assomar a cabeça com um receio e uma teima inusitada. Demasiada desconfiança e retraimento, demasiado retorcido e secreto, te disseram, era ridículo, e mesquinho. Logo voltaria aquele do que te afastaras, restava pouco tempo para se cumprir o prazo da emigração. Vinte anos foram nada, não sabias ainda onde havias desaparecer. Longe dele, isso estava claro; continuando com a distância, e sem pontes, porque Perto está, E difícil de prender, o deus. Mas onde há perigo, cresce Também o que salva. No escuro moram As águias, e intrépidas vão As filhas dos Alpes sobre o abismo Por pontes de construção leve e fácil. Por isso, porque em volta se apinham Os cumes do tempo, e os queridos Vivem perto, esmorecendo Em montes que tornam a distância infinita, porque longe estás, no escuro morando, não águia, rato, por pontes não construídas senão, um dia já bem distante, sonhadas, pontes que unam montes, que juntem tempos, impossíveis, tornando a proximidade infinita, e aterradora, oh! por isso mesmo Dá-nos, água inocente, Oh dá-nos asas, pra voar pra lá De ânimo fidelíssimo e voltar de novo, e voltar nunca e nunca voltar empreendendo o caminho de regresso a nenhures, mas jamais para nós, para um, para ti. E como poder fazê-lo? E como, com algo alcançado?...