A HERANÇA DOS PIGAGE

A herança dos Pigage

Um conto de José Alberto Lopes – 2006

Depois de completar 23 anos de idade, Caroline Pigage passou a manter hábitos noturnos nos finais de semana. Algo não muito recomendável a uma jovem de classe naquela época. Ela relutava, mas quando dava por si já estava lá com um estranho propósito. Era como se tivesse dupla personalidade.

A noite estava clara e Caroline Pigage, encostada no balcão de um luxuoso bar, procurava um homem que lhe satisfizesse, não somente os seus caprichos carnais, mas, principalmente um instinto desagregador e maquiavélico que ela acreditava ser um fadário que vinha de um passado remoto em sua família. Para tanto, seria preciso que esse homem fosse casado, tendo constituído uma família com bases bem sólidas. Sua tarefa não era das mais fáceis, pois a maioria dos homens comprometidos escondiam o próprio estado civil, dando conta que eram solteiros.

Caroline trabalhava como secretária de alto nível numa empresa que ficava numa cidade vizinha de onde morava. Um ótimo emprego e invejável salário. Falava três idiomas. Estava de férias.

Entre alguns goles de Martini branco, avistou um belo jovem que acabara de entrar. Pelos cálculos regulava com a sua idade. Estava sentado à sua esquerda quase na ponta do balcão. Caroline por sua beleza despertava desejos em qualquer homem e inveja em quase todas as mulheres. Havia algo de especial no olhar da jovem, que ao mesmo tempo em que seduzia, encabulava a maioria dos seus pretendentes.

Naquele ambiente enfumaçado o olhar do rapaz flagra de passagem aquele par de olhos verdes e luzentes de Caroline lançando-lhe faíscas de desejos. Trocam sorrisos e saem para a sacada do bar para respirarem um ar mais puro e conversar. Passa em meio às muitas mesas aquele homem desfilando o seu perfil grego, conduzindo uma jovem com ares de Frinéia... Os dois são seguidos por dezenas de olhares desejosos e densos de inveja.

- Boa noite! Meu nome é René Perraut, vem sempre por aqui?

- Olá, boa noite! Sou Caroline Pigage, venho aqui quando me sinto só, aliás, pode me chamar de Caroline.

- Prazer Caroline, seu nome é encantador!

- Obrigado, o prazer é meu também. Completou a moça.

Aquele olhar cativara o rapaz, ao mesmo tempo em que algo diferente se passava na alma de Caroline, era algo indescritível, jamais sentira antes...

-Você mora com seus pais? Parece-me que não é casada, perguntou o rapaz.

-Não! Não sou casada, mas o que faz um homem casado aqui, sozinho?

- Mas eu não sou casado... Não! Veja, é só um anel de formatura, um pouco parecido não? Na verdade estou separado há dois anos.

-Verdade? Perguntou-lhe a moça com um sorriso esfuziante constatando que era mesmo de formatura o tal anel.

- Sim, claro! Juro! Mas vamos andar um pouco? A lua sobre Cherbourg está muito bonita hoje.

-E o que faz nesta cidade?

-Venho com uma carta de recomendação para uma vaga na ferrovia, sou engenheiro mecânico...

Caroline tinha certeza, intuição de mulher, que sentia algo muito mais forte e profundo pelo rapaz, algo que transcendia o seu próprio desejo inicial, mesmo quando no princípio achava que René fosse um homem casado. Caminhavam juntos pela avenida, Caroline estava muito absorta de tanta felicidade.

De súbito, olhando para o relógio, disse o rapaz:

- Nossa! Passam das 23 horas e tenho que me apresentar amanhã bem cedo na companhia, infelizmente preciso ir, mas gostaria de um novo encontro com você amanhã à noite em outro lugar?

- Eu entendo, se bem que mais meia hora comigo não iria lhe arrancar pedaços não é?

- Lamento, porém amanhã terei todo o tempo que você desejar, prometo!

- Tudo bem, eu só estava brincando nos encontramos amanhã às 20 horas em frente ao cine Milenium aqui na avenida central, cine Milenium viu? Reforçou Caroline, ante ao olhar embasbacado do rapaz.

- Sim combinado, 20 horas. Repetiu o rapaz.

Caminham mais alguns passos, e ela diz que ali se separariam e se despedem com um leve toque nas faces. Porém, era inevitável segurar o calor do desejo que aflorava naqueles dois. Então, dois lábios se fundem num breve, porém incandescente beijo. Caroline amedrontada consegue desvencilhar-se saindo correndo por aquelas ruas banhadas de luar.

- Oi! O que aconteceu? volte nos encontramos amanhã? E antes que René terminasse, Caroline já havia dobrado a esquina rumo de onde morava.

O rapaz chegou ao hotel onde se instalara pensando muito em Caroline, e estava transbordando de felicidades, pois rompera um casamento beligerante que durara havia mais de três anos, saíra o desquite afinal, e na presença da jovem sentia-se confortável. Por outro lado Caroline não conseguia dormir, agora sentia que não mais estava se apaixonando, tinha certeza que se apaixonara definitivamente e isso lhe causava felicidade e ao mesmo tempo um turbilhão de coisas em sua mente. Sua cabeça marinhava.

No dia seguinte contando os minutos, René lá estava como combinado. Fora bem sucedido na entrevista e com o emprego nas mãos a sua felicidade dobrara! Ficaria em Cherbourg.

Por fim, 20 horas e Caroline apareceu com a precisão de um legítimo Cartier. Estava exuberante como na noite passada. Uma princesa! Beijaram-se rapidamente e num leve sorriso de cumplicidade concordaram em ir para um lugar bem tranquilo. O taxi chegou ao destino em cinco minutos, era perto o local.

Lá, dois corações que pareciam feitos um para o outro. E nem bem vinte e quatro horas haviam se conhecido, já eram tantos os desejos represados, que os diques não suportando, inundaram aquele ambiente de intensos momentos.... Cada ato, cada movimento, os transformavam em insanas criaturas. Davam-se um ao outro, como ovelhas ao tosquiador... Naquela noite, não conheceram limites, mas depois, o cansaço os vencera e desfalecidos adormeceram entrelaçados.

Batiam três horas da manhã quando René acordou num sobressalto. Tudo estava mergulhado num profundo silêncio que dava para ouvir a suave respiração de Caroline. Mais tarde depois do banho, tomaram um café, conversaram um pouco mais e por fim deixaram aquele lugar. Nas ruas as pessoas já saiam para o trabalho.

O amor entre os dois foi tanto, tanto, que logo já estavam casados e viviam uma vida a três: René, Caroline e Laura, filha do casal. Viviam muito felizes e Laura, à medida que se tornava adolescente, adquiria cada vez mais os traços da mãe, quando esta era mais jovem.

Laura foi estudar em Paris e o tempo passou, passou. E passou tão rapidamente que logo estavam a completar as bodas de prata.

Resolveram então comemorá-la naquele mesmo lugar da primeira vez. Seguiram todo um ritual, desde o horário, um taxi da mesma cor e por fim, a mesma suíte, agora já mais moderna, mas parecia ainda guardar em suas paredes atrás da nova cor azul, a energia de tudo o que ali viveram um dia.

Quis talvez o destino que justamente ali naquele local, Caroline revelasse a René uma história guardada há muito tempo. Embora receosa da reação do rapaz, ela toma pulso e lhe conta uma breve história.

- Olha querido! Você não precisa acreditar no que eu tenho pra contar, eu bem que poderia poupá-lo disso, mas é algo que me atormenta há muito tempo, nem sei se o momento é propício...

- Sem problemas querida! , pode dizer, satisfaça a sua vontade, sou todo ouvido.

Caroline então narra uma história bizarra. Dizia ser bisneta de um conde, o Conde Pigage, um homem muito rico e poderoso que viveu até o início do século XX. Diziam que ele possuía hábitos estranhos e que construíra a sua reputação, no campo da obscuridade. Era membro de uma irmandade secreta considerada por muitos, satânica. Conta que foi envenenado pela própria esposa a mando do irmão mais novo, Ferdinand Pigage que ao final roubou-lhe a mulher e toda a fortuna que tinha. Porém, antes do último suspiro, o conde amaldiçoou as gerações futuras dos Pigage. Uma espécie de testamento maldito. As mulheres descendentes seriam incumbidas de seduzirem homens casados, fazendo desmoronar lares, provocando a dissolução de famílias com litígios duradouros e escândalos...

René então olha nos olhos de Caroline e diz:

- Uma vampira de lares? Você? E sorrindo desaprova tudo meneando a cabeça.

- Desculpe meu amor, mas precisava me desabafar.

- Ora meu amor, nada disso pode ser verdade, são somente palavras.

- Mas palavras têm força! E quando escritas, mais ainda, há um testamento!

- Sim, pode ser, mas não é assim tão simples e se fosse verdade, você teria desistido de mim quando soube que eu era realmente solteiro, mas você continuou comigo, Lembra?

- Sim, nem eu sei o que aconteceu comigo, acho que foi porque me apaixonei por você já no primeiro olhar. Algo estranho e muito forte deve ter quebrado esse estigma. Olha amor, estou confusa como naquela noite...

-Nisso eu acredito, amor a primeira vista, também foi assim comigo minha doce e bela “Condessa”... mas esqueçamos essa história, não quero que fiques confusa, nunca. Está tudo bem!

-Oh! Meu amado, nunca mais toco nessa história, juro, bobagem minha esqueçamos então.

E se entrelaçaram sôfregos sobre lençóis macios e sob a luz lilás e tênue de um abajur...

Quando saíram ainda era madrugada.

Naquele mesmo horário, que também era de lua clara, uma linda e exuberante jovem encostada num balcão de um antigo e luxuoso bar parisiense, tomava seu Martini branco enquanto observava alguns homens... Seu nome; Laura Pigage.

Um conto de José Alberto Lopes®