Calada Morte
Friagem lá fora, um vento absurdo e inconveniente. As vozes dos moribundos ecoavam nos corredores. Um sangue escuro manchava as quinas das salas de cirurgias. França olhava por entre as frestas da janela e via poucas pessoas circulando no jardim de terra. Aquele enfermeiro gordo está de folga hoje. Nem sequer a água foi reposta. Visita rara de Carminha, que agora deu pra ceder ao desânimo, também não viu. Calado
ouvia umas vozes na cama do lado. Alguns sussurros que a cortina amarelada insistia em abafar. De que importa as vozes da cama ao lado? De quem importa senão estar ali agora? E a morte, porque não chega logo?
França foi pensando a madrugada, fazendo as malas do seu inconsciente, programando a chegada no outro lado da vida. Foi assim, tranqüilo e sereno que floreava sua morte que chegava firme, mostrando cada vez mais uma parte da sua invencibilidade.
Parecia ser um casal, ao lado. Um jarro de flor elegante adornava a estante. Não se via os pés dos vultos, seus cochichos uniformes sem altear a voz, nem sequer mexiam-se. França Voltou os olhos para fora e sem querer foi escutando as vozes. Dormiu assim, pensando na vida que acabara ali, nas vozes que um dia iria reencontrar e em Carminha que ele perdoou por não ter ido na Terça, nem na Quarta e nem dia nenhum no ano.
Na manhã seguinte Carminha estava lá, presente. Não chorou. Seu novo marido estava em casa e as dores da gravidez já desgastava seu corpo jovem. O serviço funerário levou o corpo do rapaz que estava numa sala onde esteve sempre sozinho. As vozes ao lado da cama não existiram, ou foram simplesmente delírio de mais um morto por aí.