Com a Morte No Divã...
Nunca na vida, tive medo do desconhecido. E posso afirmar: temo, mais os vivos, do que os mortos. Minha reputação de homem, corajoso, doutor, psicólogo e, estudioso da mente humana. São precedentes; herdados por mim, de meu pai. E isso, me fez deparar com ela. Lembro-me bem aquele dia. A chuva, caia fina, porém, constante, um vento frio zunindo, fazendo os fios de alta tensão cantar, e minhas mãos congelarem, eu tremia, e batia o queixo incontrolavelmente.
As folhas das árvores, nas alamedas estavam molhadas. O céu cinzento, fechava o tempo, dando um tom sombrio. Até as aves devidamente agasalhadas em seus ninhos, não cantarolavam. Os transeuntes, com suas carrancas esbarravam uns nos outros. Sem se desculparem. E eu, andava entre eles, com destino ao meu consultório.
Aquela manhã, só havia marcado ela, senhorita Liberdade. Uma paciente estranha, com um nome, mais estranho ainda. Vestida estranhamente; não sei se era por sua magreza, mas as vestes escuras lhe caiam bem! Seus olhos fundos, destacavam as olheiras que denunciava: várias noites que ela não sabia o que era dormir, o sono dos justos. No entanto, a maquiagem pesada, camuflava um pouco sua aparência. Juro, que até hoje não sei sua etnia. Só tenho uma certeza: ela é brasileira e está por ai; caminha a passos lentos pela escuridão da noite e passeia pelo clarão do dia. Faça chuva ou faça sol!
Entramos na minha sala, meu consultório é bem luxuoso e o ambiente aconchegante! Logo que adentramos, tratei de ligar o aquecedor. Notei a expressão no rosto de Liberdade, de soslaio pude perceber que a decoração também a agradou. Isso já é um bom começo, estreita a distância entre médico e paciente.
Ela ficou demoradamente olhando um quadro de um famoso pintor, falecido há tempos. Ela suspirou profundo. Firmou o olhar nos meus olhos. O frio externo me interiorizou senti um arrepio, percorrer todo meu corpo. Desde os calcanhares a minha espinha dorsal. Sorri um sorriso, amarelado, sem graça, mas ela parece que nem percebeu.
- Posso? – ela indaga com um tom melódico na voz. Apontando para o divã.
- Claro. – aquiesci, ainda com o som de suas palavras ecoando em meus ouvidos. Ela magistralmente deita seu esguio corpo no canapé. Fechando olhos. Que só então neste momento, eu percebo a negrura daquelas duas esferas que costumo chamar: as janelas da alma. Após um longo e, mormente lúdico minuto, ela começou a narrar seus reais motivos de estar ali.
- Sabe Doutor! Há muito tempo venho exercendo minhas funções. Sinto-me exausta. Não há uma associação, ou sindicato que regularize as minhas atividades profissionais. Sem férias, adicional noturno, insalubridade, hora extra é só pra trabalhar. Pasme o senhor! Não tenho um dia de folga. Todo dia estou atuando. Minuto - pós – minuto! Se não é aqui é acolá.
Tem vezes que atuo com satisfação. Mas na maioria das vezes não. É como que se trabalhasse num regime de escravatura. E de escravos eu entendo bem. Lembro-me dos negros que morriam nos cafezais, nas plantações de cana de açúcar. Quantos e quantos ficavam também nos troncos. Hoje continua a mesma escravidão e me vejo incluída, nesta servidão.
Ela tomava fôlego e eu virava a pagina da minha caderneta, ela voltou a falar e eu anotar.
- O mundo vem numa mesma marcha Doutor. Posso dizer que algumas mudanças aconteceram, no entanto os comandantes não acordaram para algumas necessidades, isso martiriza não só a mim, mas também aos famigerados cidadãos. Não critico meu superior, entretanto coloco minha boca no trombone, a cada minuto, tenho que entrar em ação. Homens, mulheres, crianças, velhos. Não tenho distinção de cor tampouco credo e principalmente sexualidade.
Olha Doutor! O tempo de cativeiro, de há muito teria que ser esquecido. Mas o que posso observar que tantos estão perambulando, se não é desempregado, é prestando serviços na chamada escravidão branca. E eu o que sou? Uma ave de rapina, servindo o céu e o inferno atuando na terra, entre anjos e demônios. Sem descanso, sou o olhar faminto do trabalhador, que não se alimenta por diversas vezes para deixar o repasto a suas crias.
Sou a Senhora Dona Persona que espreita o infante, menino que deveria estar numa escola, e não está. Vivendo ultrajado, tendo as mãos calejadas e o estômago vazio. E eu estou lá à espera do suspiro final. Sou a sombra da moça que foi recrutada, ludibriada para a servidão dos lascivos perniciosos que agridem a moral destas menos favorecidas.
É nesses momentos que meus préstimos são doloridos, por ser sabedora que ainda não é a hora deles partirem comigo. Mas quando o corte vem para ser feito no alto escalão, trabalho com mais satisfação!
O relato estava me impressionado; Liberdade tomou fôlego e continuou:
- Há milhares e milhares de séculos, sou Persona Non Grata no meio de vocês. Sou a única certeza da vida. Mas a desigualdade, me fez refletir. Estou exaurida, precisando de férias! Queria poder deitar num berço esplêndido e descansar. Mas o trabalho não pode parar! Sei que está se questionando doutor. Mas a resposta que tenho que ouvir? Eu digo:
- Hoje não é o seu dia. Mas quem sabe amanhã talvez, você morra, e nas cancelas que separa os portais, estarei lá com certeza. E eu serei sua guia. Para luz ou para a escuridão. Tudo dependerá de como levará sua vida, seu trabalho.
- Mas se você é quem diz que é? Por que se chama Liberdade? Perguntei-a já que estava de pé no umbral da porta. Pronta para se retirar de minha sala e encerrar a consulta. E novamente ela deu um sorriso e disse:
- Os trabalhadores e viventes do mundo doutor, que se sentem injustiçados. Almejam uma Liberdade...
Falando estas últimas palavras. Virou-se no solto, dando as costas para mim, e sumiu pelos corredores da clinica. Nunca mais ela me procurou. Por um tempo fiquei ansioso pelo seu retorno, mas ela não voltou para outras seções. Já se passaram mais de sessenta e cinco anos. Hoje estou como ela.
Querendo me aposentar. Meus olhos estão cansados de trabalhar. No entanto, como ela mesma frisou. O trabalho nunca para. Liberdade, Liberdade! Não venha ainda me buscar. Pois tenho muito ainda que trabalhar...