A couro cru
O fazendeiro parou embaixo da grande árvore, uma jaqueira, olhou para cima e, apesar do escuro da noite, enxergou uma dezena de frutos enormes, como que pedindo para ser cortados dos talos: o que farei amanhã, pensou ele. Acendeu o cigarro de palha e desviou o olhar para o céu plúmbeo de após-chuva. Algumas estrelas, na verdade bem poucas, tentavam inutilmente cintilar em meio às nuvens recortadas.
Homem rústico, mas rico como um paxá nos bons tempos otomanos, o fazendeiro puxou a corrente do relógio do bolso da calça: nove horas. Daqui a pouco ele chega. Disseram-me que costuma ser pontual em seus encontros, matutou. Recolocou o relógio no bolso e lembrou que aquele instrumento pertencera a seu bisavó, seu avó, seu pai e amanhã, se o destino permitir, se realmente parar a chuva dos últimos dias, se o mundo continuar rodando na mesma direção, seria de seu filho.
Seu bisavó, velho rabugento, violento como as enxurradas das chuvas, homem de estirpe e de maldade, fora o primeiro a olhar aqueles horizontes e afirmar: Esta terra é minha.
Alguns minutos depois, o fazendeiro escutou as folhas molhadas sendo amassadas por dois pés pesados, a passos lentos e compassados.
Um homem baixo, de pele clara, bronzeada pelo sol das estradas, trajando roupas rotas, em contraste com o bom tecido vestido pelo fazendeiro, aproximou-se e tirou educadamente seu chapéu de couro cru, amarelo e desbotado. Apresentaram-se e apertaram-se as mãos.
Conversaram alguns instantes e o fazendeiro lhe entregou um pacote de dinheiro: a outra parte virá depois de tudo consumado, disse. Passou também para o homem baixo a fotografia: foi tirada há menos de um mês, por mim mesmo. Depois não o vi mais. Mas não deve ter mudado. Ele tem este rosto de rato sem-vergonha há muitos anos. Amanhã pela manhã, acordando com as galinhas, ele inicia uma viagem bastante longa, de mais de semanas por estas terras de ninguém, e de muitos ao mesmo tempo. Com certeza, ele vai precisar de um companheiro para lhe ajudar na estrada. Então...
Prosearam mais um pouco - na verdade, o homem baixo era melhor de ouvido que de boca - e se despediram, deixando a jaqueira com sua solidão e imobilidade de árvore.
O homem de baixa estatura chegou ao bar da cidade e não teve dificuldade em vislumbrar o fotografado - um rapaz moreno, de cabelos curtos e encaracolados - em meio à multidão que bebia e cantava músicas, trovas de amores perdidos, cavalos indomados, disputas de terra, valentia e covardia dos homens.
O homem de chapéu de couro cru sentou-se à mesa e pediu uma garrafa de cerveja e um copo de cachaça. Perguntou ao dono do bar a que horas ele costumava fechar, o qual lhe respondeu que abaixaria as portas em uma hora.
Meia hora depois, os freqüentadores começaram a se retirar do estabelecimento, mas o homem da fotografia continuou conversando com alguém por mais alguns minutos. No momento em que este se levantou, para deixar o bar e pegou dois sacos pesados que estavam encostados no balcão, o homem baixo ofereceu-se para ajudá-lo e saíram juntos do bar.
Na rua, onde o barro da chuva ainda não havia secado, o homem claro e baixo disse que ouvira, no bar, o outro dizer que estava de viagem marcada para a manhã seguinte e ofereceu-se para acompanhá-lo: tenho cavalo bom, forte e sem carrapatos no couro, contou silabicamente, como é do feitio dos homens que falam pouco. O moreno, que aceitou de pronto a nova companhia, enfiou a mão num dos sacos e retirou a garrafa de cachaça e disse: é para comemorar nossa amizade, nossa viagem e o fim das chuvas.
Dormiram numa varanda, nos fundos do bar, e acordaram com o cocorocó do galo às cinco horas da manhã. Assim que lavaram os rostos num tanque de roupa e, ao olhar para o céu, que se despedia lentamente da noite, o moreno disse que finalmente teriam dia de sol, no que o outro concordou com um "também acho". Arrumaram seus cavalos, seus pertences, suas esperanças de um bom início de viagem e rumaram para a estrada barrenta.
Durante duas horas de trajeto, feito hora na estrada, hora em atalhos, por estar mais secos, o moreno se mostrava o mais faceiro, o que mais falava a respeito de sua vida, suas aventuras nas estradas, nos bares e nos braços das mulheres.
Paulatinamente, foi se acostumando com o silêncio do companheiro, respeitando sua vontade de falar apenas o mínimo, a precisão do momento. Mas percebeu que o amigo também tinha amor pela poeira e barro das estradas, pela sela do cavalo, pelo orvalho matinal da folha das árvores, pelo cricri dos grilos escondidos nas lâminas do capim.
Assim que sentiu um ronco no estômago, o moreno mudou um pouco o rumo da caminhada e, seguido pelo amigo, chegou a uma fazenda.
Conversou com a mulher, como se fosse um velho conhecido. Graças à prosa afiada e certeira, conseguiu sair da fazenda com vários pães recém-assados e dois queijos cheirosos.
Assim que comeram fartamente o café da manhã, tomaram novamente a direção da estrada. O resto dos pães e dos queijos tornou-se as refeições dos dois dias seguintes. À noite, bebiam cachaça, se desafiavam no carteado e contemplavam as estrelas que após semanas de chuvas intensas voltavam a brilhar no firmamento azul, no horizonte claro.
No terceiro dia, saíram outra vez da estrada e rumaram para os arredores de uma cidadezinha. Antes de chegar ao lugarejo, o moreno apontou a residência grande, bem iluminada, como sendo a casa de mulheres daquela cidade. Você pode dormir com todas que quiser. Eu pago a conta delas e das bebidas, disse o moreno para o amigo. Saíram da casa às onze horas da noite, satisfeitos, com o orgulho de macho redimido.
Após uma semana de viagem, a amizade entre os dois estava sólida como rocha. O moreno confiava tanto em seu amigo a ponto de gastar boa parte de seu dinheiro. Bonachão, sempre falante, fazia questão de pagar todas as contas: dinheiro foi feito pra se gastar mesmo e, quando voltar, trarei mais mercadorias para vender nas cidades em que passar, dizia para o outro.
Ele achava que o baixinho fosse homem de muita pobreza, errante na vida, sem parentes, amigos. Enfim, um pobre coitado jogado neste mundo de ninguém, sem eira ou beira. Embora jamais tenha se enriquecido com o comércio ambulante no lombo de seu cavalo, vivia bem, com a carteira sempre cheia para se divertir. Ele conhecia todos os fazendeiros da região, os peões, os capatazes, as mulheres deles... Já tivera vários amigos de viagem: falantes como ele, alegres como ele, taciturnos também, como o baixinho de chapéu de couro cru.
Estava sempre a correr o risco de ser roubado na estrada, em plena luz do dia ou na escuridão, no sol escaldante ou no frio mais trepidante, por isso não gostava de viajar sozinho. Olhou para o companheiro e confidenciou: quando estou sozinho na estrada costumo conversar com meu cavalo. O pior de tudo é que o bicho fala comigo, mesmo.
Nestes momentos de revelação, o homem baixo, condoído pela confiança e lealdade do amigo, sorria e pronunciava algumas palavras a mais, deixando por instantes seus monossílabos sussurrados.
Mais alguns dias depois, após ter se divertido com bebidas, músicas, mulheres, carteados, nos diversos lugarejos por que passaram, os dois entraram numa estrada bastante deserta, onde não se enxergava vivalma; o mato se apresentava tão fechado que às vezes tapava a luz do sol. Se não fosse o relógio velho que o homem de chapéu de couro cru carregava no seu embornal, preso à cela, eles não saberiam se era hora do dia ou da noite.
De repente, o moreno apeou do cavalo e falou para o amigo que seu animal estava com fome. Seria bom descansar um pouco, comer lingüiça seca, encher o cantil de água, enquanto os animais comiam o capim fresco que crescia feito praga nas margens da estrada.
O moreno, ansioso por saber as horas, não perguntou ao outro, pois este estava urinando ao pé da árvore. Tirou o embornal da cela do cavalo do amigo, para encontrar o relógio, e viu uma fotografia sua, colorida e nova; tão recente que o chapéu que usava no momento, comprado havia dois meses, era o mesmo da foto.
Pegou o retrato e gritou para o companheiro, que estava de costas: Onde você arrumou esta fotografia minha? O homem baixo fechou a braguilha, vagarosamente, e rapidamente sacou seu revólver e atirou. O moreno caiu sem ao menos perguntar "por que?".
O outro se aproximou, tirou seu chapéu de couro cru, amarelo desbotado, e puxou o gatilho mais uma vez. A segundo bala penetrou no espaço entre os olhos. Agora está morto, mesmo. Mais morto que tudo que está morto neste mundo, murmurou para si mesmo. Olhou para cima e viu que a árvore em que urinava era uma jaqueira, cujos frutos já estavam grandes e maduros.
Subiu na árvore, decepou o fruto de seu talo e se alimentou. Subiu no cavalo e deixou a jaqueira com a sua solidão e imobilidade, fazendo sombra para o corpo do companheiro.
FIM