Engatilhado
Naquela dia árduo, recebi um telefonema com uma pergunta bastante direta e indiscreta:
- Por que matou aquele homem?
Muitos em meu lugar talvez se preocupassem bastante com isso, assassinato pdoe condenar a morte, mas consegui manter o sangue frio e responder:
- Aquele filho da puta não valia um centavo, não valia o chiclete cuspido da boca de um mendigo, não valia...
Desligou o telefone na minha cara, deve ter achado minha resposta convincente e resolveu encerrar o assunto ali mesmo, gosto de pessoas assim, que encurtam ao máximo as coisas, enrolar não está com nada.
Agora a resposta ao leitor sobre a pergunta. Quando uma pessoa está morrendo, as forças espirituais vem buscar a sua alma, é como ficar ao lado de Deus ou do Diabo por frações de segundo, uma força muito poderosa, que pode ser relaxante ou excitante, eu sempre escolho a segunda opção. Não é uma escolha pendendo para o bem ou para o mal, é apenas estado de espírito.
Esse não foi o primeiro homem que matei e, se nada me acontecer, também não será o último, esse ofício de juíz garante o leite dos meus filhos e uma excitação monstruosa para que eu possa continuar vivendo. No começo cheguei a hesitar algumas vezes, meu dedo paralizava e não conseguia apertar o gatilho, o rosto de desespero da minha vítima confrangia o meu coração. Pensava na família dele, todo pobre diabo, por pior que seja, acaba tendo uma família, muitas vezes composta por pessoas boas, que não merecem sofrer, em outros casos, a família também é composta por escória, o mal se alastrando.
Wellington Marcelino, vulgarmente conhecido como o "Carcará", fugitivo da polícia, animal da mais alta periculosidade, um cara linha dura que desafiava todo mundo, não tinha medo de ninguém. Seus dias de crime terminaram quando encontrou um durão maior, só que esse durão maior ainda não sabia que era tão valente, esse cara? Eu. cabe lembrar que foi minha primeira vítima. Mas foi tão repentino que vou tentar rememorar os fatos desse dia.
Tinha chegado em casa depois de ter trabalhado bastante, era advogado. Minha mulher me esperava com aquela expressão de "lá vem merda", que obviamente não gostei de ter visto. Ela se sentou ao meu lado e falou calmamente:
- Estou grávida.
Não podia acreditar naquilo, tínhamos conversado tanto sobre ter um novo filho, já temos um e nossas contas andavam no limite, nos cuidávamos ao máximo para que isso não ocorresse. Ela me disse que talvez tenha esquecido de tomar o anti-concepcional algum dia, uma desculpa que naquele dia eu me recusava demasiadamente em aceitar. Acabamos discutindo arduamente, nossa primeira discussão em quatro anos de casados, anteriormente discutimos apenas uma vez, nessa época ainda éramos namorados, foi por uma besteira qualquer que nem me lembro mais, ficamos duas semanas separados, até que nos reencontramos e nos desculpamos. O nosso relacionamento andava maravilhosamente bem até esse dia da discussão. Ela foi se deitar e eu desci para tomar uma cerveja.
No bar, encarei o atendente e pedi uma cerveja gelada. O bar ficava logo no começo da subida de uma grande favela, a maioria dos freqüentadores eram moradores da comunidade local, gente mal vestida, suja e fedendo a trabalho braçal, me sentia deslocado até ter avistado um cara bem apessoado, usando terno, ele me acenou com um copo de cerveja. Algumas cervejas depois, resolvi me retirar do recinto, paguei a conta, me levantei e já estava quase na entrada do bar quando o meliante entrou, armado, colar de ouro com um grande "W" pendurado, chegou colocando banca em todo mundo, que sabendo da sua fama, abaixaram a cabeça e continuaram a sorver suas cervejas. Ele me viu querendo sair e me empurrou de volta.
- Vai aonde, cumpadi?
Bem, se ele tivesse feito isso em qualquer outro dia, eu certamente o teria ignorado, abaixado a cabeça e voltado pro meu antigo lugar, provavelmente pedido outra cerveja, esperando a situação se acalmar para que eu pudesse sair, assim como todos os outros tencionavam fazer. Quando fui empurrado, minhas costas bateram numa mesa e derrubei um copo, virei meu rosto para o lado, rangendo os dentes e nesse momento não consegui raciocinar, apenas fechei a mão e desferi um soco violento em seu nariz. Ele caiu sentado, sangrando, muito assustado com essa reação inesperada, a platéia olhava sem entender, ninguém ousava se mexer com medo que fedesse pro seu lado.
Minha vida se divide entre antes e depois desse momento que vou narrar. Bastante contrariado, ele tirou a arma da cintura e apontou pra mim, se aproximou e colocou o cano da arma na ponta do meu nariz, aquilo era gelado e fazia cosquinha, não estava gostando, me sentia incomodado. Pensei em chama-lo para a mão, que largasse a arma no chão e lutasse dignamente, mas isso seria em vão, dois motivos:
1- Pessoas dessa índole não jovem limpo e não tem escrúpulos.
2- Ele parecia uma tripa seca, tinha noção que eu poderia parti-lo ao meio sem fazer o menos esforço.
O cano do revólver tinha ficado mais de um minuto na ponta do meu nariz, eu fazendo um esforço danado para reprimir as gargalhadas e decretar meu suicídio, quando ele falou:
- Ficou maluco, doutor? Nessa vida matei mais de cem!
Tinha plane convicção que iria acabar nessa estatística. Ele estava determinado acabar com a minha raça ali mesmo, mandou todos no bar saírem, foi aí que tudo aconteceu. O homem de terno quando ia saindo, deu um grito muito assustador, o meu algoz se assustou, foi nesse interím que lhe roubei a arma, apontei para a sua cabeça e puxei o gatilho.
Uma grande onda de satisfação veio preencher minha alma no momento em que puxei o gatilho, achei que iria me arrepender pelo resto da vida, que sentiria a ardência das chamas do inferno queimando meu corpo, acabando com a minha saúde mental, algo como Raskolnikov em crime e castigo, mas ocorreu o contrário, adrenalina e excitação, uma grande sensação de estar vivo, um prazer indiscutível, só experimentando para saber.
Devo ter ficado um bom tempo contemplando o morto, me sentindo banhado em poder, esse tempo pra mim foi bastante longo, na realidade deve ter sido de alguns segundos. O homem de terno colocou a mão no meu ombro, disse para que eu deixasse a arma no chão e entrasse no carro com ele, sem muita escolha obedeci, ao longe uma sirene da polícia já se podia escutar. Não tive medo de matar, mas de preso era uma medo torturante, queria que aquele desconhecido me levasse para longe o mais rápido possível.
O telefone acaba de tocar e eu não vou atender, não mesmo, não estou com medo, é que eu fico doido de raiva quando sou insultado, e o pior é que nem sei quem é esse sujeito, senão iria atrás. O telefone insiste em tocar, desisto da idéia de não atender e o retiro do gancho:
- Alô!
- Aquele homem que você matou era o meu irmão, seu débil mental, quando eu te pegar vou fazer picadinho, arrancar suas calças e...
Dessa vez fui eu que desligou o telefone, não faço os meus trabalhos para ser insultado, corro os riscos na hora e faço tudo de um modo limpo e eficiente para que não haja problemas depois, esse é o primeiro problema grave que enfrento, mais de vinte corpos depois, uma hora isso tinha que acontecer, preciso manter o sangue frio para que consiga resolvê-lo. Não sabia que o Escopeta tinha um irmão.
Depois da primeira vítima, cismei em colocar um apelido em todos os meus despachos, a maioria sem sentido, com qualquer palavra que viesse a minha cabeça. Escopeta por ter sido o primeiro que matei com uma 12mm, pelo meu caderninho foi minha vigésima segunda vítima, foi assim.
Tinha ido visitar minha mulher, estamos separados, mas sempre pago em dia a pensão dos meus filhos, sou um pai presente e exemplar. Eu e minha mulher conservamos uma amizade legal e sabemos que podemos reatar o nosso casamento a qualquer momento, só falta um dos dois dar o primeiro passo. Lanchamos cachorro-quente e quando me dirigia ao banheiro, o meu celular tocou.
- Nova missão para hoje à noite, na saída do teatro vai ter um carro lá parado, preto, a porta vai estar aberta, as chaves, as luvas e a máscara estão dentro do porta-uvas, a escopeta embaixo do banco de trás. Dirija até o sobradinho, espere alguns minutos até avistar um negro oxigenado, ele deve entrar na casa de número doze com uma menininha no colo, ele é um pedófilo nojento, acabe com a sua raça e me relate depois o que aconteceu, não me decepcione.
Nunca irei, pensei comigo. Me despedi da mulher, dos filhos e já sentia uma adrenalina louca por mais uma aventura noturna. Satisfazia uma prazer ao mesmo tempo que eliminava uma escória do mundo, uma dupla estimulante. Cheguei na saída do teatro e encontrei um honda accord, meu chefe andava chique ultimamente, até gostaria de desistir do homicídio só para ficar passeando com o carro a noite toda, mas como o chefe disse: "não me decepcione". Não irei, não irei. Cheguei ao sobradinho e estacionei embaixo de um fedegoso frondoso, com a pouca iluminação da rua, sombra, farol apagado e carro preto, estava bem camuflado. Fiquei ali por cerca de vinte minutos quando avistei meu alvo, ele vinha acariciando uma garotinha de uns cinco anos, um ódio mortal me sufocou, acabaria com a pele dele ali mesmo. Ele entrou na casa, aquele colar de ouro gigante e a sua cabeça de fósforo me enervaram demasiadamente. Coloquei as luvas, a máscara, levantei o banco traseiro e retirei a arma. Agora venha logo seu puto nojento, quero acabar logo contigo. Não demorou muito e ele saiu para tomar um ar, estava apenas de cueca, saiu da casa coçando o escroto, com aquele colar balançando, me aproximei furtivamente e acertei sua cabeça com a coronha da arma, ele caiu desacordado.
Me deu um trabalho danado colocá-lo no carro, foi a viagem inteira quicando no porta-malas, até chegarmos no matadouro. Tive que o acordar com água gelada e três tapas na cara, acordou muito assustado, estava amarrado com os dois braços e pernas esticados. Existia uma morte clássica por esquartejamento da seguinte forma: Se amarrava os membros da pessoa, um em cada cavalo, quando os membros estivessem bem esticados, o carrasco dava um tiro pro alto e os cavalos corriam desabalados, levando junto o membro da pessoa. Não dispunho de cavalos, mas sim da minha arma. Fiquei pensando em voz alta qual tortura infringir nesse filho da puta, a cada uma que eu falava, ele se desesperada mais, isso acabou sendo uma tortura interessante, olhar a cara de desespero do sujeito, suplicando pela vida, uma vida sem vergonha, sem dignidade e imoral, sua vida não valia nada e ele e eu, nós sabíamos disso, mas só eu tinha a resposta. Acabei optando por uma coisa simples, enfiei o cano da arma em seu traseiro o mais fundo que pude e entre gritos de dor, bosta e sangue, puxei o gatilho.
Dia dos telefonemas, assim ele vai se prolongando indefinidamente, mas se tocou o celular só pode ser o chefe, não demoro em atender.
- Alô, chefe.
- Vou direto ao assunto, sei que você anda recebendo telefonemas com algumas ameaças. Seu trabalho dessa vez não foi perfeito, deixou uma testemunha que conhecia o irmão da vítima, se você apagar o irmão, a testemunha entrega você para a polícia, tem que ir direto ao ponto e apagar a testemunha. Depois eu bolo um plano para o irmão, ele quer matar você e com isso não corre o perigo de ser denunciado. Presta atenção no que vai fazer. Amanhã de noite tem jogo da seleção, o estádio vai estar lotado, muitos fogos de artifício, bagunça, gritaria, enfim, alegria do povo. Leve sua arma, eles fazem uma revista bem superficial, como não é jogo de equipes rivais eles não utilizam o detetor de metais, daria muita dor de cabeça. Você está recebendo o ingresso e as fotos da sua próxima vítima. Sua cadeira fica localizada duas fileiras atrás, espere a seleção entrar em campo, fogos pipocarem, fumaça e gritaria para dar o tiro, aproveite a confusão e saia rapidamente, procure não chamar atenção. Segunda e última vez que salvo sua pele, boa sorte.
Logo após matar o Marcelino, coisa de alguns minutos, estava bem alojado no carro do homem de terno, era bastante confortável, ainda não sabia a marca, no meio da confusão e com vontade de sumir de vista, essa seria a última coisa com que eu iria me preocupar. Ele durante o trajeto até sua moradia, não trocou uma palavra sequer comigo, estava concentrado no trânsito, chegou acender um cigarro mas desistiu de fumar, o jogando pela janela. Eu não tinha um relógio comigo, não soube precisar o tempo, mas creio que ele estacionou o carro cerca de trinta minutos depois de me tirar do bar. Parou em frente a uma casa luxuosa, saiu do carro e jogou a chave para um homem que usava uma jaqueta azul estacioná-lo, acredito que seja o chefe da segurança. Ele falou pela primeira vez desde que saímos da confusão, me convidou para sentar e me ofereceu um drink, que prontamente aceitei.
- Bela atuação hoje, demonstrou um sangue frio invejável, poucas vezes encontrei com pessoas assim, na vida isso é raro, um barato.
Eu estava bastante embaraçado, acordei advogado e irei dormir assassino, o outro lado da moeda, essa idéia me assustava e me divertia ao mesmo tempo, enquanto tentava assimilar o que tinha feito, ele falou:
- Não me julgue mal, tenho uma proposta a oferecer, peço que não se ofenda, não gostanda basta apenas se dirigir a saída e esquecer o acontecido. Sou um homem muito sozinho, cheguei a ser casado, um casamento próspero, amava muito a minha mulher, infelizmente devido a um problema nunca tivemos um filho, chegamos a pensar em adotar uma criança, entramos com um pedido... foi quando uma catástrofe se abateu sobre mim.
Nesse momento ele ficou bastante emocionado, tirou um lenço do bolso e começou a secar algumas lágrimas que escorriam. Ele prosseguiu.
- Tínhamos ido numa festa de conhecidos, na volta, tinha parado no posto para abastecer. Enquanto abastecia, entrei na loja de conveniências para comprar pão, me dirigia ao caixa quando escutei minha mulher gritando, dois homens tinham rendido o frentista e o enfiado no carro junto com a minha mulher e saíram arrancando com ele. Entrei em desespero como você deve imaginar, a primeira coisa que me passou pela cabeça foi de ligar para a polícia, depois de alguns trâmites de praxe, conseguir passos os dados de cor, marca e placa do carro. Fiquei horas no posto esperando notícias, me recomendaram ir para casa aguardar novidades. Passei o dia seguinte inteirinho ao lado do telefone, quando não era da polícia eu desligava logo, era regra não manter o telefone ocupado. Quando já era bem de noite, eu cochilava na poltrona, o tão aguardado telefonema enfim, chegou. Pena que não trazia notícias boas.
Novamente ele tirou o lenço do bolso para enxugar as lágrimas.
- Tive que ir ao necrotério identificar o seu corpo, aqueles crápulas aparentemente queriam apenas se divertir, não se contentaram apenas em roubar o carro, atiraram na cabeça da minha mulher e também mataram o frentista, para terminar jogaram gasolina e atearam fogo nos corpos, deixando sua marca de crueldade e raiva do mundo.
Experimentei um sentimento de pesar pelo homem que estava na minha frente, engolindo em seco boa parte da sua narração. Nutri um ódio brutal por criminosos sem propósito, não sei se pela narração apaixonada e emocionante do homem de terno, já que esses fatos não eram novidades para mim, estava todos os dias em contato com isso. Até para o crime se precisa de um motivo, seja esse qual for, que roubassem apenas o carro e deixasse vida suas almas que nada tinham feito de mau. Não sabia o que dizer quando ele quebrou o silêncio.
- Até hoje ainda não acharam o meu carro, certamente foi para o desmanche, mas não é disso que eu quero falar, quero tratar de negócios, como que você anda financeiramente?
- Não muito bem. - Respondi com sinceridade.
Ofereceu mais um drink, se recostou na poltrona, cruzou as pernas e acendeu um charuto, numa atitude de dar inveja aos grandes mafiosos, soltou uma grande nuvem de fumaça e proferiu:
- Que tal ganhar dinheiro me ajudando a limpar o mundo dessa escória?
Agora eu estava começando a entender o motivo de logo no começo da conversa ele ter pedido para que não o julgasse mal, contado uma história ao mesmo tempo trágica e revoltante, como advogado eu entendo esses esquemas, tocar o coração do ouvinte, amaciar, para logo em seguida jogar a bomba, nada mais natural. Resolvi tentar tomar as rédeas do diálogo com três perguntas:
- De quanto estamos falando? Além do dinheiro, o que eu tenho a ganhar com isso? E o que eu tenho que fazer logicamente?
Para essa última eu tinha uma certeza que se confirmou.
- Cada caso será avaliado cuidadosamente, para que não exista riscos para ambas as partes. As cifras devem girar em torno de alguns milhares de reais, sobre a segunda pergunta, creio que seja algo íntimo e pessoal, não quero me meter. Acho que sobre a última, qualquer pessoa já teria compreendido, só que não gosta de admitir assim de primeira a palavra: matar.
Encerramos a conversa apertando as mãos e ele deixando no portão do meu prédio, novamente no trajeto de carro não falamos, quando ia entrar no prédio prometi que iria dar a resposta dentro de 48 horas, não é segredo para ninguém qual foi ela.
Embora o jogo fosse apenas de noite, acordei cedo, pensativo, algo me perturbava, nunca matei um inocente antes, tudo nem que chantagista é uma espécie de filho da puta, mas não se pode colocar no mesmo balaio que assassinos, pedófilos, seqüestradores e estupradores, tipos de pessoas que liqüidei ao longo tempo no meu ofício de justiceiro. A culpa, e se ela pesar depois? Minha saída seria me entregar, passar o resto dos meus dias na cadeia, estreitar relações com a escória que ajudei a limpar, seria o mesmo que um lixeiro dormindo no lixo. Perderia a chance de ver o desenvolvimento dos meus filhos, de reatar com a minha mulher, desfrutar bons momentos de liberdade, essa que se perde quando a grande estala e a chave gira, não posso me entregar. Com esse pensamento terminei a minha sessão de devaneio, não posso me entregar, tão pouco sei se posso realizar o serviço de hoje à noite, reconectei, a única coisa que sei é que eu tenho que fazê-lo. Checo a minha arma, acaricio o bilhete de entrada pro jogo, vejo mais uma vez as fotos da miha vítima, pego as chaves do carro e saio.
Durante o trajeto paro diversas vezes quando o sinal fecha, tempo para reflexões, a cada ponto luminoso vermelho sou visitado por um anjo e um demônio, algo típico de desenhos. A cada sinal a resolução muda, hora tende para o bem, outras horas pro mal. Preso aos meus pensamentos, os sons que mais ouço são os de buzina, quase bateu na minha traseira algumas vezes. Em certo semáforo, um engraçadinho passa por mim e me dirigie uma porção de impropérios, revido mostrando o dedo, ele fica indignado e por pouco não causa um acidente, me dando uma fechada, obrigando que eu parasse o carro e uma briga começasse. Ainda bem que ele foi sensato e acelerou, sumindo de vista, senão seria obrigado a largar o dedo ali mesmo, me livrando de um peso, mas assumindo uma culpa ainda maior, prejuízo total. O diabinho venceu, pego a arma para sentir sua tão conhecia empunhadura e acelero para o estádio.
Cheguei ao estacionamento do estádio a toda velocidade, mandando um cavalinho de pau, pura ilusão, gostaria de poder fazer isso, mas o que eu mais tenho que ser para cumprir minha missão é discreto, discrição é o mais alto grau da sabedoria nesse momento. Observo alguns fanáticos com o rosto pintado com as cores da nossa flâmula, levantando uma bandeira enrolada, agora desenrolada, instrumento que acaba virando arma em mãos impróprias, crianças brincando com fogo, cachorro atravessando uma rua movimentada. Alguns urram e puxam cantigas de provocação, eles marcham em direção a bilheteria, prontos para a guerra, isso em um jogo tranqüilo. Alguns policiais com as mãos para trás olham a turba avançar em direção as cadeiras, nenhum detetor de metais, se os arruaceiros não foram revistados, catraca aberta para o perfeito cavalheiro bem trajado. Caminho confiante, passos firmes, dou duas piscadelas quando passo pela catraca, ela engoliu meu ingresso, assim como faz com todos os outros, não o cuspiu de volta com os dizeres "assassino.
Não demoro a achar o meu lugar, o estádio ainda está bem vazio, menos de 10% da sua capacidade preenchida, me sento, agora é só esperar. Os jogadores rivais aparecem no campo, começam a bater uma bola, alguns torcedores vaiam, mas a maioria prefere preservar a garganta para a hora do jogo. Um senhor ao meu lado me cutuca:
- Temos que parar aquele baixinho, é o melhor deles, o que você acha?
Nem fazia idéia de quem fosse o baixinho, estava preocupado em fazer logo o meu trabalho e dar o fora rapidamente. Não tinha interesse em fazer amizade, isso poderia dificultar meu trabalho.
- É verdade. - E virei o meu rosto pro lado.
Minha vítima acaba de aparecer, procuro esconder meu rosto fingindo estar coçando o olho, é só como medida de segurança. Que cara mais irrequieto, fica se mexendo a todo momento, isso está me dando uma agonia, queria poder apertar logo o gatilho, assim acabava com aquelas pernas irrequietas. O locutor do estádio deu o ar da graça contando piadas dos adversários, cada uma mais sem graça do que a outra, amanhã vou comprar o jornal com o único intuito de saber se o adversário venceu, estou torcendo para eles agora, não que eu não seja patriota, é que não fui esportivo de tolerar as piadas.
Noto um alvoroço, uma certa agitação, o momento se aproxima, minha arma ainda não fugiu, isso é bom sinal, ela quer entrar em ação, pediu. Não joguem fogo fo céu, estou preparado. Jogaram fogo pro céu, bandeiras se agitando, o senhor que me falou do baixinho pula como uma criança, muitos apitos, gritaria, me atrapalhou um pouco com a arma. Em meio a baderna, um pouco atrapalhado, fogos e risos, puxo o gatilho.
Foram três tiros em um segundo, tentei ser o mais discreto possível, ele caiu arfando na cadeira, quando já me apressava para sair, ouvi alguém gritando: "Tem um cara ferido aqui". Muita agitação, algumas pessoas correram para ver o que estava acontecendo. Aproveitei toda a confusão e saí sem ser visto ou pelo menos percebido, espero isso ao menos. Entro no carro e fico ali esperando, espero que outras pessoas saiam para aproveitar e ir junto, assim me perco na turba. O jogo de seleção está fadado ao fracasso, que o baixinho arrebente, como me alertou o senhor.
Uma vez tive o meu carro roubado, não tinha seguro e ele nunca foi achado, não tinha seguro e ele nunca foi achado, se perdeu nas malhas dos desmanches, uma peça para cada parte do país. Um parafuso do meu carro pode agora estar sendo usado em uma bicicleta e com dois se prende um paneleiro, uma máfia incrível. Desmanche de carros foi um dos temas da minha lista de missões, um dos casos mais espetaculares que realizei, chego até arrepiar me lembrando dos momentos marcantes.
O chefe para essa missão estava eufórico, me pagou o dobro do que estava acostumado, também fiquei eufórico. Ele nunca fez um comentário sobre, mas como os bandidos que mataram sua mulher nunca tinham sido capturados, achei que fossem eles, mas um deles pouco antes de morrer jurou que nunca tinha ouvido falar do caso, foi convincente.
Simulei alguns problemas no meu carro: tirei parafusos, troquei a correia, tirei o óleo, eles tinham uma oficina. Queria sentir um pouco mais de ódio deles, como se fosse possível. Deixei meu carro em um estacionamento próximo, liguei para a oficina e esperei que um dos dois viesse me atender, um carro caro sempre chama atenção. Não demorou para que o mais velho dos irmãos aparecesse. Chamo eles por mais velho e mais novo por causa da aparência, na ficha que recebi deles não tinha a idade, só tinha fotos e a localidade da oficina. O mais velho tinha um bigodinho fino e veio mascando um chiclete:
- Qual o problema, chefia?
Tinha as mãos sujas de graxa, um semblante arrogante e piscava os olhos constantemente, na verdade muito mais constante que o normal. Expliquei para ele o que estava acontecendo, ele pediu licença, levantou o capô e ficou ali olhando por alguns segundos, acenou para o seu capanga que veio dar uma olhada. Finda a breve a análise, ele tornou a falar comigo:
- Você precisa deixar o carro aqui para uma revisão com mais calma, o Mimi concorda comigo. - Nesse momento o seu capanga acenou com a cabeça. - Três dias e o deixo novinho em folha.
Concordei, deixando a chave com ele e fui embora. Meu carro só foi ficar pronto cinco dias depois. Quando busquei, vi que muitas peças tinham sido trocadas. Antes da revisão, discretamente marquei todas elas, agora foram trocadas por peças duvidosas, cretinos! Mas foi bom terem demorado dois dias a mais, percebi que no sábado de noite eles ficam sozinhos na oficina, devem fazer o balanço da semana, antes do descanso sagrado do domingo. Resolvi esperar até sábado e jogar minhas fichas. Durante a semana espionei o lugar, queria me certificar se a rotina da semana anterior iria se manter, nada saiu dos trilhos até sábadp. dia de puxar o gatilho.
Quando o sábado chegou, acordei com uma gripe indesejada, sentia o corpo bastante fraco e uma dor de cabeça assustadora, mastiguei algumas aspirinas e fiquei embaixo das cobertas para me aquecer. Lá pelo menos da manhã o chefe me ligou, perguntou se o dia era hoje, falou isso em tom de pressão. Falei com uma voz que teimava em ficar na garganta que sim, que o plano ainda não tinha mudado e que doente ou não, eu iria resolver o problema. Dormi mais um pouco. Na hora do almoço tornei a acordar, dessa vez me sentindo disposto. Comecei a preparar meus instrumentos que dessa vez contava com: um fio de arame, minha pistola fiel, um canivete típico do exército, um vidrinho de cola e uma serra para cortar vidro. Me dirigi para meu posto de observador.
Um vidro quebrado seria o suficiente para colocar o meu plano a perder. Estava nervoso, entediado, um pouco gripado e morrendo de frio. A jogatina demorou mais do que eu previra para terminar, com saída dos capangas nada poderia me deter, a excitação do momento chegara. Fui para a janela dos fundos, nenhuma luz acesa, tudo estava calmo. Abri o vidro de cola, passei na janela e colei um barbante, tirei a serra e cortei na janela um buraco suficiente para entrar, tinha visto isso em um filme. Mas como nos filmes as cenas podem se repetir dezenas de vezes para dar certo, invariavelmente dava, eu só tinha uma tentativa, não poderia falhar. No instante em que terminei de cortar o vidro e puxei o barbante com ele, a cola não foi suficiente forte para segurar o rojão, o barbante se desprendeu quase que totalmente, o fiapo que ainda sustentou o vidro por um milésimo de segundo foi o suficiente para que eu conseguissem colocar o pé embaixo como apoio, rapidamente segurando com a mão esquerda, essa tinha sido por pouco, um bom presságio.
Já no lado de dentro, caminhando devagar, me esgueirando por trás de móveis velhos, muitos papéis, caixas e peças de carroceria, tomei um cuidado exagerado para não me trair pisando em uma peça qualquer, quando a gripe sorrateiramente me traiu, acabei espirrando. O espirro apareceu sem mais nem menos, não deu tempo de refreá-lo, praguejei baixinho. Comecei a ouvir passos, era o mais novo, só fui saber um pouco depois, ele veio investigar, quando ele notou que o vidro da janela tinha sido cortado, fez a pergunta mais chavão e estúpida para esse tipo de situação:
- Quem está aí?
Eu mais estúpido ainda respondi que era o justiceiro, mostrando para ele aonde me escondia, tiros começaram a pipocar e ricochetear pelas carrocerias, atirei metade do pente, até ouvir um grito, os tiros tinham parado, fiquei com medo que fosse uma armadilha, até que achei um interruptor para ajudar a clarear o ambiente, a lua era insuficiente entrando pela janela sem cortinas. Espiei sangue jorrando, uma poça, encontrei ele mais adiante se rastejando, sem dó nem piedade acertei uma bala na sua cabeça.
Ficava faltando o mais velho, aonde ele estava? Com toda cautela vasculhei cada canto daquela oficina. Decidi fugir dali depressa, minha arma tem silencioso, mas a dele não, nessa altura a polícia deve estar a caminho. Volto para o meu posto de observador, nenhum movimento da polícia nos trinta minutos em que observo, a barra está limpa. Decido voltar para a oficina e esperar. Não demora muito para o mais velho aparecer. Não tive tempo de perguntar a primeira coisa que ele tinha visto quando entrou na oficina, na verdade tempo eu tive, não tive foi interesse, o que importa é que assim que entrou caiu desmaiado com uma coronhada.
Quando acordou demorou cerca de dez segundos para perceber aonde estava amarrado, eu sei que vão dizer que é maldade minha, que serei punido por isso, não me importo. Assim que percebeu começou a gemer, já tinha a boca amordaçada e após se agitar bastante, começou a chorar copiosamente. Não senti um pingo de remorso, não sei aonde fui perder o coração, o fato é que eu tive a maléfica idéia de o amarrar junto com o seu irmão morto, de frente para ele, essa idéia me divertiu bastante, crueldade extrema eu sei, prometi que iria tirá-lo dali se ficasse comportado e respondesse as minhas perguntas, obedeceu.
Amarrei em outro lugar e tirei a mordaça, comecei perguntando o motivo de terem trocado as peças do meu carro, me respondeu dizendo que era um procedimento de praxe, que faziam isso sempre, que tinham um esquema de ganhar dinheiro com peças novas, repassadas as concessionárias, até as gigantes estão metidas nisso, ordinárias. Perguntei por quê tinha entrado para esse mundo do crime, se tinha filhos, se era casado, todas as perguntas me respondeu prontamente, por fim perguntou o motivo dele e do irmão terem matado uma mulher e um frentista e depois terem queimado os corpos. Em meio a muitos pontapés ele jurou inocência, sabia que estava condenado, não tinha motivos para sustentar essa mentira, pensei: "será que o chefe se enganou dessa vez? Bem, ele não disse que foram eles", sem muitos rodeios, engatilhei a arma e puxei o gatilho.
Algumas noites sem conseguir dormir direito, preciso de remédios periódicos para aplacar uma dor de cabeça terrível que me aflige. Aperta minhas têmporas como uma máquina inquisitorial de tortura, seria a culpa e o remorso agindo em mim? Matar um culpado pra mim foi tranquilo, mas um inocente foi a primeira vez, não achei que as conseqüências seriam tão funestas, se soubesse teria desistido, iria buscar uma rota de fuga, se é que alguém ou alguma coisa escapa da vista do meu chefe, uma ave de rapina, sempre a espreita prontinha para dar o bote.
Dez dias desde o jogo, o estádio lotado, o alvoroço, os tiros, empate da seleção e o crime. Não tenho saído de casa e nem me alimentado, o que aconteceu comigo? Estou me transformando em um afrescalhado sentimental, um relés menininho comovido com o final triste de um filme iraniano, acho que estou precisando de novas emoções, engatilhar a arma novamente e continuar mandando a escória para o ralo, junto com o sangue de uma vida infame. Foi no meio desses pensamentos que meu celular voltou a tocar. Meu chefe me deu esse celular com a linha segura para nunca ser rastreado ou deixar o número para quem quer que eu ligue, só ele sabe o meu número. Não contenho uma satisfação ao ouvir tão conhecido som, espero mais emoções, logo respondo sorridente:
- Alô chefe, sempre pronto.
- Quero você hoje no estádio depois das 23hs. Está sendo escalado para sua última missão. Eu pessoalmente estarei esperando, vou estar no círculo central. Entre pelo portão E, ele estará apenas encostado, a missão não trará nenhum risco aparente, mas um homem no seu lugar desse se precaver contra qualquer coisa, nunca se sabe o que se esconde em cada canto. Não falhe e mande lembranças a sua família, família é tudo na vida, boa sorte.
Trinta minutos, é o tempo que me resta de vida, talvez um pouco menos do que isso, vai depender da quantidade de sangue que jorrar do meu estômago aberto. Poderia querer contar sobreca minha primeira missão, onde quase abandonei tudo com medo que desse errado. Jogado tudo para o alto e como um covarde voltar a minha vidinha serena e estúpida de outrora. Tenho que continuar pressionando o buraco, assim retardo a minha morte, ganho alguns minutos a mais, na verdade não faz o mínimo de sentido isso, enfim.
Depois do telefonema fiquei ansioso esperando a hora passar, talvez depois dessa missão eu conseguisse voltar ao normal, recobrar o sangue frio e o coração de pedra. Quando a hora se aproximou, peguei a arma e vesti minha jaqueta, o estádio não fica muito longe de casa. Ao redor do portão "E", ninguém a vista, fiquei observando e na espreita, só um gato cinza passou ali perto, nada com que eu precisasse me preocupar. Entrei no estádio pisando devagar, olhando para os dois lados, no corredor principal fotos do time local e as paredes pixadas, pequenos vândalos sempre presentes, até para o time que amam, se bem que o portão "E" é dos torcedores do time visitante, faz sentido. Ao entrar no campo, avistei dois homens no centro do gramado, um era o meu chefe, o outro não conhecia. Os dois estavam sorrindo, mas era um sorriso que não me agradou. na verdade me deixou arrepiado, estava com medo, o que os dois queriam comigo? Foi quando meu chefe falou:
- Vejo que continua acatando todas as minhas ordens, foi um excelente funcionário, mas violou uma pequena regra. Tinha que eliminar a escória do mundo, matando um inocente você se tornou tão escória quanto, nosso trabalho termina por aqui.
Como assim terminou? Escória? Apenas segui as regras dele, fui obediente, será que ele queria apenas me testar? Fui enganado, filho da puta. Eu queria gritar mas estava muito chocado, da minha boca não saiu nenhum som. Percebi um movimento estranho do homem que estava com o chefe, fui tentar sacar a arma mas já era tarde, um tiro acertou a minha barriga, minha arma caiu no chão, eu caí no chão. Nessa hora o chefe se aproximou, pegou a minha arma, me analisou por alguns segundos e disse que eu tinha no máximo mais trinta minutos de vida, virou as costas e foi embora.
No centro do gramado tento usar o celular, sem sinal, não posso pedir ajuda, começo a pensar na minha família, meus filhos que vão ficar órfãos, sem o pai para dar apoio tanto afetivo quanto financeiro, quero chorar mas a dor me impossibilita, sinto todo o meu tórax adormecido e duro, o sangue continua jorrando, sinto que estou ficando muito fraco, tonto. Começo a ver nuvens brancas, meus olhos não enxergam mais direito, acho que estou morrendo. Minha respiração antes ofegante, agora é quase um sussurro, coração que antes pulavam agora bate muito devagar. Ouço passos, alguém se aproximando, um sapato importado, ele se abaixa, sinto o cano gelado da arma na minha nuca, é nessa hora que ele aperta o gatilho.