Eles Marcham (sie marschieren)

ELES MARCHAM (sie marschieren)

Quem tem méritos, tem inimigos!

ALUÍSIO DE AZEVEDO

Janeiro de 1950. O barco de transporte do exército deixou o porto de Ilhéus exatamente às seis da manhã e seguiu para o Sul. O céu praticamente já estava limpo e com isso o seu tom azulado preponderava. Fazia muito calor, pois o verão estava no seu ponto culminante. O barco tranqüilamente fazia o seu trajeto pelo mar através das ondulações altas e baixas das águas marítimas. Dissipava-se o rosicler de algumas nuvens, anunciando o inevitável nascimento do sol.

O primeiro tenente Edric Virgílio estava com o seu olhar fixo naquelas terras quase inóspitas, totalmente afastadas da civilização. Era a sua primeira vez ali. As saudades do Espírito Santo - mais especificamente da capital Vitória – ao mesmo tempo invadiam e abandonavam suas recordações.

Os rijos músculos dos braços eram visíveis; sua boina escondia o cabelo negro muito bem raspado; coturno preto e bem polido. Olhar de poucos amigos, mas necessário para comandar aqueles cinco homens que estavam sob sua autoridade. Cumpridor das ordens com uma severíssima disciplina a qual comovia e orgulhava seus superiores. Voz firme e decidida aliada a uma frieza que preenchem, destarte, muitos dos pré-requisitos para o ingresso no exército. Esta era a quinta missão do primeiro tenente Edric; e ela teria que ser cumprida à risca. Participou – ao lado de 25.000 soldados brasileiros - da FEB, na famosa campanha na Itália. Em julho de 1945, ele e os pracinhas foram laureados nas ruas de São Paulo. Para o primeiro tenente Edric Virgílio, somente interessava o sucesso absoluto da missão. E as ordens desta última foram emitidas por ninguém menos do que o então presidente Eurico Gaspar Dutra, antigo ministro da guerra no governo Vargas e simpático ao extinto regime nazista.

- Meu tenente, já estamos a chegar ao ponto de desembarque em três minutos.

- Muito bem, sargento Willem! Mande os homens prepararem os equipamentos!

Equipamentos... a saber: pistolas automáticas, facas, fuzis, duas bazucas, metralhadoras, granadas e até um antigo modelo duma Gatling móvel, utilizada pelos americanos na Guerra de Secessão. Quando foi afirmado que a missão tinha que ser um sucesso absoluto, tal sentença é levada até as últimas conseqüências pelo primeiro tenente Edric.

- Sim, meu tenente. Disse o primeiro sargento Willem Mendonça, filho de imigrantes holandeses. Alto, tez branca, olhos azuis e cabelos loiros raspados. Tão disciplinado quanto o seu primeiro tenente. Tem muita idolatria pelo seu superior, porque já participou de duas missões junto a ele, todas terminadas com sucesso... absoluto. Uma destas missões foi durante a tomada dum forte italiano na segunda grande guerra. Sargento Willem é oriundo de Santos. Ingressou no exército em desprezo aos comunistas. Ao contrário do primeiro tenente Edric, ele adoraria que os nazistas ganhassem a guerra e não ficou nem um pouco satisfeito em lutar contra o regime o qual ele tinha simpatia. Para ele, Vargas e o atual presidente Eurico são os Napoleões brasileiros.

Rapidamente, o barco chega ao ponto de desembarque: uma praia quase deserta, com alguns poucos pescadores que olhavam espantados para aqueles soldados muito bem armados.

- Soldado Rogério, espere a vinda dos dois homens e depois parta para Ilhéus. Como combinado, pegue-nos aqui amanhã às seis. Não se atrase.

- Sim, meu tenente.

Os seis soldados desembarcam na praia. Aquela cena se assemelhava uma pouco ao desembarque da Normandia, com a exceção de que não havia casamatas alemãs e o dia prometia ser bastante ensolarado. Apesar disso, aquela marcha enche de orgulho aqueles simples pescadores. O primeiro-sargento Willem segurava a bandeira da pátria amada, que esvoaçava em suas mãos, cena essa que se assemelhava aos épicos combates medievais. O patriotismo como nunca se viu antes. Apesar da participação ínfima, eles ganharam a segunda grande guerra! Trouxeram-nos um pouco do orgulho que esteve em coma durante muito tempo! Alguns pescadores largam os seus afazeres e insinuam bem alto o hino nacional, mas não conseguem ir além da quarta estrofe. Alguns prestam continência, outros apenas acenam para aqueles heróis.

A euforia se repete pelas janelas dos casebres, quando eles adentram na vila e chegam numa casa relativamente mediana, a qual se localizava numa ladeira que levava ao centro do vilarejo. Dois espiões do exército, que estavam à paisana, os esperavam na entrada da casa.

- Bom dia, tenente Edric. São exatamente seis e quinze. Vocês são pontuais, hein? Disse um deles, prestando continência.

- Bem, entremos. Disse o outro, repetindo o mesmo gesto do seu companheiro.

Eles agora estavam reunidos numa sala com uma grande mesa retangular de jacarandá. O ventilador no teto não foi suficiente para evitar a transpiração excessiva de todos ali, até porque as janelas não estavam abertas.

- Aqui está o mapa do perímetro feito pelos cartógrafos há dois dias atrás, tenente Edric. Disse um dos espiões.

- Minhas ordens àqueles cartógrafos idiotas foram claras. Atualizações de um dia. Redargüiu Edric.

- Tenho boas notícias. Olhe estes outros mapas. Veja que não há mudança nem nos padrões de vigília e nem no próprio local.

- Não há? Estranho! Bem, acho isso facilita o nosso trabalho. E sobre o nosso homem que temos que resgatar? Como podem ter certeza de que ele ainda esteja vivo? Acham que esses comunistas já não o torturaram e o mataram?

- Há dois dias atrás capturamos uma índia suspeita de ajudar os comunistas. Apesar da relutância inicial, ela nos deu mais detalhes sobre o local onde se escondiam os comunistas e afirmou que pretendem sacrificar o nosso homem no dia do... bem o tal dia é uma palavra indígena totalmente incompreensível aos meus ouvidos. Contudo, ela afirmou que o dia ainda não havia chegado, mas que estaria perto. Notamos também que, inicialmente, ela estava sobre o efeito de algum alucinógeno, por isso a sua relutância inicial.

- E onde está essa índia? Quis saber o soldado armeiro Paulo Dantas. Ostentava um longo cavanhaque. Era o mais musculoso entre aqueles homens ali. Moreno, cabelos e olhos negros. Estatura baixa. Seu apelido era “anão”. É perito em artilharia pesada.

- Agora chegamos ao “x” da questão – respondeu um dos espiões. - O interrogatório com a tal índia estava sendo um derradeiro sucesso, por isso decidimos levá-la a Ilhéus. No entanto, meu tenente, ao amanhecer, quando um novo interrogatório iria ter início, algo sórdido aconteceu. Encontramos a nossa prisioneira com todos os órgãos extraídos, sem nenhuma exceção. Tudo muito esquisito, pois a segurança do quartel era bem eficiente e não havia na sela sinais de arrombamento. Acredite, meu tenente, foi um trabalho muito bem executado pelos comunistas.

- Nunca ouvi falar de que os comunistas tiravam órgãos de seus delatores. Essa é a primeira vez e será a última. Isso eu lhe asseguro. Disse com segurança o primeiro sargento Willem.

- Não vamos deixar as emoções atrapalharem o sucesso desta missão. Pois muito bem. Já temos as informações necessárias. Homens, aprontem-se! Sairemos dentro de quinze minutos. E quanto a vocês, acredito que os teus disfarces já foram descobertos e não serão mais necessários. Fizeram um bom trabalho. Retornem para o barco, o soldado Rogério está esperando por vocês. Adeus.

Os dois espiões saem rapidamente. Quinze minutos depois, todos aqueles seis combatentes já estavam prontos para seguir com a missão. Eles adentram num túnel que se localizava abaixo da mesa. Ele foi construído por aqueles dois espiões, um deles possuía conhecimentos em geologia. Esse túnel acabava já na saída do vilarejo, que era perto da casa donde eles se reuniram.

- Todos os órgãos extraídos? É necessária uma precisão cirúrgica para fazer isso. A não ser que esses comunistas estejam em companhia de algum médico de Moscou, acredito que eles não possuem esta tecnologia de extração de órgãos. Vale lembrar que isso foi feito furtivamente e numa prisão! Exclamou o médico do exército Herman Atilius, enquanto eles atravessavam o túnel. Era um homem eternamente taciturno. Talhe médio e tez branca. Proveniente de Porto Alegre. Olhos verdes e sobrolhos hirsutos. Bastante polido nos seus modos e dono duma formalidade que enfastia.

- Concordo com o Herman. Um trabalho desse tipo demanda muita eficiência. Ou estamos muito desatualizados ou alguma coisa além da nossa compreensão aconteceu naquela prisão. Acrescentou o cabo e engenheiro Marcelo Sturm. Conterrâneo de Herman, Marcelo tinha o corpo delgado, cabelos ruivos, pele sarnenta e olhos azuis. A especialidade Cabo Marcelo é a demolição terrestre e subaquática, além de ser perito em comunicações.

- Em acréscimo a isso, temos inércia deles sobre o caso da vigília neste vilarejo. Os comunistas não são tão descuidados assim. Emendou o franco-atirador Norberto Macedo. Ele é da própria capital baiana. Alto, moreno, nariz adunco, olhos castanhos e cabelos negros.

- Tais indagações, apesar de pertinentes, não são apropriadas para este momento, pois estamos a adentrar na floresta. Sincronizem os relógios, ajeitem os equipamentos, vistam os uniformes de camuflagem, troquem os calçados e façam silêncio absoluto. Ordenou o primeiro tenente Edric, num tom de formalidade que enfastiava.

Os pesados coturnos foram substituídos por chinelos feitos de palha; o intuito era ser o mais silencioso possível. Ao se embrenharem nas ramagens fechadas, eles notam algumas gotículas caindo de várias folhas, como se tivesse chovido há cerca de algumas horas atrás. Alguns pássaros chilreavam dessemelhantes canções, com o intuito de dar as boas vindas às aqueles seres estranhos. Os ventos bem raramente refrescavam as vegetações, as quais eram castigadas pelo escaldante sol. À exceção dos pássaros, o silêncio reinava absoluto, pois a furtividade daqueles seis soldados impressionava, mesmo com os pesados equipamentos em suas costas; afinal, eles foram treinados para serem silenciosos, resistentes e mortais.

O cabo Marcelo Sturm ia vagarosamente na frente, portando um detector de minas explosivas. Ao seu lado estava o sargento Willem, que procurava por algum mecanismo de acionar armadilhas. Logo atrás vinha o franco-atirador Norberto, seguido do primeiro tenente Edric, do médico Herman e do cabo armeiro Paulo. Como assinalava no mapa, a aldeia dos índios estava bem próxima. Já dava para avistar uma torre de observação, provavelmente construída pelos comunistas.

- Soldado Norberto. Faça a sua parte. Ordenou o primeiro sargento Willem.

- Sim, meu sargento.

O Franco-atirador Norberto avança, ajusta sua mira telescópica e toma posição de tiro; contudo, ele não vê nenhuma movimentação na torre, nenhum observador. Então ele retorna e relata o ocorrido.

- Fiquem em alerta, acho que já somos esperados por aqui. Alguém do vilarejo deve ter alertado aos comunistas acerca da nossa presença. Como estamos bem camuflados nesta fechada vegetação, aqui ficaremos a esperar; com a exceção de você, soldado Norberto. Faça um breve reconhecimento da aldeia e compare com os dados contidos no mapa. Veja se ocorreu alguma alteração.

- Sim, meu tenente.

Uma hora depois o franco-atirador Norberto retorna.

- Meu tenente, apresentando relatório: asseguro-lhe de que o mapa da aldeia está atualizado. São os mesmo padrões de vigília na cabana onde está o nosso homem. A aldeia está quase deserta; há alguns poucos índios pescando ao longo do riacho e muitos deles estão caçando, o que é estranho, pois na aldeia há provisões suficientes para exatos um mês, talvez eles estejam recebendo ajuda dos comunistas; quanto às mulheres e às crianças, a grande maioria ainda se encontra nas suas cabanas. Por fim, não há sinais de comunistas na aldeia.

- Muito bem, soldado Norberto. Escutem! Já faz uma hora que aqui estamos e nada de anormal aconteceu. Imagino que eles ainda pensam que estamos na casa da vila. Tivemos êxito em ter saído dali furtivamente. Agora temos uma maior liberdade de movimentação e o elemento surpresa. Por isso, acredito que a hora de resgatar o nosso homem seja agora, tendo em vista que os índios ainda não retornaram dos seus pseudo-afazeres.

- Concordo, meu tenente. O soldado Herman e cabo Marcelo ficarão aqui para nos darem cobertura. “Anão”, prepare a metralhadora e as bazucas! Soldado Norberto, acredito que aquela torre será um bom local para a sua mira precisa.

- Muito bem! Sargento Willem, você vem comigo. Voltaremos dentro de dez minutos. Fiquem aqui escondidos. Isso é tudo, até daqui a pouco. Finalizou o primeiro tenente Edric.

De maneira bem estratégica, os índios mantêm o refém numa cabana localizada bem no meio da aldeia. Dessa forma, o primeiro tenente Edric Virgilio e o primeiro sargento Willem Mendonça devem se rastejar silenciosa e vagarosamente por aquelas matas podadas até chegarem ao objetivo. Muitas das cabanas ora eram grandes espaços abertos - onde algumas mulheres faziam algum tipo de trabalho artesanal com as palhas, outras descansavam em suas redes alvas – ora eram bem pequenas, cabendo no máximo duas pessoas. Alguns coqueiros ladeavam os recintos. Era numa dessas cabanas onde estava o dito refém. Chegando ali, eles notam dois índios - que poderiam ser as sentinelas - conversando com uma pequena índia; eles estavam um pouco afastados da cabana, e esta foi a oportunidade que os dois homens do exército esperavam para adentrá-la.

Lá dentro, havia um senhor muito bem amarrado numa tora de madeira. Sua fisionomia era duma pessoa cansada, suas indumentárias de clérigo estavam surradas, sua boca estava amordaçada por um tecido sujo e grosso, havia resquícios de sangue em seu nariz, seus cabelos grisalhos estavam despenteados e sua respiração estava ofegante. Ele abre um dos olhos e observa aquelas duas pessoas com roupas do exército rastejando até a sua direção. Silenciosamente, o primeiro sargento Willem corta as cordas que fortemente prendiam os braços daquele velho, enquanto que o primeiro tenente Edric tira-lhe a mordaça.

Bastou apenas um aceno com o dedo indicador na boca do primeiro tenente Edric, porque aquele velho entendesse tudo o que estava a acontecer ali.

- Consegue rastejar? Perguntou, em tom de sussurro, o primeiro tenente Edric.

- Tentarei. Respondeu o velho, arfante.

Ao porem as suas cabeças do lado de fora, eles notam que as sentinelas ainda proseavam com a pequena índia. O caminho estava livre, então eles põem-se a rastejar até onde estavam os demais combatentes.

- Soldado Herman, cuide do nosso homem.

- Sim, meu tenente. Imediatamente.

- Não sabia, disse o soldado armeiro Paulo Dantas, que o nosso objetivo era resgatar um padre! Muito estranho!

- “Anão” tem razão. Por que tanto interesse num clérigo? Inquiriu o cabo Marcelo Sturm.

- Tais indagações também perpassam por minha cabeça. Além disso, essa missão está muito fácil. E o soldado Norberto, já voltou da torre?

- Ainda não, meu tenente. Respondeu o cabo Marcelo.

De súbito, ouve-se uma enorme bola de fogo sair das montanhas, ela passa bem acima dos combatentes e ruma para a vila. Então uma enorme explosão repercute por todo aquele local.

- Se aquele míssil realmente destruiu o seu alvo, tenho que admitir, os comunistas estão em poder dum aparato tecnológico muito superior ao nosso. Escarneceu Paulo.

- É algo muito além da tua compreensão... meu filho. Falou, arfante e pela primeira vez, o velho clérigo que estava sob os zelos do médico do exército Herman Atilius.

- A propósito, Vossa Reverendíssima, como se chama? Indagou o primeiro sargento Willem.

- Padre... Emílio... Verilhas. Deus a de compensá-los... por estes vossos gestos de gratidão, meus súditos. Estes selvagens iriam... me sacrificar hoje à noite. Meu espírito já estava preparado para tal eventualidade, mas então, vós chegastes. O padre Emílio Verilhas ofegava a cada palavra pronunciada.

- V. Rer.ma, acho que você sabe alguma coisa acerca destes estranhos acontecimentos. Conte-nos, pois é imperativo que saibamos de tudo. Disse o primeiro sargento Willem.

- Tu...

- Acho que ele necessita de repouso e de morfina, meu sargento.

- Herman está certo, concordou o tenente Edric, o nosso homem ficará sob o teu zelo, soldado Herman.

- Mas... meu tenente, justo agora que ele ia relevar uma importante informação...

Contudo, não houve tempo para profícuas explicações, pois o franco-atirador Norberto vinha correndo rapidamente na direção deles e havia uma certa preocupação no seu semblante.

- Os índios descobriram que o nosso homem já não está sob o poder deles. O alarme já foi dado. Há muita movimentação na aldeia, muitos dos índios já retornaram. As mulheres e crianças estão sendo evacuadas da aldeia e alguns grupos de busca estão sendo formandos para vasculhar o perímetro. E há algo estranho, meu tenente, não há ainda nenhum sinal dos comunistas.

- Se as mulheres e crianças não estão mais na aldeia e os índios estão se preparando para um eventual combate, então, temos um motivo legítimo para a guerra, além disso, estes selvagens cometeram um grave erro, estão a colaborar com os comunistas. É hora de agir. Norberto, a torre é tua. Eu irei para o flanco esquerdo. Sargento Willem, você vai para o flanco direito. Soldado Paulo Dantas, dois tiros de bazuca serão suficientes para dispersar os selvagens, depois disso, você e o cabo Marcelo ficarão encarregado da Gatling. Eu darei o primeiro tiro. Depois, mostrem a eles o que é o inferno vermelho. Entendido!

- Sim, Senhor!

De fato, eles foram rápidos nas tomadas de decisões. Os índios ainda estavam se aprontando para a guerra, alguns ainda estavam pegando os arcos, as flechas, os tacapes, as lanças e as facas. Alguns ainda começavam a pintar a face. E quando o grupo de busca já estava formado, o primeiro tenente Edric cuspiu, da sua Thompson .45, uma rajada que derrubou logo três selvagens. Outra rajada foi lançada pelo primeiro sargento Willem, derrubando mais três. O franco-atirador Norberto, do alto da torre, tinha uma visão privilegiada. Cada tiro do seu fuzil era uma baixa. Quanto ao soldado armeiro Paulo Dantas, dois tiros da sua bazuca foram suficientes para jogar pelos ares seis índios. Feito isso, ele foi auxiliar o cabo Marcelo Sturm, que já deixara preparada a Gatling. Escusado afirmar que foi um derradeiro massacre. Em menos de 15 segundos de combate, os selvagens debandaram, fazendo com que o primeiro tenente Edric Virgílio soltasse um sinalizador. Era o sinal de cessar fogo.

Em total estado de alerta e com suas metralhadoras de mão preparadas, Edric e Willem se aproximam do centro da aldeia. Nenhum sinal dos índios, muito menos dos comunistas.

- Meu filho, o que foi aquele barulho? Perguntou o Padre Emílio Verilhas ao médico Herman Atilius.

- Estamos atacando os selvagens. Eles não têm a mínima chance.

- Isso é óbvio. Ajude-me a levantar, já estou um pouco melhor. Muito obrigado, agora leve-me até o teu superior, meu filho.

Repentinamente, uma outra enorme bola de fogo é cuspida da montanha.

- Todos para o chão! Bradou o primeiro sargento Willem.

De modo bastante preciso, a rajada de fogo atinge e explode a torre, onde ainda estava o franco-atirador Norberto Macedo. Esse último não teve a mínima escapatória, teve sua vida atalhada naquela imensa combustão.

Novamente, como num deja vu, outra grande bola de fogo, muito maior do que a primeira, é jorrada da montanha. Só que ao invés de se abaixarem, aqueles dois soldados rapidamente se embrenham na floresta. Realmente, foi uma boa estratégia, pois o alvo da grande rajada de fogo era justamente o centro da aldeia, que praticamente foi incendiada e destruída. Durante a explosão, um pequeno estilhaço de madeira atinge o braço do primeiro sargento Willem.

- Soldado Paulo Dantas, que espécie de arma é aquela que está incrustada naquela maldita montanha? Quis saber o primeiro tenente Edric, ao reencontrar os demais companheiros.

- Está além da minha compreensão, meu tenente. Se aquele tipo de arma está nas mãos dos comunistas, realmente o nosso país está perdido. Nunca vi uma arma que ajusta o seu poder de destruição, sem contar com a sua extraordinária precisão.

- Ai vem o Herman e o Padre. Meu braço foi atingido por um pequeno estilhaço de madeira, soldado Herman.

- Estou vendo, meu sargento. Está sangrando muito. Deixe-me tirar o estilhaço e estancar o sangue.

- Está melhor, Padre? Perguntou o primeiro tenente Edric Virgílio, vendo que o clérigo já andava normalmente.

- Sim, meu filho, o soldado Herman é assaz eficiente em seu ofício. Mas achei que tu deverias está consternado com a morte daquele soldado que estava na torre.

- Ele morreu no cumprimento do dever e tinha ciência disso.

- Bem... mudando um pouco os rumos da conversa, não havia necessidade de usar o vosso poderio bélico nos índios. Eles não chegam a ser nem a sombra do pesadelo que reside naquela montanha.

- Sim, vossa reverendíssima, disse o sargento Willem, era justamente nesse ponto em que eu queria chegar. Ou eu estou ficando maluco ou os comunistas estão com um aparato bélico mais atualizado do que o exército brasileiro?

- Comunistas? Comunistas!... respondam-me, vós estáveis a procura de seis pessoas, cinco homens e uma mulher, que há três semanas se refugiaram na vila?

- Refugiaram-se? Como soube que eles eram fugitivos e comunistas? Quer dizer então que não foram eles que o seqüestraram? Perguntou o primeiro sargento Willem, que pendia o seu braço esquerdo para o médico do exército Herman fazer os curativos. A voz do sargento tinha um tom de rancor, ressentimento e intolerância. O Clérigo Emílio Verilhas tinha percebido esse pormenor.

- É elementar, meu filho, que não foram os comunistas que me seqüestraram. Ao chegarem na vila, eles se refugiaram na pequena igreja, justamente no local onde eu estava entretido numa pesquisa religiosa. Apesar de dissimularem bem, notei que eles fugiam das autoridades. Era deveras visível que dois deles eram assassinos. E quando descobri um livro de Karl Max numa de suas mochilas e escutei uma conversa sobre “revolução”, “o povo no poder”, percebi logo que aquelas pessoas eram comunistas. Fiz questão de me manter neutro, dissimulando muito bem a minha ignorância acerca das suas origens e providenciando tudo o que eles pediam, o que por milagre do Senhor era pouco. Eles também se mantiveram afastados de mim, raramente conversavam, somente pediam provisões nas horas adequadas. Achei que eles iam ficar muito tempo ali, contudo, não demoraram muito na igreja, saíram cinco dias depois. Eles não disseram, mas deduzo que rumaram para aquela montanha, pois ouvi um deles dizer num aparelho de comunicação: “Contato! Estamos indo ao esconderijo”.

“Dois dias depois, dois comerciantes compraram uma casa mediana aqui na vila. Até esse ponto tudo bem, mas um de meus fiéis me contou que eles andaram perguntando sobre as seis pessoas que por aqui passaram. Isso me soou deveras estranho. Por isso, deduzir que eles estavam espionando para os comunistas. Certo dia, um deles veio ter comigo. A mesma pergunta foi repetida por mim e minha resposta foi de que as seis pessoas rumaram para as montanhas. Disse-lhe que eu os tinha alojado na igreja. Perguntei-lhes se eles não eram algum conhecido dele e a resposta foi uma seca afirmativa. Tu sabes, tenente, que estudo a fundo a mente humana para notar que aquelas seis pessoas simplesmente não eram de conhecimento daquele homem. Havia alguma intenção oculta e maligna no seu semblante”.

- Então, foram os índios que o seqüestraram? Por quê? Perguntou o sargento Willem.

- Sim. Numa fatídica e procelosa noite eles invadiram a igreja e me levaram para a aldeia. Além disso, eles profanaram o lar do senhor, furtando vários itens valiosos. São poucas as tribos indígenas que furtam lugares sagrados, por isso deduzo que eles estavam sob influencias dos comunistas. Não sei se tais informações são de grande valia para vós.

- Agora tudo faz sentido, Padre. Tua informação foi valiosíssima. Além dos índios, esses comunistas, que estão refugiados na montanha, estão recebendo ajuda bélica de Moscou. Há um mês e meio atrás, a marinha brasileira descobriu que um submarino soviético conseguira embarcar num cargueiro, grandes quantidades de pesados armamentos aos comunistas em atividade aqui na Bahia. Certamente, a mercadoria seguiria para o Rio de Janeiro e São Paulo, onde a segurança e a atividade do movimento são muito mais intensas do que aqui. Por isso, reforçamos a vigilância nessas duas capitais. No entanto, não houve nenhuma movimentação nas estradas, no mar e muito menos no ar. Por isso, concluímos que as armas ainda estejam por aqui, ou melhor, naquelas montanhas.

- Essa informação me preocupa, meu tenente, disse o primeiro sargento Willem, eu sei que nossa missão consiste em apenas resgatar o Padre. Mas, é o nosso dever, pela segurança do nosso Brasil, impedir que aquelas armas fiquem nas mãos daqueles desgraçados.

- Concordo com você, sargento Willem. Cabo Marcelo Sturm, o que você acha?

- Aquele tipo de montanha, devido às intensas vegetações, dificilmente irá desmoronar com a pouca carga de explosivos que temos. Neste caso, teríamos que utilizar as munições das bazucas e das granadas. Ainda assim, meu tenente, não lhe asseguro que...

- Você está se esquecendo de que podemos utilizar as armas dos soviéticos, caso elas estejam lá. Atalhou o soldado armeiro Paulo Dantas.

- Boa idéia Paulo, concordou o cabo Marcelo Sturm, se acharmos as armas dos soviéticos, asseguro-lhe que boto aquela montanha abaixo, meu tenente.

- Muito bem, disse o primeiro tenente Edric, vocês me convenceram, afinal, o soldado Norberto merece ser vingado. Vamos destruir aquelas armas! Padre, é imperativo que você vá conosco, a vila não é muito segura. Por isso, fique junto ao soldado Herman. Muito bem homens, vamos!

- Sim, meu filho. Mas peço que tu me ajudes a achar um item de extremo valor que os índios tiraram da igreja. Acredito que ele esteja também na montanha.

- Como sabe que o tal item está na montanha? Ele pode ter sido destruído durante a destruição da aldeia.

- É simples, sargento. Eu tenho fé.

- Vocês dois, chega dessas conversas infrutíferas. Agora sigamos em frente!

De maneira furtiva, eles se embrenharam na floresta e em vinte minutos já estavam no pé da montanha. A escalada foi razoavelmente fácil, com a exceção do Padre, que era amparado a todo o momento pelo médico do exército Herman Atilius. Finalmente, eles chegam numa entrada da montanha. Dava para notar que aquela entrada e aquele túnel foram feitos possivelmente pelos comunistas. Do lado direito e um pouco distante dali, era visível um tipo de canhão, cingido por adornos nunca antes vistos.

- Tenho certeza de que foi aquele canhão que matou o soldado Norberto. Segredou o primeiro sargento Willem.

Estava escuro lá dentro do túnel, não obstante, aqueles homens, a exceção do Padre, foram treinados para enxergar no escuro perfeitamente. No túnel, muito bem escavado pelos comunistas, eles não vêem nenhum sinal desses últimos.

Em três minutos, eles atingem um espaço aberto, lugar onde se encontravam as armas dos soviéticos, onde havia vários emblemas do martelo e da foice nas caixas.

- Não estou com um bom pressentimento sobre isso. Está fácil demais. Preparem-se, pressinto uma emboscada. Disse preocupado o primeiro tenente Edric Virgílio.

O silêncio ainda reinava absoluto e ainda nenhum sinal dos comunistas. Ainda assim, os combatentes estavam em sinal de alerta, cada um com as suas armas já preparadas.

- Certo, disse Edric, soldado Paulo Dantas e cabo Marcelo Sturm, comecem a plotar os explosivos. Usem também os explosivos dos soviéticos, se necessário. Sargento Willem e soldado Herman, revistem as armas, veja se acham alguma coisa além delas, documentos, liberações, qualquer coisa.

- Sim, meu tenente.

- Deixe-me ajudá-los, meus filhos.

Passado algum tempo...

- Mas que inferno é isto? Perguntou o primeiro sargento Willem.

- Eis o item que eu estava a procurar. Tu o achaste.

- Pode nós explicar o que seja isso, Padre?

- Meus superiores incumbiram-me de guardar este artefato...

- Mas, por que os índios queriam esse artefato? Por que eles o seqüestraram? Por que você disse que aquela rajada de fogo estava além da nossa compreensão? Você sabe de alguma coisa e...

- Soldados! Venham aqui, descobri uma coisa. Disse o primeiro tenente Edric.

Uma porta, que estava oculta num amontoado de pedras, assoma na frente daqueles homens. Havia ali símbolos incompreensíveis, adornos sem nenhum sentido, além disso, uma luz verde escura fulgurava na porta. Ao lado da porta, encontrava-se pequena fissura, com as mesmas características da porta, como se aquela pequena abertura fosse a extensão da passagem.

- Esta fenda... possui o mesmo comprimento...

O Padre Emílio Verilhas tenta encaixar o artefato ali. Ouve-se então um barulho sutil para além da porta.

- Padre, como você sabia que este item se encaixava perfeitamente naquela fenda? Inquiriu o primeiro sargento Willem.

- Sargento Willem, vá chamar o soldado Paulo Dantas e o cabo Marcelo Sturm. Temos que investigar o que está escondido por detrás desta estranha porta.

- Sim... meu tenente.

Dois minutos depois, aparecem os dois soldados que foram encarregados dos explosivos.

- Meu tenente. Os explosivos já foram plotados. Disse o soldado Paulo Dantas.

- Onde está o sargento Willem?

- Não sabemos, meu tenente. Respondeu Paulo.

- Eu o mande chamá-los!

De repente, a estranha porta se abre, revelando um espaçoso corredor, iluminado por escuras e bruxuleantes luzes verdes. Não se sabe donde surgia aquela frouxa iluminação, se era das laterais ou do teto. Dentro do túnel era mais quente do que o tórrido verão lá fora. Alguns gases saiam dos tubos verdejantes fixados em ambos os flancos.

- Muito bem, vamos adotar a seguinte formação: soldado Paulo Dantas e cabo Marcelo Sturm, vocês vão à frente com a Gatling. Eu e o soldado Herman cobrirem os flancos. Padre Emílio, fique na retaguarda.

- Tenente Edric, falou o Padre, tenho impressão de se retirarmos o artefato da fenda, a porta se fechará. Por isso, é melhor que o item fique conosco, caso não queiramos ficar presos aqui.

- Concordo. Muito bem, vamos!

O túnel tinha algumas bifurcações, mas finalmente eles chegam num enorme laboratório, cuja porta se abria automaticamente quando alguém se aproximava dela. O mais inusitado nesse local não eram apenas os instrumentos ali presentes, mas os corpos dos índios e de muitas outras pessoas que eles julgaram serem os comunistas, todos eles imersos em enormes tubos de ensaios e preservados por um estranho líquido viscoso verde. Por último, o que mais chamou a atenção daqueles homens foi o corpo do primeiro sargento Willem estendido numa mesa, com todos os órgãos retirados.

- Soldado Paulo Dantas e cabo Marcelo Sturm, como não há outra saída, apontem a Gatling para essa porta. Se alguém abri-la, abram fogo. Padre Emílio, reviste este maldito laboratório. Soldado Herman, o sargento Willem é todo seu. Descubra quem diabos fez isso com ele.

- Sim, meu tenente. O que me intriga são estes aparelhos cirúrgicos totalmente desconhecidos da medicina convencional. E o que me deixa mais perplexo ainda é o fato dos corpos dos comunistas também se encontrarem nestes enormes tubos de ensaios. Nada disso faz sentido, meu tenente.

- Concordo contigo Herman, disse o cabo e engenheiro Marcelo Sturm, nada nessa missão faz sentido.

- Sim, concordou o soldado armeiro Paulo Dantas, primeiro tivemos de resgatar um clérigo; depois massacramos uma mísera aldeia completamente indefesa; então vimos o poderio de fogo dum canhão nunca antes registrado nos anais da guerra; estamos agora num laboratório que, segundo o próprio Herman, possui equipamentos ultramodernos; por fim, vemos os corpos não apenas dos seis fugitivos comunistas, mas dos outros que ocultaram as armas trazidas pelos soviéticos. Tudo isso não faz nenhum sentido.

Então de repente...

Então de repente a porta se abre e fecha dois segundos depois. Mas não havia ninguém por ali. Mais súbito ainda, as luzes esverdinhadas e bruxuleantes se apagam.

- Abrir fogo! Ordenou o tenente Edric Virgílio.

Várias rajadas de fogo da velha Gatling vão de encontro da única saída da sala. Cegamente, as balas seguem sua trajetória retilínea para, por fim, encontrarem seu destino em algum corpo animado ou nalgum objeto sem energia, sem vida, sem alma.

- Cessar fogo. Ordenou novamente o tenente Edric, depois de alguns poucos segundos de fogo cruzado da ensurdecedora metralhadora Gatling.

O silêncio reina naquela sala, à exceção dos ultramodernos aparelhos presentes ali e dos sussurros feitos pelo padre Emílio Verilhas. Ele proferia alguma reza, talvez em grego ou latim, mas ninguém ali sabia ou não se interessava ou não prestava a atenção. O esquisito é que era possível notar que as balas atingiram a porta de vidro, contudo o efeito foi nulo, nenhum arranhão quiçá foi feito nela.

Então as luzes se acendem, mas se apagam no mesmo instante.

- Não atirem, alertou o tenente Edric, há algum bom estrategista neste local que deseja o desperdício das nossas munições.

- Padre, o item que você segura está com um brilho esquisito. Observou o soldado Herman, apontado para o artefato nas mãos do clérigo.

- Olhem! A porta se abriu e alguma coisa se aproxima. Esperamos suas ordens, meu tenente. Disse Paulo “Anão” Dantas.

Realmente a porta se abriu e uma enorme silhueta ali assomava. Até mesmo o padre Emílio percebia os pormenores daquele ser ali parado, apesar da escuridão completa da sala.

Repentinamente, o medo toma conta daquela sala e invade a mente até mesmo dos espíritos treinados para lida com aquele tipo de sentimento. Ressalta-se, que o treinamento não foi em vão, mas é que aquela força maligna se impõe de modo mais intenso e avassalador. Uma pessoa, que sabe lidar com as trevas, não sentirá o mesmo choque emocional do que as pessoas que nunca viram de perto o mal devastando as suas entranhas. Somente o treinamento em si não é o suficiente, é preciso acreditar acima de tudo, ter fé de que as sombras não hão de envolver o espírito, ter fé de que o mais aterrador abismo tenha um fim. Não apenas a ridícula e ilusória fé de remover montanhas, isso é crendice popular das mais ínfimas e desnecessárias possíveis, mas a fé real, ou seja, a fé do fortalecimento do espírito, da luta contra as ilusões dos espelhos, da luta contra as ilusões dos pensamentos, da luta contra os perversos sonhos. O padre Emílio Verilhas não proferiu aquelas incompreensíveis palavras em vão, havia uma finalidade primeira, o pressentimento dum mal maior do que as suas forças. Era imperativo preparar o espírito para o pior, na tênue esperança de que era possível superar o medo real e imaginário; este dois planos deveriam convergir harmonicamente. A mesma precaução não acontecia com os demais ali na sala, eles foram treinados para superar o medo da morte e não transcender o medo da vida, o medo de viver os sonhos e a realidade; para eles, a verdade última consiste no sucesso absoluto duma missão. Para Emílio, a verdade há muito está entregue nas mãos do Deus supremo; não existe a missão absoluta, o sucesso absoluto, mesmo que vários dos seus colegas e superiores preguem isso e o critiquem por ele não seguir tal linha de procedimento, pois Emílio somente ajuda aqueles que sinceramente querem ser ajudados, e isso já foi dito antes e não custa frisar mais uma vez. A morte e a vida têm a mesma intenção, fazem-nos elevar. Por isso, quando as luzes foram novamente acesas naquela sala, a morte e a vida não tiveram as mesmas concepções harmônicas sobre os seus respectivos desígnios, as suas desavenças foram fatais para aquelas pessoas ali presentes, ante aquele ser hórrido, indescritível e inominável. Até eu, o próprio narrador, sinto medo em descrevê-lo e nomeá-lo. Não almejo compartilhá-lo em meus sonhos.

Muito bem, a criatura apareceu na porta. Eis a falha crítica que se sucedeu:

O Soldado armeiro Paulo “Anão” Dantas sacou sua pistola e, à queima roupa, deu um tiro no coração do seu próprio companheiro, o cabo Marcelo Sturm, que morreu instantaneamente. Depois, ele começou a atirar para todos os lados e, para a sorte dos demais, os tiros não atingiram ninguém. Numa última e derradeira atitude, ele ceifou sua própria vida dando-lhe tiro um na própria cabeça. Ele imaginara que todos a sua volta eram possíveis alvos em potencial e que, mais cedo ou mais tarde, eles iriam corrompê-lo para um lado sepulcral e muito lúgubre da ditadura. Ele próprio estava incluído nesta loucura.

O médico do exército Herman Atilius teve graves acessos de vômitos de tal modo, que perdeu a consciência cinco segundos depois. Para ele, aquela coisa representara algo muito mais nojento e fétido do que a sua profissão exigia que ele suportasse. No entanto, o soldado Herman teve sorte, após ter desmaiado, todos os seus sentidos se desvaneceram junto com a sua consciência.

O tenente Edric Virgílio urinou nas calças e se encolheu num canto da sala. Ele chorava feito uma criança, soluçava em demasia e clamava avidamente por seu pai, uma pessoa sempre ausente na sua disciplinada vida, na sua exagerada exigência para consigo mesmo, tudo teria que ser um sucesso absoluto. Entretanto, aquela missão não foi igual a que fora a Segunda Guerra Mundial. Ali, ele já sabia o que iria enfrentar, o inimigo já era conhecido. Mas, aquela criatura que estava parada na porta era de outro mundo, era dotada duma presença maligna muito mais aterradora do que os canhões e as metralhadoras alemãs. Desta vez, o sucesso não foi absoluto.

Por fim, sobrou o Padre Emílio Verilhas...

No final das contas, a montanha maldita viera abaixo. Os falecidos cabo Marcelo Sturm e o soldado armeiro Paulo “Anão” Dantas fizeram bem o seus trabalhos. Não sobrou pedra sobre pedra, nem mesmo resquícios da criatura e do seu poderoso canhão. Quanto aos índios, eles voltaram a ser pacíficos e se enclausuraram cada vez mais nas suas aldeias. Durante algum tempo, eles viveram felizes no esquecimento.

Rio de Janeiro.

Um mês depois.

A sacada da mansão do cardeal Galdemar Constâncio tinha uma vista privilegiada. Dava para contemplar, por completo, o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar e a linda praia de Copacabana.

A Vossa Eminência estava a contemplar justamente tais paisagens, quando um de seus subordinados anuncia que um certo convidado já havia chegado.

- Mande-o entrar.

- Sim, V. Em.a.

Pouco tempo depois, o tal convidado do cardeal adentra a sala, acompanhado do subordinado.

- Deixe-nos.

O subordinado faz uma mensura e sai, deixando os dois homens se estudando alguns minutos na varanda. Foi o cardeal quem primeiro quebrou o silêncio.

- Por favor, sente-se Vossa Reverendíssima.

- Obrigado, Vossa Eminência.

- Vejo que a tua convalescença foi breve. Alegro-me em vê-lo bem.

- Obrigado mais uma vez, Vossa Eminência.

- Impecável e copiosamente eficiente, eis as tuas qualidades V. Rev.ma. Cumpriu com zelo o teu divino dever. Li o teu relatório ontem à tarde, por isso, tenho um conselho para lho dar.

- Teus conselhos hão de ser sempre bem-vindos, V. Em. a.

- Sim, hão de ser. Pois bem, saiba que o que se sucedera com aqueles bravos soldados, lembra-te, tu não tens um átimo de culpa. Eu, com os poderes que me foram concedidos, isento-o de toda a culpa que lhe recair. O presidente Eurico foi sábio numa parte, mas leviano noutra. O ministério do exército não tem o direito de culpá-lo pela morte daqueles homens. Eles sabiam o que os esperavam e...

- Não, Eminência, cortou o Padre Emílio, eles não tinham ciência do desconhecido; esperavam me resgatar e combater um inimigo comum do país, os comunistas. Alguns até desconfiaram da verdadeira intenção da missão, como o sargento Willem. Um homem terrível Eminência, sádico e adorador do fascismo. Tive um leve receio de que ele pusesse tudo a perder ao me questionar diretamente, não obstante, seu fado foi calamitoso; não pior do que os demais, que ainda sentem as seqüelas daquela presença a qual não ouso mencionar aqui, V. Em.a.

- Sim, Vossa Reverendíssima, era esse ponto que eu almejava chegar. Sacie-me esta minha leve curiosidade: como tu escapaste daquele ser? O seu relatório estava deveras abstruso nesta parte. Fio que tu abusaste muito da literalidade, do estranhamento; tu não seguiste um padrão determinado, havia multiplicidade de sentidos. Sei que a montanha foi completamente destruída e que tu foste encontrado delirando na praia pela marinha costeira, mais especificamente por um soldado chamado Rogério. Junto de ti, encontravam-se o médico Herman, totalmente desacordado, e o tal tenente Edric, o qual estava numa espécie de devaneio muito pior do que o teu. Explica-me.

- Pois não, V. Em.a. O artefato daquele Deus Pagão Nórdico deve ser mantido afastado de qualquer olhar curioso. Seu poder de destruição é inefável e indescritível. Foram muitos estudos para compreender a sua evocação e, ainda assim, pode-se perder o controle sobre tal poder.

- Asseguro-lhe de que o artefato está seguro em Roma.

- Melhor assim, Vossa Eminência. Aquele item poderia ter também me obliterado. Foi um milagre do Grande Deus.

- Eu sei disso. Saiba também que tive muito trabalho junto ao Presidente em conseguir o auxílio do exército para lho resgatar. Para isso, tive de unir o útil ao agradável. Eu sabia que eles sabiam do clandestino desembarque das armas soviéticas no litoral baiano. Eu tinha conhecimento também de que eles perseguiam seis perigosos comunistas, aqueles de quem tu alertaste aos teus superiores de Salvador, no teu eficiente relatório. Durante um tempo, pensei que foram os comunistas que o seqüestraram. Contudo, isso não fazia nenhum sentido, pois, no teu relatório, tu dizias tê-los abrigado na igreja e que eles nem um pouco desconfiaram da tua ignorância acerca das suas ideologias políticas. Além disso, tu somente foste seqüestrado alguns dias depois de eles terem ido para as montanhas.

- Acredito que isso deva ter sido o perfeito motivo para Exército vir em meu resgate. Muito bem pensado, Vossa Eminência.

- Obrigado. Mas, mudando um pouco os rumos da conversa, recebi a tua solicitação. É verdade que estás mesmo a partir para a Escandinávia, mais especificamente para a remota aldeia de Vik, Islândia? Uma cidadezinha litorânea meio pacata, fria e tempestuosa, não?

- Sim. É lá que meu destino me aguarda, V. Em.a.

- Estaremos perdendo um grande servo de Deus, apesar das tuas predileções.

- Não entendi, Vossa Eminência.

- Há muito tempo que eu já sei das suas vocações para o luteranismo. Por isso, a tua partida para os países nórdicos, reduto dos luteranos. Não guardo rancor por isso, Vossa Reverendíssima. Desde ontem, após ter lido o teu relatório, que eu já deferira a tua solicitação.

- Muito obrigado, V. Em.a.

- Mais uma coisa. Pressinto que tu estás um pouco agitado. Há muita balbúrdia em seus pensamentos. Estás se sentido bem?

- Acho que sim.

- Bem, acabou o tempo da tua visita. Tenho outros compromissos. Que Deus lho acompanhe onde tu estiveres, Padre Emílio Verilhas.

- Mais uma vez, obrigado pela compreensão, V. Em.a.

O avião rumava para Reykjavík, Islândia. Nele estava o Padre Emílio Verilhas numa eterna agitação folheando alguns jornais. Alguns deles chamaram a atenção do clérigo pelo título da notícia “Eles Marcham: o exército brasileiro destrói armas soviéticas”. Além disso, mencionava também que os comunistas, todos eles, foram mortos por terem reagido à ação efetiva do exército. “Então”, pensou Emílio, “o exército e a igreja sabiamente abafaram todo o caso. Nada foi dito sobre o artefato, sobre a nave alienígena, sobre a criatura, sobre o destino dos soldados que bravamente me ajudaram (o médico Herman e o tenente Edric estão e ficarão eternamente num sanatório vigiado pelos militares; seus estados psicológicos são gravíssimos)”.

“Certa vez”, disse Emílio para si, “um colega de trabalho meu, estimulado pelo excesso do vinho, disse-me uma frase interessante ‘Emílio, filosofar o Brasil é como dar descarga após a defecação’. Não concordo muito com tal afirmação, mesmo que a minha e muitas outras profissões não sejam valorizadas como deveriam aqui. Não sei, mas é possível que eu não concorde. Bem, suportei o que pude o desagrado dos demais. Sempre fui aprazível com a simplicidade das coisas, mas há um limite. Há um limite suportável”.

- Há um limite suportável!!! Bradou o Padre Emílio, socando a janela do avião.

- Are you alright, priest? Perguntou o idoso que se sentava ao lado do clérigo. Pelo sotaque, provavelmente inglês.

A princípio, não houve resposta, mas contínuos e confusos pensamentos que dilatavam os olhos do Padre. “Sempre reagi filosoficamente à dor, entretanto, depois do encontro com aquele ser, minhas noites jamais foram as mesmas, além de curtas, elas me causam uma tenebrosa agonia. Ninguém saiu ileso daquele confronto com os nossos próprios medos. Está ai o efeito que eu quis em minha vida. O efeito da loucura, do questionamento em excesso, da dúvida sobre o meu próprio ser. Por que eu escolhi morar em Vik? Meu destino... aquele cardeal... era provável que ele me promovesse. Eu merecia. Merecia? Não sei ao certo, fiz o melhor possível das coisas que me foram concedidas. No entanto, há um peso de culpa. Não sei o que é, mas ela existe. Se as influências internas deveriam ser mais importantes e mais significativas do que as externas e se dentro do ser se encontra a essência, jamais fora dele, o que dizer então daquele fatídico encontro? Como manter as aparências se a ruína está mais do que evidente? As aparências. As aparências. As...”.

- I am pretty good, my son. Don’t worry about it. I guess I am…

Ramon de Freitas Ribeiro
Enviado por Ramon de Freitas Ribeiro em 21/04/2010
Código do texto: T2209881
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