As lágrimas de Helena
AS LÁGRIMAS DE HELENA
Matamos o tempo; o tempo nos enterra!
MACHADO DE ASSIS
Prólogo
As trevas. É apenas isso o que o trabalhador Marcus se depara no infinito alarmante que está na sua frente. A lua parece ser o próprio olho maldito a lho observar, e a sua alvura deliberadamente não consegue iluminar a estreita trilha que Marcus perpassa. Era um estreito e sinuoso caminho que o levava direto para o seu lar. A indigente mulher e a sua filha - uma bela nórdica loira de olhos verdes - esperavam-no. Contudo, ele não voltaria, ele não podia voltar, porque a lua cheia o guiava para um misterioso caminho, onde Marcus teria as suas emoções, o seu corpo e principalmente o seu espírito, todos eles obliterados por uma força funesta muito mais elevada do que a sua ínfima coragem.
Realmente o trabalhador notava que aquele atalho não era o caminho para sua casa. As neblinas se intensificavam mesmo com os ventos cortantes que faziam o frio subjugar o calor de dez minutos atrás. Apesar do medo do desconhecido, o corpo de Marcus desobedecia ao atual estado psicológico deste e seguia em frente, sempre em frente, direto para o abismo.
Subitamente, as neblinas se dissipam como as fluviais cortinas dum espetáculo macabro que estava preste a ter início. O cenário que se mostrava era um tanto esquisito, mas não menos assustador. Era uma enorme área aberta com centenas de frutos geóides esparramados pelo chão cheio de visgo. O bálsamo sufocava aquele pobre rapaz, aquele que prestes estava a se transformar num títere.
Bem no meio dessa área havia uma cratera retangular onde caberia uma pessoa de talhe alto. Marcus até que tentava retirar seu corpo daquele local, mas era embalde, o mal já dominava seu espírito. E para piorar, o fruto maldito já o prendia pelos pés e o guiava diretamente para o tal buraco. Ali chegando, observava-se que havia dentro do orifício as cinzas das sementes destes frutos geóides que o cingiam. Um grande morcego surge das trevas lunares, aproxima-se do trabalhador, morde o seu colo e começa a sugar o sangue daquele ser hipnotizado pela grandeza ilusória que o cercava, pela mentira dum futuro sempre pomposo, e principalmente pela certeza de que aquele fruto jamais seria excomungado.
Marcus apenas fazia o que era-lhe ainda permitido fazer, gritar e chorar, enquanto o morcego satisfazia a sua sede. E já satisfeito, o roedor se dirige à cratera e derrama alguns mililitros de sangue nas cinzas ali expostas. O líquido vermelho, ao se encontrar com as cinzas, produzia uma fumaça de cor púrpura que se espalhava rapidamente pelo buraco. Impossível era ver o que se passava ali dentro. De repente e bem lentamente, aparece uma agitada mão lívida, quase esquelética, a segurar um dos flancos da cratera.
Começava então uma era de terror e destruição naquela terra. Muitos perderiam a sua sanidade, muitos recusariam a sua própria existência, muitos sofreriam e poucos conseguiriam se livrar daquela devastadora maldição.
Quanto a Marcus, ninguém sabe sobre a sua origem, o seu meio e principalmente, o seu derradeiro fim.
Capítulo 1
1945. Os russos tomam Berlim, os alemães capitulam; os americanos destroem Hiroshima, os japoneses capitulam. É o fim da Segunda Guerra Mundial. Entretanto, nenhuma destas importantes notícias chagava ao vilarejo que se localizava a alguns poucos quilômetros da cidade ‘pedra negra’, cujo nome oficial é indígena. Se tais informações chegavam naquele povoado, eram bem atrasadas e bastante deformadas oralmente. Contudo, de uma coisa o povo dali foi informado com antecedência, que alguém importante ali residiria.
Era uma grande novidade naquele verão de Janeiro: a chegada do padre Emílio Verilhas. A capela, junto com a sacristia, já havia sido erguida. Ainda podia-se sentir o aroma da tinta alvejada, do verniz da cruz de madeira que sustentava Jesus; ainda podia-se notar o brilho dos dois tocheiros ainda apagados, os adornos da mesa principal onde o padre rezaria a sua missa, o hissope, alguns círios, as seis fileiras de negras cadeiras feitas de jacarandá para os fiéis se assentar, a pequena biblioteca e o pequeno recinto para o clérigo. Tudo feito sob as recomendações da paróquia da capital baiana.
A Vossa Reverendíssima chegou numa carruagem preta, guiada por quatro cavalos e um cocheiro. Eles vieram da capital e a viagem foi muito longa e cansativa. Mas isso não foi estorvo para Emílio inspecionar pessoalmente, logo na sua chegada, o seu local de trabalho. Ele estava vestido a caráter: uma batina preta, uma sobrepeliz, um barrete e um médio crucifixo de marfim em derredor do seu colo.
Ele era oriundo da própria capital baiana. Toda a sua vida fora dedicada aos estudos, sempre enclausurado numa biblioteca. A vida lá fora lhe era desconhecida. Seu corpo era esguio; olhos castanhos e redondos; cabelos grisalhos, transparecendo que a sua idade está no fim dos quarenta; tez branca com algumas rugas principalmente na face. Era uma pessoa sisuda, taciturna, extremamente metódica, com a velha disciplina germânica de viver; refletia bem as suas palavras; bastante erudito no seu âmbito de estudo: o ocultismo e o misticismo. Muitos dos seus colegas e superiores dizem que ele tem uma inclinação para o Luteranismo, e Lutero está entre os seus preferidos, mas Emílio prefere ocultar esta sua predileção. Segundo ele, não é ainda correto afrontar os alicerces do catolicismo, harmonizar com este obstáculo é imperativo.
Praticamente toda a população do vilarejo estava curiosa para ver a chegada do eclesiástico. Todos pensavam que a principal função dele era livrar-lhos do mal que os assolavam, no entanto, ao que parece e contra a sua vontade, o padre Emílio Verilhas tinha outros desígnios. De fato, ele estava muito amuado por ali estar, e por dois agravantes motivos: o de abandoar o silencioso e pacífico claustro da igreja da capital para residir naquele vilarejo, e a outra razão diz respeito aos propósitos dos seus superiores.
A missa já havia sido marcada para o outro dia. Meia hora antes de começar, a igreja já estava repleta de novos fiéis, sendo que muitos ficaram do lado de fora. Fazia muito calor no interior da capela, mesmo com as oito janelas abertas.
Depois de feita toda a liturgia, era chegada a vez de o padre pregar o sermão, cuja temática se intitulava ‘As superstições’.
- Todo este medo inútil que vós sentais, o medo que notei em vós logo na minha chagada, tudo isso revela a falta de fé no Senhor. Meus novos fiéis, eis a função que me foi incumbida por meus superiores: acabar com estas vossas crenças no eterno mal, no mal que antes iludia vossos olhos com o seu feitiço perverso. Mas não se preocupem meus fiéis, de hoje em diante, este vilarejo estará protegido pelo viço maior de todos, o viço de Deus.
Embora o sermão fosse demasiado artificial, ele surtiu algum efeito, pois por seis meses não houve nenhum caso de sumiço de cavalos, gados e por último, e mais grave, o sumiço de garotas adolescentes. Os moradores deram todo o crédito à presença cristã do padre Emílio Verilhas.
Logo quando chegou ao vilarejo, o capelão foi alertado quanto a estes causos. Apesar das exortações dogmáticas que compete a sua profissão, o sacerdote não ficou alheio a estes acontecimentos. Nas muitas horas de folga, ele ficava confinado na sua biblioteca a fazer os seus estudos sobre o ser maligno que afligia aquele vilarejo. Quanto às pesquisas de campo, além das informações conflitantes e supersticiosas dos habitantes, o eclesiástico foi ver com os próprios olhos o castelo do anfitrião maléfico. O que não foi animador. Havia ali uma presença maligna que nunca descansava, que apenas esperava o momento certo de emergir e essa ocasião estava próxima. Eis uma das razões do clérigo ter receios de entrar no tenebroso castelo. Por último, o que mais impressionou o padre foi o fato de como aquele recinto foi construído, quem foi o seu arquiteto, quem foram as pessoas que o ergueu e, por fim, quem ali residia.
Todas estas dúvidas permeavam a mente lúcida do padre Emílio Verilhas. Mas as respostas custavam a aparecer. E foram necessários seis tranqüilos meses para que as respostas viessem à tona da pior forma possível.
Capítulo 2
Era chegado o limiar do mês Julho. O inverno estava no seu auge. As chuvas acoitavam frequentemente o vilarejo. À noite, as neblinas a todo o momento cobriam as planícies verdejantes e densamente arborizadas. O frio obrigava o corpo a tremer involuntariamente.
O Padre Emílio Verilhas sentia algo lhe incomodando naquela noite carregada. Seu relógio de corda marcava dez e dezoito. Parecia que o mal havia entrado na cidade, parecia que as sombras das cinzentas nuvens sufocavam a lua, parecia que o sopro da escuridão profunda estava mais forte. O sacerdote encontrou na oração uma aparente solução para a sua angústia, no entanto, o estilhaçar duma das janelas da biblioteca o faz perder a concentração. No mais vagar, entra o altivo e grande morcego, com seus olhos vermelhos e dentes afiadíssimos. À medida que ele vai entrando, as sombras tomam de assalto o recinto. Ele tenta morder Emílio, mas este o aponta a cruz de marfim, fazendo o roedor se afastar. Rapidamente, o eclesiástico saca um pote contendo água benta e o despeja sobre o corpo acabrunhado do morcego. A cena não é das mais aprazíveis: o roedor se decompondo, como se alguém tivesse jogado ácido em seu corpo, como se aquela água sagrada queimasse como o fogo das profundezas. No final, tudo se resume as cinza.
O Padre Emílio tenta recompor a sua respiração arfante, mas alguém bate fortemente na porta.
- Padre, você está ai?
O clérigo abre a porta. Era o dono da taverna principal com uma feição aterradora. Era um velho atarracado, com uma enorme costeleta; possuía olhos azuis e cabelos grisalhos. Poderíamos dizer que ele era o improvisado administrador do vilarejo antes da chagada do Padre. Foi dele a idéia de requisitar a ajuda divina da capital. A honestidade e a honra o acompanham desde a tenra idade. É um bom ser humano. Zela com eficiência e parcimônia os seus negócios.
- O que foi que aconteceu por aqui Padre?
- Nada que eu não pudesse solucionar com as graças que Deus deu-me, meu filho. Mas o que o trás aqui? E por que esta fisionomia assustada?
- O mal voltou a atacar Padre Emílio. Acho melhor você vê com os seus próprios olhos. Venha!
- Espere um momento. Deixe-me levar minhas armas.
As armas eram a Bíblia, um colar de alho, a água benta, estaca de madeira e o martelo.
Chegando à taverna, Emílio vê o corpo duma donzela estendido numa mesa. Ela estava extremamente pálida, não havia sangue em nenhuma parte do corpo e podia-se notar duas recentes marcas de dentes cravada no pescoço.
- Onde vós achastes o corpo? Inquiriu Emílio.
- O pai da moça notou um barulho no quarto da sua filha. Ao verificar, viu que ela não mais ali estava. Ele a procurou desesperadamente pela floresta e acabou encontrando-a neste estado, perto do castelo. Respondeu o dono da taverna.
- Padre, o mal voltou. Era o que temíamos. O que você nos aconselha fazer? Perguntou o pai da donzela, um tanto perturbado psicologicamente devido ao triste destino encontrado por sua filha.
- Tu seguiste minhas recomendações, meu filho?
- Sim Padre, fielmente. As cruzes no quarto, os dentes de alhos na janela, as cortinas sempre fechadas. Tudo como Vossa Reverendíssima ordenou.
- Hum... era o que eu temia...
- Temia o quê?
- A aberração conta com a ajuda dum lacaio. O primeiro sangue corrompido. O primeiro espírito a ser amaldiçoado. O primeiro corpo a ser transformado num títere. E pressinto que vós estais a me esconder algo, é justamente esse detalhe que me inquieta, é essa a peça que falta para desvendar todo esse mistério. O silêncio de vós é a resignação em favor desta maldição que vos assola. O medo faz com esta neblina noturna e diabólica ofusque os vossos discernimentos, e principalmente os fazem perder a fé naquele que é o único Salvador. Estais compreendendo a gravidade da situação? Minha alma já está salva, mas e a de vós? Só para atenuar o que se passa, vós estais proibido de receberem qualquer hóspede no período da noite, ou até mesmo vagarem por ai. Crucifixos, os dentes de alho, as cortinas fechadas e fiquem sempre atentos. Vós estais a entender?
Depois do sermão incisivo, todos ali presente estavam com os olhares para o chão. Somente o dono da taverna tomou partido:
- Mas devemos ficar esperando o próximo ataque Padre? Qual a utilidade de tanto tempo de planejamento que a Vossa reverendíssima vem fazendo, se nunca tomamos a ofensiva? Acho que esse é o momento de invadir aquele castelo e queimá-lo. Duvido que aquele monstro seja páreo para todos nós.
- A resposta a essa vossa dúvida é sim, meus filhos. Aquela força que ali reside está além da vossa coragem. Agora, afastem-se todos da donzela, ainda há uma coisa a fazer. Esta donzela, apesar de morta, tem ainda seu espírito atormentado pelo mal. Para que sua alma seja entregue a Deus, torna-se imperioso fazer algo. Aconselharia vós tirardes as mulheres daqui. A cena que vós ireis ver será demasiada sórdida, mas necessária.
O Padre Emílio Verilhas saca a estaca de madeira e o martelo. Ele encosta a ponta da estaca no meio da caixa torácica da donzela e, com a frieza germânica do seu labor, golpeia-a com o martelo, fazendo com que a tal estaca de madeira adentre violentamente no peito daquele corpo ali estatelado. Isso faz com que a donzela solte um grito agudo e aterrador, que ecoa por todo o vilarejo e faz também muitos pensarem que ela ainda estivesse viva. Contudo, o eclesiástico explica que por pouco aquele corpo não seria dominado pelo mal e que aquele procedimento era de todo necessário. O sacerdote dar ordens para cobrir o corpo, pois no dia seguinte dar-lhe-ia um enterro descente, leia-se: um enterro cristão. O Padre Emílio já estava a sair da taverna, mas ele pára, volta-se para os seus horrorizados fiéis e diz:
- Quase me esquecia duma coisa. O serviçal daquela aberração é proveniente deste vilarejo e, pelo que consta nas minhas pesquisas, ele tinha uma linda filha com olhos duma esmeralda. Ainda me indago sobre o paradeiro dela, mas, Deus há de me dar, no seu devido tempo, a resposta que eu procuro. Até amanhã. Isso, se Ele permitir que cheguemos ao dia de amanhã.
Não, Ele não irá permitir que as sombras ainda se dissipem. A noite ainda é longa, há de ser muito longa...
Capítulo 3
- Não acredito que teremos que passar por aquele vilarejo. Não há como fazer um desvio?
- Minha cara Helena, estamos cansados, com sono e com muita fome. Olhe para ti, meu amor, estás com a tez alva como a Via Láctea. Eu morreria se algo acontecesse contigo. É contigo com quem eu me preocupo, por mim, a minha mulher Érika pode morrer de inanição e o seu marido Dr. Silvério pode ter espasmos eternamente. Mas tu; é Deus no céu e tu na terra.
- Se eu fosse uma esposa ciumenta, juro-lhe que te jogava fora desta carruagem. Deixaria que tu te perdesses nesta mística neblina que nos cinge.
- Concordo com a Érika. Tu estás impossível, Márcio. Melhore as suas piadas ou jamais eu o convidarei para conhecer as praias de Ilhéus.
- Bem, se eu fosse um péssimo cocheiro, eu os deixaria perdido nesta neblina. Agradeçam-me por isso. Principalmente tu, Dr. Silvério, eu sei que o escuro o atormenta. Estou a tirar vantagens disso.
- Arrogante como sempre. Oh, tu não mudas Márcio. Minha amiga Érika, uma coleira de grilhão para este seu marido seria uma atitude copiosamente apropriada. Mas estou preocupada com o nosso destino. Márcio, meu querido, aquele vilarejo... não há outro?
- Não perto daqui. Já estamos em vias de chegar ao vilarejo, enquanto que a cidade ‘pedra negra’ é um pouco distante.
- Poderíamos fazer esse sacrifício.
- Não sou homem de fazer nenhum sacrifício, minha querida Helena.
- Nem por mim?
- Uma ponta dum iceberg chamado ciúme começa a surge bem no meio do oceano. Estou me sentindo um pouco incomodado por estes vossos sussurros.
- Eu estou de pleno acordo com o Dr. Silvério. Acho imperativo que vocês sigam o decoro.
- Senhorita Érika, meu amor, estamos no meio do nada, já ultrapassamos há muito as fronteiras do império romano, ninguém tem conhecimento sobre estas terras, o que é pior, ninguém sabe onde estamos. Então querida, as leis da grande civilização não se aplicam a estas terras; acredito que a palavra decoro seria uma ofensa para eles.
- Oh, Márcio. Como tu és cruel com a tua mulher. Érika não o merece, tu não tens o direito de contemplar o rosto angelical dela todos os dias em que o sol se ergue. Eu não suportaria a tua presença durante uma hora.
- Agora tu ofendeste-me Helena.
- Oh, desculpe se fui desajeitada. Isso era um elogio. Tu... tenha mais atenção por onde andas... olhe para frente... cuidado!...
- Estão todos bem?! Helena? Érika? Dr. Silvério?
Capítulo 4
- Não estamos sendo honestos com o Padre Emílio. Ele é o mensageiro das palavras de Deus. Estou me sentindo culpado por tudo isso. Ah, minha alma encontrar-se-á no inferno. Tenho que tomar uma providência, não, nós temos que tomar uma providência. Temos que contar aquele fatídico acontecimento ao Padre. Ele saberá o que fazer. Estão todos de acordo?
- De acordo.
- Então está assentado. Deixem que eu mesmo irei lá ter com ele. Que Deus me ajude!
Quando o dono da taverna estava por sair do recinto, ele toma um susto. Ele se lembra que tinha deixado a porta do seu recinto aberta. Entretanto já era tarde. Quatro pessoas - dois homens e duas mulheres – assomam na soleira. Eles estavam trajando roupas bem luxuosas e os dois homens carregavam algumas maletas de viagem. Os habitantes do vilarejo, que ali estavam, ficaram atônicos com aquela cena. Márcio foi o primeiro a romper o embaraçoso silêncio.
- Salut! Bonsoir, monsieur et madames.
- Márcio, seu tonto! Nós não estamos em Paris e eles não falam francês. Mantenha a decência! Censurou sua esposa Érika.
- Quem são vocês? Perguntou o dono da taverna em tom de ameaça.
- Bem, respondeu Márcio, nós tivemos problemas com a nossa carruagem... esta neblina que custa a passar... e... queremos saber se vocês têm dois quartos para nos hospedarmos. Pagaremos, é claro.
- Não há mais vagas e vocês não são bem vindos aqui. Saiam imediatamente. Ameaçou o dono da taverna, já portando uma espingarda nas mãos.
- Mas, senhor, interveio Dr. Silvério, há uma senhorita que teve seu braço ferido. Ao menos algum remédio caseiro demonstraria um pouco de hospitalidade, pois minha maleta médica foi perdida no acidente e...
- Não adianta argumentar com esse povo Dr. Silvério, atalhou Márcio; bem, monsieur, eu sei que é difícil, mas existe algum hotel... deixe-me corrigir, uma estalagem onde alguém nos receba dignamente?
- Sim, há um castelo a poucos quilômetros daqui. Sigam um pequeno atalho indo a noroeste das planícies. Lá vocês receberão a hospitalidade que merecem. Agora saiam.
- Merci beaucoup, monsieur. Pelos menos não dormiremos no sereno. E... um castelo é bem melhor do que esta espelunca. Zombou Márcio.
- Chega de escárnio, meu amor. Vamos embora, venha Helena. Aconselhou Érika.
Helena. Uma belíssima mocetona de vinte cinco anos; cabelos dourados e longos; estatura baixa; olhos verdes; rígidos e túrgidos bustos, sustentado pelo veludo; corpo esbelto. Nenhum dos seus três amigos sabe ao certo quem foram seus pais. Segundo a mesma, a maior parte da sua infância e adolescência foi monástica. Era uma jovem bastante sagaz, sempre com as quase instantâneas respostas a todas as perguntas. Todos ficaram perplexos dela ter se casado com Silvério, vinte anos mais velho do que ela. As más línguas afirmam que foi interesse financeiro. O sonho de Helena ainda continua sendo morar em Paris, mas o advento da segunda grande guerra e a ocupação nazista na cidade das luzes protelou seu desejo. Ela vestia um airoso vestido de veludo marrom e segurava uma sombrinha. Por fim, um colar dourado com um crucifixo cercava o seu colo.
Érika. Uma belíssima morena; mais velha do que Helena em três anos; cabelos pretos, longos e bem lisos; também tinha um talhe baixo; olhos negros; corpo um pouco inchado, mas que devido à compressão do vestido de veludo verde escuro, não deixava transparecer a sua protuberância. Filha dum dono duma exportadora, não conhecia outra coisa a não ser a opulência. São incontáveis as dezenas de vezes em que ela leu Paulo e Virgínia de Bernardin de Saint-Pierre. Sua educação também foi monástica, contudo Érika assimilou mais a compostura do que Helena. Possui um amor doentio por Márcio. Também portava uma sombrinha.
Márcio. Não era bonito, mas impunha a sua presença aonde chegava. Dono dum raciocínio e duma curiosidade fora do comum, formou-se engenheiro em Berlim e arquitetura em Paris. Em decorrência da guerra, retornou ao Brasil e por pouco não foi feito prisioneiro da Gestapo, devido ao seu apoio aos judeus. Fala francês e alemão com sotaque. Ostenta uma pequena madeixa; olhos negros; gordo; pele branca; estatura baixa; na próxima semana seria o seu aniversário de trinta anos. Vestia um terno marrom.
Dr. Silvério. Oriundo de Portugal; contava lá com os seus quarenta e cinco anos; corpo esguio; ostentava um bigode; pele alva; cabelos lisos e bem penteados com gel; olhos azuis. Bacharelou-se em medicina pela Universidade de Lisboa. Ama demais Helena.
Estes quatro viajantes saem da taverna e se dirigem ao caminho indicado pelo dono da taverna. Enquanto isso...
- É estranho, aquela loira de olhos verdes... ela me lembra alguém...
- Aquilo tudo era ilusão do mal. Não devaneiem muito. Irei ter agora com o padre Emílio. Disse o dono da taverna, saindo logo em seguida.
Capítulo 5
O Padre Emílio Verilhas estava absorto em pensamentos. Seus olhares se concentravam apenas nas velas das tocheiras. “Deveria haver uma razão do mal ter feito a sua investida justamente hoje. Mas qual? E aquele morcego? Seria ele o ser que mordeu o primeiro homem corrompido pelas trevas? Há um pequeno detalhe, um pequeno...”, pensava Emílio quando...
- Padre Emílio? Vossa Reverendíssima está ai?
- E então? Resolveste tu revelar a verdade perante o mensageiro de Deus?
- Sim, Padre.
- Estou a ouvir a sua confissão filho.
O dono da taverna senta numa cadeira de madeira apontada por Emílio e começa o relato:
- Havia se passado duas semanas em que ele desaparecera. Todos nós ficamos preocupados mais pela sua família – a mulher e a filha que ficara abandonada - do que ele. Foram pouquíssimas as pessoas que o tinham afeto. Ele era uma pessoa difícil, atormentada pelas trevas da noite, rabugento até mesmo com o seu cônjuge e sua filha... sua condição financeira era razoável, trabalhava até tarde da noite numa fazenda de cacau aqui perto; o patrão dele o tinha em mais alta consideração, era o trabalhador mais antigo e o mais eficiente. Então, depois de duas semanas, numa noite fria, todos nós do vilarejo ouvimos um grito que poderia ser ouvido até mesmo em ‘Pedra Negra’. Era ele. Mas não foi o seu grito que ouvimos, e sim o de sua mulher, que pendia em seus braços. Ao que parece ele a tinha sufocada. Ninguém teve a audácia de lutar contra ele, pois ao seu lado se encontrava um ser mais maligno ainda. Não conseguimos ver o seu rosto, mas era bastante alto e irradiava uma energia sinistra que deixou-nos paralisados. Ele perguntava por sua filha. “Vocês esconderam a minha filha. Eu a quero. Ah, que o meu mestre os amaldiçoe, que vocês sintam a infinita e eterna agonia”. Sim, Padre. Por recomendações da esposa dele, nós enviamos a sua filha - que nesta época contava com apenas três anos de idade – à capital. Parece que a sua mãe já previa o pior. O resto da história você já deve ter ciência. Os gados e cavalos mortos, as plantações devastadas, as nossas filhas para sempre perdidas naquele mundo sórdido, tortuoso, fúnebre e amaldiçoado. Até a tua chegada, vivíamos o inferno terreno. Pergunto-me por que ele voltou a nos atormentar e justamente agora.
- A resposta está próxima, filho, mais próxima do que vós imaginais. Eu pressinto algo.
- Sinto-me mais tranqüilo agora que lho contei este segredo Padre. Deus há de me perdoar por tê-lo ocultado de você. Acredito que agora você já deva saber quem é ele.
- Sim. Agora tudo faz sentido.
- Bem, tenha uma boa noite Padre e, a propósito, quatro pessoas bem vestidas vieram pedir hospedagem na minha taverna. Segui fielmente o teu conselho e neguei-os a hospedagem, disse-lhes que o castelo ofereceria maiores luxos. Eram dois homens e duas lindas mulheres. Isso foi há cinco minutos atrás.
- O quê? Por que não me contaste logo? Tu os mandaste para o castelo? Imprudente! Siga-me! Antes que seja tarde.
Capítulo 6
- Eu te falei. Aquele vilarejo... eu sabia. Ah, Márcio! Como tu és parvo e teimoso.
- Poupe-me das suas repreensões Helena. Não vês que foi melhor assim. Vamos nos instalar num castelo. Pense! Um castelo no meio do nada... estou começando a gosta deste lugar. Isso me lembra Viena, Berlim, Paris, Salzburg. Merecemos uma noite de sono digna e um castelo bem que convém.
- Sou de pleno acordo com o meu marido, Helena. Um castelo convém mais do que aquela espelunca insalubre.
- Érika tem razão. A propósito, como está teu braço, Helena?
- Não te preocupas, hei de me recuperar.
Eles conversaram uns cinco minutos a mais. Finalmente chegam ao castelo, onde já se podia ver as suas ameias e torres em cada lado. Alguns postigos nas paredes laterais estavam abertos. O castelo se encontrava numa média elevação rochosa, dando-lhe um grande destaque. Não atingia a imponência dos europeus, mas tinha o seu tom peculiar, ou seja, era totalmente sombrio com seus tons acinzentados devido ao reflexo lunar. Uma ponte de madeira – incrivelmente conservada – dava acesso à entrada do recinto.
- Estranho, a porta está aberta, disse Márcio. Era uma porta envernizada, com birras polidas e bruxuleadas no escuro, havia também um batedor de bronze nas duas partes da porta.
- Ainda há tempo para retrocedermos. Exortou Helena. Contudo Márcio e Érika já adentravam no recinto.
- Um jantar para quatro pessoas? Parece que estamos sendo esperados. A eficiência aqui é mais nítida do que em Berlim. Tudo aqui se afigura perfeito. Falou Márcio com um tom de mofa.
Na mesa - rigidamente limpa e pronta para o jantar – havia dois candelabros de ouro maciço, brilhantes copos de prata e cadeiras forradas de veludo pardacento.
A sala em que os hóspedes se encontravam era ricamente mobiliada. No lado esquerdo, estava a lareira acesa e, acima dela, via-se um enorme brasão com dois dragões de bronze em cada lado. Dezenas de quadros incrustados nas paredes. Dois sabres cruzados, formando a letra ‘x’, recentemente polidos, estavam fixados ao lado do brasão. Havia também três mosquetes de mechas cravados na parede, organizados em fileiras um acima do outro. Vários criados mudos completamente diferentes um do outro. À esquerda, assomava uma enorme escada com fulgurantes corrimãos de mármore. Bem no meio e no alto da sala, um enorme candelabro de cristal iluminava toda a sala.
- Bem, quem há de nos servir o jantar? Indagou Márcio.
A resposta viria mais rapidamente do que ele pensava. Numa das portas à direita, apareceu um senhor com vestimentas formais próprias dum mordomo. Sua fisionomia era tipicamente dum idoso apático, cuja pele já estava desgastada pelo tempo. Esse aspecto cadavérico faz Helena soltar um grito agudo que ecoou por todo o castelo.
- Helena, recomponha-se. É apenas o mordomo. Monsieur, excusez-moi. No vilarejo, foi-nos indicado este castelo e...
- Na verdade, eu é que devo desculpas por ter assustado a senhora que está ao teu lado. Não era essa a minha intenção. Interrompeu o mordomo.
- Viu Helena? Medo sem fundamento é rosa sem espinho, não machuca ninguém. Escarneceu Márcio.
- Senhor, minha mulher machucou o braço. Preciso de alguns suprimentos, sem contar ainda que estamos com muita fome. Disse o Dr. Silvério.
- Tudo será providenciado. Se já estão prontos, servirei o jantar imediatamente. O mordomo faz uma mesura e sai logo em seguida.
- Helena por que fazes este semblante? O que te preocupas?
- O quê?... nada, não foi nada.
- Não te preocupas, Dr. Silvério. Não vês que ela apenas está encantada com a pseudo-imponência deste castelo. Tenho alguns elogios e algumas ressalvas acerca deste recinto. Invejo como o tal arquiteto estudou o solo, a paisagística, os cálculos estruturais, a angulação, a decoração, tudo muito apropriado. Minha ressalva é a pressa com que esse castelo foi construído, tudo muito assaz precipitado que até esqueceram de trazer a eletricidade. Ah, ai vem o mordomo.
- Desculpem a demora.
- Sem problemas. A propósito, onde se encontra o nosso anfitrião? Inquiriu Érika.
- Ele está caçando.
- Caçando? Em plena noite?
CAPÍTULO 7
- Rápido! Alojem suas filhas e esposas na igreja. Eu pressinto que o mal está por perto. Bradou Padre Emílio.
Arrebatadamente, os moradores fazem o que lhes foi ordenado.
- Estão todos prontos e em alerta?
- Sim Padre – respondeu o dono da taverna. - Mas... olhe! Lá adiante... é ele... Meu Deus!... como é demoníaco...
- Fiquem alerta. Vamos seguir conforme o planejado.
Nas trevas das ruas desertas, surge um ser com sua capa preta esvoaçando, rosto pálido ao extremo, talhe alto e um olhar derradeiramente ameaçador.
- Vim aqui exigir o sangue daquele que ceifou o meu leal roedor. Falou pela primeira vez o ser das sombras. A entonação da sua voz demonstrava ser ele uma pessoa extremamente polida.
- Tu nunca mais hás de tocar em nenhum fiel ao grande Senhor. Jamais irás profanar as filhas destas pessoas, esta cidade está agora velada por uma força maior do que a maldição que o devasta. Disse contundentemente o Padre.
- Não acha que as quatro vítimas que estão no teu castelo não são suficientes? Gritou o dono da taverna.
- Quatro vítimas no meu castelo? Mas isso é uma extraordinária notícia. Com a tua licença, meus senhores. Subitamente, o ser maligno se transforma numa nuvem de fumaça e deixa a cidade numa velocidade surpreendente.
- Por que tu disseste aquilo? Agora aquelas pessoas estão condenadas.
- Antes eles do que nós. Agora estamos salvos do mal. Respondeu o dono da taverna.
- Como vós sois tão néscios. Vós somente pensais nos vossos interesses imediatos. Para vós, o futuro será sempre o mesmo. Vós estais errados, ninguém pode prever o futuro, somente o Senhor possui tal poder. Agora chega de sermão. Reúna alguns homens de fibra e vamos nos reunir na taverna para traçarmos um plano eficiente. Esta noite, tomaremos o castelo e destruiremos o mal de uma vez por todas.
CAPÍTULO 8
Os quatro hóspedes já tinham terminado de jantar. O mordomo já havia recolhido a mesa e se retirado. As duas damas estavam sentadas perto da lareira enquanto os cavalheiros proseavam sobre a estrutura e a decoração do castelo. De repente, o anfitrião surge na escadaria.
- Espero que tenham apreciado o jantar. Disse o dono do castelo.
- Sim. Nem na capital é servida uma comida francesa de qualidade compatível com a que foi servida aqui. Congratulo-o por isso.
- Meu marido Márcio tem toda razão. A hospitalidade aqui é primorosa, Senhor...
- Chamo-me Conde Visgomorten, madame.
- Conde? Realmente estamos numa Europa perdida neste fim de mundo. Bem, eu chamo-me Márcio, este é o Dr. Silvério, esta é minha esposa Érika e... esta princesa aqui se chama Helena.
- Helena? Hum... que nome interessante.
Após o conde dizer estas palavras, Helena sente uma náusea, seu corpo fica paralisado por aquele olhar sinistro.
- Acho que a madame não está a passar bem. Seus quartos já estão devidamente arrumados. Marcus! Leve os nossos hóspedes para os seus respectivos aposentos. Senhores e Senhoras, hei de me retirar. Espero que tenham uma boa noite de sono.
- Espere conde. Tenho uma dúvida que perturba não apenas a mim, mas a todos aqui presente. Quem foi o arquiteto que idealizou a planta deste castelo, quem foi o engenheiro que fez os cálculos estruturais, enfim, quem está por detrás deste incrível e inusitado projeto arquitetônico totalmente deslocado da realidade desta perdida região?
- Este castelo foi erguido por uma força maior do que a minha própria compreensão: uma imaginação, como tu disseste, totalmente deslocada da realidade desta perdida região.
O conde se retira e as dúvidas aumentam ainda mais na mente racional de Márcio. Depois dessa conversa, o mordomo Marcus leva os hóspedes até os seus cômodos, que era relativamente grande. Havia uma cama de casal impecavelmente arrumada e cercada por uma tenda vermelha, ao que parece, o tecido era inglês; a parede era forrada com papel sombrio, com tons acinzentados e verdejantes; mobília pesada e bem antiga; alguns candelabros em cima dos criados mudos e janelas com vitrais múltiplos.
- Helena, o que está a acontecer? Tu estás agindo de modo estranho. Disse Dr. Silvério.
- Não sei. Era como se eu não tivesse domínio sobre o meu corpo e espírito... bem.. acho que preciso dormir. E tu precisas tomar o teu remédio.
Duas horas depois Helena acorda. Seu marido ainda dormia um sono muito mais pesado do que o habitual. Sorrateiramente, ela levanta-se da cama e sai do quarto. No corredor, alumiado apenas pela lua, ela procura alguém. E o encontra.
- Ah, que saudade dos teus beijos. Sufoque-me, possua-me...não agüento mais essa dissimulação, a sociedade não há de nos repreender por isso, afinal ela é mais hipócrita do que a nossa atitude adúltera, foi ela que nos fez assim, somos seus meros reprodutores dos seus pedagógicos e edificantes atos. Hei de tomar uma atitude drástica...
Uma hora depois, Márcio acorda. Sua esposa ainda dormia. Ele se levanta da cama e sai do quarto. Estranhamente ele vê o mordomo subindo uma escadaria. “Parece que ele não me viu”, pensou. Uma ponta de curiosidade cerca Márcio e, dessa forma, ele resolve segui-lo. A escadaria vai dar num enorme aposento mal iluminado onde bem no meio se encontrava um caixão dourado em formato geóide. Lá dentro repousava o conde Visgomorten. “Estranho ele dormir num caixão desse formato”. A perplexidade de Márcio faz com que ele não perceba uma mão, portando uma brilhante adaga, erguer-se e ir ao encontro do seu pescoço. Por estar morto, Márcio não sente também que todo o seu sangue é retirado do seu corpo a fim de saciar a insaciável e eterna sede do conde Visgomorten.
Érika tinha um sono deveras pesado. Mesmo com as janelas abertas, deixando passar o vento gélido, ela ainda dormia. A tenda vermelha da cama estava fechada. Érika sonhava com o dia do seu casamento, os primeiros e únicos dias felizes da sua vida. Depois veio a indiferença, o ódio e o desprezo do marido. Sonhava com uma tola esperança de que o tempo há de consertar todas as suas escolhas erradas. A esperança de que um dia o seu marido amá-la-ia. Todos estes devaneios fazem com que ela não note a mão lívida do conde assomando na tenda. A mão afaga aquele rosto liso e angelical. Com extrema frieza, o conde sufoca suavemente aquele colo, para posteriormente cravar os seus afiadíssimos dentes nele.
CAPÍTULO FINAL
Ao contrário de Érika, Helena tinha um sono agitado. Ela pressentia que alguma coisa de ruim iria acontecer ou estava acontecendo. Mas não era apenas isso que a agitava, era principalmente a lembrança de tempos remotos, épocas douradas esquecidas pelas neuroses e crenças da sempre conturbada juventude. Nossas lembranças geralmente não são renovadas como fazem os rios e os mares, em nós, sempre fica algo que queremos esquecer e sempre alguma coisa se perde nas nossas crises. E quando aquilo que estava esquecido vem à tona, é como abrir uma antiga e penosa cicatriz. Percebe-se que tal cicatriz foi aberta logo quando Helena pôs os pés na vila.
Realmente o conde Visgomorten estava insaciável. Depois duma agonia de seis meses de espera, ele sentia que era preciso contra-atacar. Entretanto, era preciso muita cautela, pois o Padre Emílio Verilhas o havia estudado minuciosamente e seus passos eram constantemente vigiados pelos moradores. Seu plano para aquela noite consistia em enviar seu mordomo Marcus para capturar uma donzela e o seu fiel morcego para tentar distrair o Padre. Uma coisa o conde não contava, era a morte do leal roedor. Isso o deixou furioso e o fez precipitar sobre o vilarejo em busca de vingança. Ali seria o fim o derradeiro do conde se não fosse a extraordinária notícia dada pelo dono da taverna. Era preciso agir rapidamente. Aquelas vítimas poderiam ser as últimas e duas já foram avidamente saciadas.
Marcus estava um tanto taciturno e confuso. Ele obedecia fielmente às ordens do seu mestre, mas algo o perturbava e esse agito teve início com a chegada daqueles hóspedes. Ele se ergue da cama banhado em suor, apesar do frio lá fora. Abre a gaveta de seu pequeno criado mudo e olha algumas fotos. Então ele tem um enorme sobressalto.
Helena estava hipnotizada. A tenda vermelha que cercava a cama fora aberta pelo conde Visgomorten, que tinha seus olhos avermelhados cravados nos de Helena. O conde se aproxima da sua vítima indefesa, cujo marido dormia pesadamente e Helena sabia o porquê dele não conseguir acordar, o porquê do seu torpor forçado e ela tinha bem ciência de que ele jamais iria acordar novamente.
Ao tocar no pescoço da sua presa, as mãos do predador queimam intensamente, era o crucifixo. Isso faz o conde bramir de dor e recuar. Novamente ele fixa seus olhos diabólicos nos da sua presa e a força tirar aquele agonizante artefato. Eis o momento esperado, o banquete banhado a sangue.
Contudo, o conde não contava com um pequeníssimo detalhe que lhe escapou: a revolta do seu serviçal. Ele avança para cima do conde, derrubando-o da cama. Isso faz Helena sair do entorpecimento. Ela não entende toda aquela cena de luta entre Marcus e o conde, contudo, ela toma uma atitude bastante adequada, fugir daquele local.
Marcus sabia que nunca seria páreo para o conde. Mas era preciso ganhar tempo para que Helena fugisse das garras do seu mestre e essa era a sua estratégia.
- Ínfimo lacaio. É inútil o teu esforço. Não necessito mais da sua arte. Morra! Disse o conde, içando o corpo de Marcus pelo pescoço. O predador 1.
De repente, ouve-se um enorme estrondo na porta de entrada do castelo. O predador larga o seu quase desacordado lacaio e vai ver o que foi aquele barulho. Ele abre a janela e vê os moradores do vilarejo cercando o castelo e tentando arrombar a porta com um aríete improvisado. Nota também que algumas míseras e mal feitas catapultas estavam armadas e prontas para cuspirem as suas balas de cerâmicas contendo água benta. Várias estacas de madeiras estavam sendo colocadas ao redor do castelo para evitar a sua fuga. Vê-se que o longo planejamento do Padre Emílio Verilhas estava dando resultado.
O conde se apavora. Era preciso fazer uma retirada estratégica, mas antes ele queria praticar um último ato: possuir o corpo de Helena. Afinal, ele o havia tocado e tudo que ele toca, torna-se sua propriedade.
Helena não pensava em mais nada a não ser fugir daquele lugar amaldiçoado. Mas o pavor a assolava de tal forma que ela simplesmente não sabia para onde seu corpo a estava guiando. Após chegar à torre do castelo, ela contempla, numa das ameias, aquela esquisita noite. De repente, uma bala de argila atinge a torre e faz com a donzela saia daquele estado catatônico. Ela olha para baixo e nota uma multidão de pessoas a invadir o castelo com tochas, armas de fogo, foices e adagas. Helena se pergunta por que aquelas pessoas do vilarejo estão destruindo o castelo. Com toda esta distração causada pelos seus pensamentos, a jovem não percebe uma mão descarnada a tocar em um de suas espáduas. Ela se vira e fica aterrada com olhar atento do conde. Novamente Helena fica hipnotizada. Vagarosamente o conde Visgomorten, que estava exultante, pende a cabeça de sua presa para um dos lados e no derradeiro ato de sua insaciável fome, uma estaca de madeira atravessa o seu coração. O conde solta um grito agudo que ecoa por todo aquele vale onde o castelo se erguia.
- Tu nunca possuirás a minha filha, ser maldito.
A dor consome cada espectro da amaldiçoada alma do senhor do castelo, cada molécula do seu agonizante corpo o qual entrava em total combustão. Não era qualquer chama que o consumia, era uma chama vermelha, o sangue de todas as suas vítimas que naquele momento se vingava do seu algoz.
Estranhamente aquele corpo vai mudando de configuração até tomar a forma dum terrível gárgula. O monstro rapidamente enfia uma de suas enormes garras no coração de Marcus, arrancando-o logo em seguida. O pobre serviçal não teve nem tempo de gritar, esta tarefa coube a Helena, que ficara apavorada com aquela sórdida e sangrenta cena. O monstro vira-se para ela e pelo seu olhar, temos a certeza de que a indefesa donzela havia de ser a próxima vítima.
Mas eis que surge o Padre Emílio Verilhas e o dono da taverna. O clérigo saca um imponente crucifixo de madeira e o arremessa bem no coração do monstro, se é que este é possuidor de tal órgão. O gárgula fica moribundo de dor.
- Rápido! A água benta e o colar de alho. Grita o Padre ao dono da taverna, que derrama todo o líquido sagrado no monstro e coloca o colar de alho no pescoço da criatura.
Uma enorme nuvem escura envolve todos os protagonistas que ali se encontravam na torre. Entretanto, essa névoa preta dura alguns segundos e pouco a pouco o ar volta a ser o mesmo.
- Padre, conseguimos? O mal foi destruído? Perguntou o dono da taverna.
- Sim. O mal foi completamente obliterado. Com a força do grande Senhor, nós finalmente conseguimos. E... tu estás a se sentir melhor, minha jovem?
Ela nada respondia. Seu olhar se encontrava no infinito, sua respiração voltara a ser harmônica e seu medo foi dissipado. Parecia que ela estava a assimilar toda a verdade que lha foi mostrada. Lentamente Helena tenta se erguer, o Padre se aproxima para ajudá-la, mas a moça recusa. Seu olhar agora se concentra na altura do castelo.
- Minha jovem, sei exatamente o que estás a fazer. Não é o caminho correto, nunca foi. É um meio covarde de enfrentar o presente e principalmente o as conseqüências futuras. O único modo de negar um passado maldito é obliterar tudo o que pensas em fazer no futuro e contemplar todas as coisas belas que o Senhor criou, todas as coisas que sua mente perversa fez questão de ofuscar. Abandone este pernicioso orgulho, ele a está destruindo num processo tão rápido que tu nem percebes.
Helena dirige os seus olhos de esmeraldas para o Padre. Este percebe que ali está um espírito dilacerado, um olhar morto, um semblante arrependido por anos de libertinagem, depravação, perfídia e... assassínio. Ela muda o olhar agora para o seu pai morto e vê o seu peito aberto pelas garras do monstro. Pensa no sacrifício daquele primeiro espírito corrompido. “Ele sacrificou a sua vida para me mostrar toda a verdade que eu custava a ver, isto é uma iniqüidade. A morte deveria chegar até mim, não ele” - diz Helena consigo mesma – “Na verdade, nós dois não somos diferentes, dois espíritos corrompidos pelos excessos. Não há mais futuro para uma pessoa da minha extirpe. Se eu tenho o direito a uma outra vida, almejo fazer as coisas da maneira correta, seguir a decência sem um átimo de hesitação e ser fiel a todas as pessoas que me amam”.
- Minha jovem, escute a voz de Deus. Ouça o teu coração, a tua essência... o teu espírito... não faças isso...
As lágrimas vertidas pela jovem comovem, pela primeira vez, o Padre Emílio Verilhas, porque ele sabe que foram as primeiras lágrimas sinceras de Helena.
- Já escutei a voz de Deus, Padre. Ele não está nada satisfeito comigo. Jamais tive coração e o meu espírito encontra-se despedaçado. Não suporto mais a minha existência, jamais conseguirei andar com meus próprios pés, jamais encontrarei um sentido para minha vida. Adeus Padre e obrigada por tuas palavras. Reze por minha alma, pois ela estará agonizando no inferno.
Seu corpo parecia flutuar no ar, o céu começava a clarear, a aurora tinha chegado e um raio de luz alumiava aquelas brilhantes lágrimas que escorriam naquele rosto angelical.
- Que espécie de Padre sou eu? Não consegui salvá-la! Meu Deus, por quê? Por quê? Angustia-se Emílio, que agora estava de joelhos e as suas mãos estavam erguidas para o firmamento.
- Todos as pessoas do vilarejo, inclusive eu, devemos as nossas vidas a você, Padre. Deus está orgulhoso por você ser um grande homem.
Neste instante aparece um dos moradores do vilarejo:
- Padre, as dinamites já estão prontas. Devemos evacuar o local.
- Vamos Padre! Dê o primeiro e significativo passo. Uma triste era acabou, mas uma nova e promissora era começa. Veja como é bonito o início da aurora. Vamos, erga-te!
Bem distante, o sol nascia atrás das planícies, onde o arrebol ornava as nuvens diáfanas. A imagem do castelo não se afigurava mais aterradora. Parecia uma simples mansão nas montanhas íngremes. O Padre Emilio apenas contempla aquela paisagem.
- Padre, estamos esperando as suas ordens para demolir o castelo e enterrar de vez todo o passado. Disse o exultante dono da taverna.
- Ordem concedida e que Deus nos proteja. Disse o Padre, com o olhar perdido no horizonte.
Antes da estrondosa explosão que iria demolir o castelo, ali estava um corpo estatelado numa estaca de madeira, que atravessara o seu coração, se é que ela realmente possuía tal órgão. Um corpo que nem ao menos teve um enterro descente, ou não. Nenhum urubu teve a audácia de se aproximar daquele maldito corpo, talvez porque não quisesse se corromper. Apesar disso, ali estava o corpo, com as mãos abertas, o olhar direcionado para o céu, como que esperando o impossível perdão de Deus. Oh, brava Helena! O mais incrível é que as lágrimas ainda continuavam a sair dos seus olhos de esmeraldas; várias gotas foram pingadas no chão, fazendo nascer, de forma surpreendente, uma pequena flor verde.
Por fim, veio a explosão que apagou todo o brilho daquelas duas esmeraldas e secou aquelas lágrimas que poderiam ser as lágrimas de uma nova esperança.