Apenas um sexto sentido
Abriu os olhos.
A visão estava embaçada, turva, desfocada.
Tateou a cabeceira ao lado e puxou o relógio de pulso.
Uma pequena luz esbranquiçada piscou.
Eram duas da madrugada quando Ailyn acordou naquela noite. A janela do quarto estava aberta. Uma brisa fresca passeava pelo cômodo, fazendo os galhos das árvores lá fora estalarem sobre o vidro.
Silêncio.
Ela se levantou com dificuldade e calçou suas pantufas. Prendeu os cabelos num coque e foi até o interruptor na parede. A luz não se acendeu. Tentou novamente. Nada.
“Porcaria”
Pensou em ir até a cozinha, mas, antes que saísse pela porta, ouviu uma voz.
Estava tão escuro que sua espinha congelou ao pensar que alguém poderia estar escondido ali.
“Eu te amo” disse a voz.
Não era uma voz assustadora. Pelo contrário, chegava a ser engraçada. Poderia pertencer a um garotinho de oito anos de idade.
“O quê?”, Ailyn estava perplexa.
“Você pode me ouvir?”
“Ótimo, estou ficando louca. Meu deus...” ela sentou na cama, tapando o rosto com as mãos e respirando fundo.
“Ailyn”, chamou a voz novamente.
“Quem está aí?”, ela se levantou assustada.
Uma sombra passeou pelo teto do quarto, como um líquido negro, e desceu escorrendo pela parede, até materializar-se num garoto em pé ao lado da cama. Aparentando Ter a mesma idade de sua voz infantil. Ele usava uma boina na cabeça e um uniforme de escola antigo, com longos suspensórios pretos.
Ailyn não sabia se gritava ou ria. Provavelmente estava muito louca.
“Oi, Ailyn”
“Oi.... menino...”, respondeu sem muita certeza de que desejava iniciar uma conversa com sua própria mente.
“Você não tá louca”, ele sentou na cama, observando-a.
Apesar da pouca claridade, ela também podia ver seu rosto através da luz da lua. Era um menino sadio, de bochechas rosadas e cabelos castanhos.
“Quem é você?”
“Desculpe Ter entrado no seu quarto assim, Ailyn.”
“Você por acaso fugiu de casa e resolveu escalar a minha janela?”
O menino sorriu, o que não ajudou muito, já que ela lembrava perfeitamente do “Eu te amo”. Que tipo de tarado teria menos de 1 metros e meio de altura?
“A gente já se conhece.”, ele disse sério. Tinha uma dicção muito boa para sua idade.
“Eu não conheço você, garotinho! E escuta, é melhor voltar pra sua casa, porque sua mãe...”
Ele riu novamente.
“Eu sou o David.”
Naquele instante o coração dela parou. Ficou imóvel, com os olhos arregalados, sem entender como aquele garotinho poderia saber sobre David.
“Você é... irmão do David?”, ela perguntou, descrente.
“Não”, ele respondeu deprimido. “Eu sou o David”, afirmou com veemência.
“Mas você...”
“Sim, é verdade, esqueci de acrescentar que sou eu – com oitos anos de idade.”
“Ok, chega de brincadeiras, garotinho! Venha, vou levar você pra casa.”, ela se aproximou dele.
“Acredita em mim.”, ele disse, sério. “Eu voltei.”
“Por que está fazendo isso comigo?”, ela sentou no chão, chorando. “Quem te pediu pra fazer isso?”
“Não chora, não.”, ele sentou ao lado dela, limpando seu rosto molhado pelas lágrimas.
“Você é uma criança... Não é o David... não é...”
“Eu já disse que sou eu. Por que você é tão teimosa?”
O silêncio reinou por um instante.
“Você têm sorrido pouco nesses últimos anos, não é mesmo?”
Ela chorou mais alto.
“É um castigo de Deus, não é? Você é um anjo que veio me castigar...”
“Por que é tão difícil de acreditar que sou eu?”, ele suspirou.
“Você se parece tanto com ele... Mas...”
“Eu sou o David, Ailyn.”
“Vai embora, por favor... Você não é o David. É só um menino.”, ela implorou.
“Eu vou crescer...”, ele disse. “E isso vai caber melhor no meu dedo.”, ele retirou uma aliança do bolso. Ailyn ficou perplexa. Era a mesma aliança que ela possuía. A mesma que seu marido David lhe dera anos atrás.
“E você não tá maluca, Ailyn. Sou eu que estou aqui. Eu estou vivo. É verdade.”
Ela o encarou, séria.
“Eu te amo tanto”, ele disse.
“Quem é você?” choramingou ela, tapando o rosto. “O que você quer de mim?”
“Sua felicidade.”, ele disse sério.
Ela sorriu, com o rosto úmido e vermelho.
Então, ele se levantou e caminhou até o criado mudo. As lâmpadas se acenderam imediatamente.
Ailyn pode ver com mais detalhes. A roupa do menino era bastante velha e gasta. Como se ele tivesse saído de um filme de época.
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Um homem caminha por um beco deserto. Apressado e aflito, ele foge de alguém que o persegue logo atrás. Então ele chega até uma sólida parede de tijolos vermelhos; fim da linha. Uma sombra encapuzada surge na direção oposta, ouve-se o barulho de três tiros. E o homem cai morto no chão, sua cabeça mergulhada numa poça de sangue, que desliza suave pelo asfalto gelado. David fora assassinado aos vinte e três anos de idade.
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“Eu te amo.”, diz o menino, cabisbaixo.
E finalmente Ailyn percebe o que antes não havia reparado. Por trás da franja do garoto, filetes de sangue escorrem devagar. Ela olha para a boina dele e vê um enorme buraco de bala de revólver, de onde o líquido vermelho insistia jorrar. Até que começou a pingar sobre o tapete.
“Oh, meu Deus!”, ela gritou, assustada.
“Não se assuste, por favor.”, ele diz, tentando acalmá-la.
“Você está sangrando!”
“Eu sei.”, ele confirma, sem preocupação.
“Meu Deus, o que eu faço?”, ela perguntou.
“Não se apaixone por mim.”, disse convincente.
“O quê?”, ela parecia confusa.
“Você não pode me conhecer. Nunca.”
“Sobre o que você está falando?”
“Eu morrerei de qualquer jeito, Ailyn. E você precisa dar um jeito de nunca me encontrar.”
As palavras soavam confusas, embaralhando o cérebro dela.
“Não precisa entender. Apenas confie em mim.”, ele disse, olhando em seus olhos.
Ela sorriu, sem entender toda aquela loucura.
Ele também sorriu.
“Adeus...”, ele disse, com os olhinhos brilhando, de partir o coração dela.
As luzes se apagaram novamente e Ailyn caiu num sono profundo, onde sonhou com espirais luminosos, sangue, e o corpo de David numa cova.
O sol brilhou pela manhã. Foi preciso fechar uma cortina para poder abrir os olhos e enxergar. Ela ouviu uma batida na porta e uma voz estranhamente familiar.
“Vamos logo, filha, vai se atrasar.”
Ailyn ficou em choque. Era a voz de sua mãe. Sem dúvida alguma.
Então ela se aproximou do espelho na penteadeira. Suas mãos estavam pequenas. Os seios haviam desaparecido. E ela estava bem menor. Na verdade, ela tinha oito anos de idade.
O caminho para a escola parecia familiar, tudo parecia conhecido. As pessoas, o lugar. Embora lembrasse vagamente da noite anterior, não estava certa do que era sonho ou realidade. Apenas seguiu seu caminho, silenciosa. Entrou na escola, passou pelo parquinho, onde alguns garotos estavam sentados brincando. Um deles tinha a mesma idade dela. Os cabelos castanhos cobertos pela boina do uniforme escolar. Ele sorriu de orelha a orelha quando a viu, e seu rosto corou.
“Oi, Ailyn.”, ele disse.
Ela olhou para ele. Sentiu algo estranho. Pensou por um momento que fosse desmaiar.
(Não se apaixone por mim)
Ela ficou em silêncio.
(Você não pode me conhecer. Nunca.)
Então passou direto, sem ao menos cumprimentá-lo. Os colegas de David riram e ele pareceu emburrado com o desprezo que acabara de receber da garota.
Os anos se passaram. Ailyn era uma mulher casada, com filhos e morava num prédio no centro da cidade. Certo dia seu marido apareceu na cozinha, lhe mostrando o jornal matinal.
“Precisamos ir morar numa casa. Num lugar mais seguro.”, ele disse, repousando o jornal sobre a mesa. “O que acha de morar no campo?”
Ela se debruçou sobre a mesa, enquanto bebia seu café numa xícara.
A notícia estava estampada em letras gritantes sobre a foto de um homem mais ou menos de sua idade:
“HOMEM ASSASSINADO DURANTE ASSALTO.
O corretor de imóveis, David McPhillipe foi encontrado morto essa manhã...”
Ela parou de ler e bebericou seu café mais uma vez.
“Que horror... Acho mesmo que devíamos nos mudar.”, disse ela, fazendo uma careta.
“Estou indo trabalhar”, o marido terminou de vestir o terno e a beijou. “Eu te amo.”
“Eu também.”, ela respondeu, sorrindo
Então ele partiu e ela se debruçou novamente sobre a mesa para olhar o jornal. Aquele homem na foto lhe parecia estranhamente familiar. Mas ela nunca soube de onde o conhecia. ‘Apenas um sexto sentido’, pensou.
(Eu morrerei de qualquer jeito, Ailyn.
E você precisa dar um jeito de nunca me encontrar.)
Fim.