LEMBRANÇAS ESQUECÍVEIS
São Paulo , 23 de Dezembro de 1.988
E com o tempo, passaria a ser um mistério até para ele!!!
De nada lembrava havia anos, a não ser de sua infância sofrida no campo.De sua adolescência na Polônia .Da escola de enfermagem, da chegada ao Brasil e de seus amigos mortos nos Campos de Concentração!!!
Chegara ao Novo Mundo em 1.945. A esperança renovada transbordava-lhe os poros.Mas o futuro encarregou-se de ofuscar-lhe as luzes deixando – lhe apenas o lusco-fusco.
Podia contar histórias de décadas atrás a uma pessoa desconhecida, e em segundos esquecer-se do nome do ouvinte recém apresentado.
Estava a um certo tempo freqüentando a clínica de dependência química. Não gostava de lá. E seus anos vividos ajudavam a cabular algumas das incessantes sessões de perguntas cretinas e profissionais incompetentes dizendo que,dependia apenas de sua vontade. Se realmente fosse isso o que importava , não pisaria nem mais um pé naquele maldito lugar!
-Os remédios já estão lhe dando um outro ar senhor Wolinski!!!
Outro ar é o diabo pensava , pro raio que o parta com essas drogas infernais!!! Mas conversa vai conversa vem , conseguiam com que o veterano engolisse as pílulas.
Então pegava o bonde até o Bairro da Liberdade para enfim poder desfrutar de sua velha poltrona e seu cachimbo fedorento.Andava cabisbaixo e sem muito ânimo. Na verdade se ao contrário fosse seria surpresa.Mas não se importava de ficar sozinho.Ficava ali gozando de sua solidão até ser importunado pela senhora Lopez.
A velha senhora Lopez, vizinha de muro e beirando os seus 70 anos, ia visitá-lo cristãmente dia sim, e quase sempre dia sim também.
- “Skurwysyn” , exclamou automaticamente ao avistar a indesejada visita!!! ( Não deixava de instintivamente praguejar alguma coisa e de contar matematicamente, em sua língua materna.)
- Senhor Wolinski, senhor Wolinski!!!! Está em casa??? Ah, ai está o senhor, fumando esse charuto fedido de novo!!!
- Czesc ( olá ) e isto é um cachim...
-Eu lhe trouxe esse pedaço de bolo da festa de ontem!! Por que o senhor não apareceu?
- Estava com minhas pernas inchadas!- respondeu o velho polonês com indiferença .
Na verdade não teria de dar mais do que alguns miseráveis passos, estava é sem nenhuma vontade de ir à maldita festa de despedida da senhora Lopez. Ela estava de mudança para o exterior! Seus filhos moravam na Venezuela e queriam a mãe perto deles. Assim poderiam estar próximos quando a velhota batesse as botas e a herança lhes batessem à porta!
- De qualquer maneira o senhor deveria ter aparecido, estavam todos reunidos.O senhor Wagner levou o violão e todos relembramos velhas canções! O senhor precisa de um pouco de luz, um pouco de ânimo! Precisa sair desse cubículo, se exercitar um pouco.
No fundo no fundo, Helder Wolinski iria sentir falta da senhora Lopez o incomodando nas manhãs de domingo, lhe trazendo o café e lhe ajeitando as empoeiradas almofadas em sua poltrona .
- Acho que a senhora tem razão. Quando parte? – Perguntou tentando não mostrar interesse.
- Amanhã mesmo. Quero passar o Natal com meus filhos. E está uma loucura para sair do país.Muita gente está viajando. Todos estão com os bolsos um pouco mais cheios este fim de ano, após a aprovação daquela lei de gratificação de Natal e tudo mais.
- Entendo...
- Senhor Helder... posso lhe fazer uma pergunta?
- Sim, o que é que há? – o velho ranzinza respondeu a pergunta com outra e não conseguiu disfarçar a curiosidade.
- O senhor sentirá minha falta? – pergunta a embaraçada senhora Lopez enquanto colocava o café para esquentar.
- Como é? Ah, bem... claro... sim, quer dizer, a senhora é muito alegre, todos gostam da senhora, e....bem..... faça....faça uma boa viagem!!!
- Nada disso seu velho tolo, amanhã passo daqui novamente!! Ai sim podemos nos despedir! Aproveite o bolo Helderzinho. E não se esqueça do café no fogo...
Se despediu sem deixar de lhe mandar uma apertada na bochecha. Coisa que fazia constantemente, não mais causando a irritação de antigamente no velho.
Esperou a vizinha prestativa sair e sentou- se à mesa ao lado da fatia de bolo de fubá. O cachimbo ainda em cinzas em cima da mesa, produzia uma fumaça que se misturava à do bule de café requentado. Pegou o café pois em sua caneca de alumínio amassada e sorveu um gole da bebida escura e amarga.O açúcar já não era seu companheiro a muito tempo.
Começou a concatenar. E agora? Quem lhe traria alguns pequenos mimos? Quem lhe cuidaria de chamar a ambulância se repentinamente sofresse uma parada cardiorrespiratória ? Não poderia deixar sua protetora partir.
Acordou diferente naquela manhã. Preparou o café e foi até a padaria para preparar um pequeno agrado a senhora Lopez. Comprou pães frescos e uma lata de manteiga Aviação.Não podia consumir aquele nível de colesterol mas a velha amiga era louca por boa manteiga.
Quando a senhora Lopez apareceu para lhe trazer outra fatia de bolo, deparou-se com uma surpresa. Uma mesa de café da manhã farta, com flores, geléia e tudo mais.
- Eu não acredito!!!! Que linda surpresa senhor Wolinski!!!
- Sente-se antes que o café esfrie.- disse , tentando disfarçar a própria satisfação. Gostaria de agradecer-lhe anos de atenção para comigo.
- Muito obrigada Helder! – Agradeceu sem disfarçar a emoção, uma lágrima percorreu-lhe a face.Não precisava se incomodar!! Você pensou em tudo.Nossa, eu nem sei o que dizer!
- Então não diga nada e coma mulher! – exclamou sem que um tímido sorriso escapasse à boca.
Os dois passaram uma manhã muito agradável , relembrando fatos da infância e do dia em que se conheceram.
Terminado o café, foram para a sala para continuar o diálogo:
- Sente-se aqui senhora Lopez, eu mesmo arrumei a poltrona para a senhora nessa manhã!
- Nossa, que gentileza, muito obrigada. Mas essa é a sua poltrona favorita e.....Aiiii !!!!- soltou um grito de dor, mas os muitos quilos não impediram que permanecesse sentada.
- O que aconteceu?
- Não sei, senti algo fisgar minha perna, como um alfinete entrando. – choramingou a senhora Lopez.
- Um momento, com licença ,aqui está, era meu cachimbo que esqueci ai em cima hoje de manhã!
Continuaram a prosa até que a hora da despedida chegou! Emocionada a senhora Lopez não se agüentou em lágrimas e roubou um pequeno beijo do senhor Wolinski que retribuiu sem cerimônias.
- Então, acho que é isso! Por favor Helder, não deixe de me escrever e lembre-se de se cuidar e de tomar seus remédios. – Enquanto falava iam caminhando de encontro com a porta já aberta. Espero que possamos nos reencontrar em breve.
- Sim, com certeza, e deixe de preocupações, irei me cuidar!!!
Deram-se outro beijo, este um pouco mais demorado do que o primeiro e abraçaram-se emocionados. Enquanto a abraçava , Helder foi acometido por uma intensa imagem de repulsa , pois o sangue que escorria pelas pernas da senhora Lopez, havia deixado um rastro que saia de uma possa formada em sua poltrona até a varanda de sua casa onde encontravam-se os dois no momento. A fisgada que sentira não havia sido provocada pelo cachimbo, e sim pela faca de caça que o senhor Wolinski deixara preparada em um ponto estratégico. A arma penetrou-lhe a coxa direita, atingindo a artéria femural que enrolou para dentro do corpo como uma mola que perde sua base. O abraço foi ficando cada vez mais frio e sem forças, até que o corpo desfalecido da senhora Lopez foi de encontro ao pavimento.
Aproveitando o silêncio ensurdecedor do lugar, arrastou o corpo da vizinha com muito esforço até a casa que era ao lado da sua.A porta estava aberta, entrou sem medir esforços e caminhou até o fundo do quintal. Abriu uma cova com uma pá que havia em sua casa e jogou o corpo ainda morno lá dentro.Junto fez questão de colocar a lata de manteiga Aviação que tanto apreciava a obesa senhora Lopez.Limpou aquele rastro macabro deixado em sua casa em suas mãos.
Ao crepúsculo vespertino ouviu batidas na porta contigua. Era a senhora Moralles, amiga de longa data da senhora Lopez. Como um portador de boas notícias Helder Wolinski foi até a janela e disse:
- A senhora Lopez já partiu. Disse que estava com pressa e mandou-lhe dizer adeus.
- Nossa, havíamos combinado de ir juntas até o aeroporto! – Exclamou com uma chateação juvenil .
- Pois é , ela mandou pedir-lhe desculpas e disse que assim que puder irá lhe escrever.
-Puxa, que pena. Eu não entendo...Bom, fazer o que? O senhor viu o noticiário hoje?
- Não , não. O que houve?
- Um terrível assassinato na rua Cuba. Um casal de advogados foi assassinado e o principal suspeito é o filho deles.Um garoto de 18 anos. Parece que toda a polícia de São Paulo está lá!!!
- Nossa que sorte a minh....Ham, ham... Puxa!!! Que tragédia em!!!
- Pois é! Bom, tudo de bom para o senhor. Feliz Natal
- Obrigado, para a senhora também!
Em pouco tempo H. Wolinski deixaria de tomar os remédios e de freqüentar a clinica. Sua memória esvair-se-ia assim como sua lucidez.E com o tempo passaria a ser um mistério até para ele o que aconteceu com sua prestativa e bondosa vizinha.
(LÉO LIMA)