O pior cego é o que não quer duvidar - Final
Havia uma música que tocava ao longe. Era um parque, e nele uma garotinha brincava no escorregador. A música saía da boca dela, sempre em repetições. Quando ela subia os degraus do brinquedo e se sentava, olhava diretamente para ele. Então, a música recomeçava. Era uma melodia infantil, mas que o incomodava a ponto dele querer chorar. Dava também um aperto no peito estar ali presenciando aquela cena. Algo no rosto da menina o amedrontava.
Sérgio acordou com água jogada em seu rosto. Junto com a consciência repentina, dor extrema, para lembrá-lo do que passara durante as últimas horas. Vomitou. Como não era a primeira vez, não havia mais nada para expelir a não ser um líquido ralo e azedo. Seu corpo todo doía, parecia ter sido atropelado. Olhou para a queimadura no braço direito que se estendia desde a palma da mão até depois do cotovelo. Latejava. Mas o machucado era que menos lhe importava naquele momento. Estava preocupado com o olhar daquele rosto asqueroso e vil à sua frente.
Porém, a sua atenção foi desviada por aquela que passara as últimas horas maltratando-o das formas mais cruéis que alguém poderia imaginar. Passou à sua frente vestindo poucas peças de roupa e um óculos escuros. Em outra ocasião, teria ficado excitado. Ela passou a mão nas tiras de couro que o amarravam à cadeira e verificou que ainda se mantinham firmes, mesmo depois das convulsões e ataques do homem. Depois, suavemente deslizou os dedos para tocar em seu rosto, e percebendo que ele estremecia com o toque, sorriu maldosamente.
- Boa tarde, meu querido. Pensei que você não queria mais brincar. Desta vez você ficou desacordado por vinte minutos.
Ele tentou falar, mas não conseguiu emitir nada mais que um gemido. Ela notou e levou uma pequena garrafa de água mineral até a boca dele que, por impulso, virou o rosto.
- Vamos lá, beba, vai te ajudar a melhorar. Você vai precisar estar forte para voltar para casa.
- M-moça, por favor, eu não ag-guento mais... Me desculpa tudo o que fiz... eu prometo que... me desculpa, eu não aguento... – e começou a chorar copiosamente.
Ela soltou uma gargalhada que o fez diminuir o choro.
- Oh, querido, você não me fez nada de mal. Pelo contrário, você esteve muito bem. Sabe como é difícil para alguém que só consegue chegar ao clímax com uma fantasia simular um estupro com um namorado sério, metido a certinho? Nunca tem o gosto de um estupro de verdade. Resultado: não me satisfaço com performances fracas. Mas ontem, você superou as minhas expectativas, fez exatamente tudo o que me excita, me amarrou, me amordaçou, me bateu... entre outras coisas. O senhor me saiu melhor que a encomenda.
- Mas então por que você está me torturando?
- Ora, é o meu agradecimento pela noite de prazer. Você me fodeu, fazendo tudo o que queria, agora eu retribuo te fodendo, fazendo tudo o que eu quero. Tenha certeza de que será inesquecível para nós dois.
- Eu quero esquecer... a dor... tudo o que você me fez superou o que eu te fiz... mas não vou conseguir... você fodeu com a minha cabeça também. E ainda tem o rosto dessa velha maldita me encarando.
- Não fale assim da vovó. Eu devo tudo a ela. Foi ela quem me ensinou tudo o que eu sei sobre “a arte”. Afinal, ela precisava passar para alguém os conhecimentos adquiridos quando trabalhava no Reich alemão. E seria um desperdício não praticar em alguém. Considere-se um felizardo, poucos sobreviveram ao que fiz contigo. E consegui agradar mais uma vez a vovó, fazendo tudo na frente dela. Mesmo imóvel nesta cama, é como se eu recordasse as suas instruções, “faça um pequeno corte aqui, minha neta” ou “eletrocute o testículo direito com tantos volts”... ah, bons tempos aqueles.
- Sua puta sádica!
- Obrigada pelo elogio. Mas tem um detalhe a mais: a partir de hoje você será uma pessoa diferente. Vai começar a entender melhor o meu mundo, os meus prazeres, e isso não o abandonará nunca mais. Será parte do seu ser até o seu último suspiro. Quem sabe até passe a gostar de...
- Nunca, nunca, nunca! Eu... peraí, v-você vai me soltar?
- Claro, meu bem. Eu sei que você não vai ser tão tolo de contar para a polícia, pois eu tenho gravada a sua performance de ontem a noite. Você sabe como tratam estupradores na cadeia. E caso você não tenha percebido, sou uma profissional na minha arte, e não deixei vestígios suficientes para você conseguir provar que foi torturado. E, por último, se passar pela sua cabecinha querer voltar aqui em casa para se vingar, saiba que sou mais esperta que você, e você já sabe o que te espera.
- Moça, eu só quero ir embora... prometo não contar para ninguém... nem voltar.
- Claro que não vai contar, eu sei muito bem disso – ela respondeu, e umedecendo um lenço em um líquido transparente que estava em um frasco ali perto, o segurou sobre o nariz de Sérgio.
Ele tentou reagir, mas as suas forças já tinham o abandonado faz tempo. Em poucos segundos, estava inconsciente. A boca da velha parecia sorrir, sem se mover. A boca da moça com certeza sorria satisfeita.
A garotinha usava um vestido e brincava no escorregador do parque. E ela repetia a mesma música infantil, sempre o refrão. Aquele som apertava-lhe o peito e o fazia chorar. Quanto mais ela cantava mais ele sentia-se mal. A garotinha, sentada no brinquedo, o encarava com o sorriso e os olhos de velha.
Sérgio acordou sobressaltado no banco da praça. Era final de tarde e ele demorou perceber aonde estava. Quando percebeu, deu um salto assustado, olhando para o banco. “Maldito lugar”, pensou. Tudo parecia um pesadelo. Mas pesadelos não te deixam dolorido e fraco. Olhou rapidamente ao redor, e percebeu que estava só. Havia apenas uma garota brincando no parque. Um frio correu por sua espinha enquanto ele cambaleava o mais rápido possível até o ponto de ônibus.
Entrou no ônibus sem olhar para trás. Não queria saber quem o levara até a praça, muito menos lembrar as cenas que estavam e sua cabeça. Queria esquecer tudo. Pediu folga no serviço, não se sentia bem. Em casa, não entendiam o que ele tinha, até porque não apresentava sintomas de doença. E se recusava em ir ao médico ou a contar o que acontecera. Passou a acordar no meio da noite gritando. Não assistia mais tevê nem os jogos de futebol nos fins de semana. Perambulava pelas ruas como um morto-vivo. Ficava horas olhando o vazio. Parecia que algo escuro crescia dentro dele.
Dois meses depois, tocava a campainha da casa em que moravam apenas neta e avó.
(escrito originalmente no blog www.jefferson.blog.br em 21.03.2010)