O pior cego é o que não quer duvidar
Os raios de sol de fim de tarde formavam desenhos caleidoscópicos no chão da praça quando filtrados por entre as folhas das árvores. Ainda não havia começado a escurecer, mas não tardaria muito. O movimento corriqueiro pós expediente já cessara, com as domésticas partindo no sentido periferia nos mesmos ônibus que despejavam as secretárias vindas do centro da cidade. Na praça, poucos transeuntes. Apenas uma moça encontrava-se sentada, imóvel, em um banco de madeira admirando a calmaria.
Os seus óculos escuros destoantes com a baixa luminosidade local e uma quase imperceptível bengala encostada ao seu lado não foram notados pela maioria dos que ali passaram. Mas foram por um rapaz que, parado na frente dela, a uma distância segura, percebeu as peculiaridades da moça e não acreditou à primeira vista na sua sorte. Disfarçadamente, olhou para um lado, depois para o outro, espreitando se alguém mais prestava atenção, enquanto vários pensamentos atropelavam-se na sua cabeça, cada um querendo não desperdiçar a oportunidade. Quando alguns deles juntaram-se para formar uma ideia, apareceu tanto um brilho em seu olhar quanto um leve sorriso malicioso. Seria fácil demais.
- Quem está aí?
...
- O que é isso? Pare de pegar em mim, seu abusado. Socorro! Socor...
Enquanto a moça se debatia tentando acertar o seu interceptor, o som da sua voz cessou quando ele a empurrou, derrubando-a no chão. Ela ouviu alguns passos correndo à sua direita. Mais distante ouviu alguém gritar.
- Volte aqui, seu cafajeste! Você vai ver agora...
Ainda no chão, apurou os ouvidos e escutou sons de movimentos no chão, de gemidos e batidas, gritos e xingamentos, até tudo ficar silencioso. Ela estava nervosa, passou a mão em seu ombro e percebeu que uma alça da sua blusa estava rompida. Apalpou o chão e chegou até o banco, para perceber que a sua bolsa desaparecera. O som de passos vindos em sua direção recomeçara.
- Puf, puf... toma aqui, moça... puf, cof, persegui o ladrão... cof, cof... deixou a bolsa cair... puf... tudo bem com você?
Direcionando a cabeça para o seu interlocutor, com uma das mãos segurando o lado da blusa que, sem sustentação, insistia em cair como um decote ousado, ela estedeu a outra mão em direção a ele e pegou a bolsa.
- Muito obrigada, senhor. Eu não sei o que seria de mim se o senhor não tivesse aparecido para me ajudar... – e sentou-se no banco e pôs-se a chorar, com a cabeça baixa.
- Calma, moça, calma... O pior já passou, e o malandro levou umas boas bordoadas. Garanto que ele vai pensar melhor ao tentar fazer isso novamente. Aiaiai...
- O que foi?
- É que na briga devo ter machucado o tornozê-lo e só agora senti a fisgada. Vai ver que distendi algum músculo ou ligamento no calor do momento. Mas basta eu me sentar um pouco que deve passar.
- Senhor, por favor, me deixe agradecer pela ajuda. O meu nome é Míriam e moro aqui perto. Venho sempre aqui nos fins de tarde para escutar os pássaros se preparando para dormir. Se o senhor conseguir andar pelo menos meia quadra, posso pegar um pouco de gelo para que o senhor coloque em seu tornozêlo.
- Não precisa se incomodar, moça, eu não quero atrapalhar.
- O senhor não vai atrapalhar, seu...
- João.
- Pois então, seu João, eu tenho a obrigação de ajudar no seu machucado e o senhor pode me acompanhar até em casa, assim ficarei mais tranquila de que aquele homem não vai voltar mais.
- Tudo bem, Míriam. Mas não posso demorar, pois estou indo para casa e moro longe. E já perdi o ônibus que costumo pegar.
- Que pena, mas faça assim: se apóie em meu ombro enquanto eu guio nós dois até a minha casa.
- Ok.
Míriam pegou a bengala e com uma habilidade que somente os que não a tem acham sobre-humana e foi orientando-se através de passos contados e marcações previamente identificadas. João a acompanhava, mancando levemente. Mas o sorriso malicioso continuava em seu rosto. O seu plano funcionara até ali. Míriam acreditou que fora atacada por um homem e que outro a havia salvo, sem perceber que ambos eram a mesma pessoa. E agora ela o levava para a sua casa.
(texto escrito originalmente em 07.03.2010 no blog www.jefferson.blog.br)