UM PULO EM CASA

Os ladrões entraram na casa pulando o muro dos fundos, longe dos olhos das poucas pessoas que passavam pela rua. Eram três e não tiveram nenhuma dificuldade para chegar até o quarto, onde eu dormia com minha esposa. Renderam-nos, trouxeram meu filho que dormia no quarto contíguo e começaram a procurar pelo cofre. Tentei fazê-los entender que não havia cofre algum, que eles se enganaram de casa, que eu e minha esposa éramos simples professores secundaristas e tudo o que havíamos conseguido na vida foi à custa de muito trabalho e sacrifício, mas eles não acreditaram. A situação ficou cada vez pior, os bandidos estavam nervosos e só queriam saber do bendito cofre, até que um deles puxou meu filho para si e encostou o revólver na sua cabeça, gritando que mostrássemos a localização do cofre ou ele atiraria. Minha esposa gritou desesperada, o que só contribuiu para piorar as coisas, enquanto eu tentava argumentar com o bandido para que não fizesse aquela loucura. No momento em que tive certeza de que ele ia atirar, lancei-me como um louco em direção à arma, na tentativa de desarmá-lo.

O estampido seco do tiro cortou a noite silenciosa como um trovão.

- Você está bem?

Minha esposa estava sentada na beirada da cama e enxugava minha testa com um lenço. Tanto o travesseiro quanto meu pijama estavam encharcados de suor e o meu coração ainda batia descompassado em virtude do pesadelo. Era a terceira vez naquela semana que eu acordava no meio da noite aos gritos. Já havia se passado dois meses, mas o trauma do assalto ainda permanecia bem vívido em minha memória.

- Marina, eu não agüento mais! Quase todas as noites eu tenho o mesmo pesadelo, aquele homem puxando o gatilho da arma, você gritando e nosso filho...

- Calma, querido, vai passar... - ela me abraçou - Eu também não consegui esquecer. Mas o importante é que tudo terminou bem.

- Sim, mas foi somente graças à providência Divina. Quando penso no que poderia ter acontecido a vocês...

Ficamos abraçados em silêncio na escuridão do quarto iluminado apenas pelo clarão da lua minguante que entrava pelo vidro das janelas gradeadas. Depois da invasão, eu havia colocado grades em todas as janelas e trincos reforçados nas portas, além de um sistema de alarme eletrônico, mas mesmo assim não me sentia seguro. A violência deixara de ser uma simples notícia no telejornal das oito para se transformar no meu pior pesadelo.

- Querido...

- Sim?...

- Precisamos sair um pouco do Rio. Ir para algum lugar afastado, descansar um pouco e tentar esquecer o que aconteceu.

- Férias?

- E porque não? Estamos em janeiro, as aulas só recomeçam em dois meses... Nosso filho também está precisando mudar de ares.

Marina tinha razão. Há muito me considerava um homem urbano e adorava morar no Rio, mas estávamos precisando passar uns dias longe da confusão e do caos que toda metrópole parece respirar. Para alguém oriundo do interior de Minas, eu havia me adaptado muito bem à cidade grande, mas às vezes, tinha saudades do ar puro do campo.

- Em que você está pensando? - perguntei.

- São João del Rey - ela respondeu.

Foi o que eu imaginava. Há cinco anos que nós não visitávamos meus pais. Ela sabia dos problemas de relacionamento entre papai e eu, e queria aproveitar a ocasião para selar a paz entre nós. Nos últimos quinze anos, desde que eu viera para o Rio de Janeiro, só havíamos nos encontrado por três vezes: nas duas ocasiões em que papai e mamãe nos visitaram, por conta do nosso casamento e do nascimento de Carlinhos, nosso filho, e na única vez em que fomos à fazenda, há cerca de cinco anos. De resto, apenas cartas esporádicas escritas por mamãe a cada oito ou dez meses.

- Vamos, querido, não seja tão cabeça-dura! Você não pode ficar alimentando essa rixa com seu próprio pai por anos a fio...

Eu me levantei da cama.

- Você diz isso porque não o conhece direito. Precisava ver o que eu sofri para poder sair de casa e viver minha própria vida!... Se pudesse, ele teria me amarrado ao pé da mesa para que eu permanecesse na fazenda, trabalhando com ele.

Positivamente, esse não era um assunto que eu gostasse de conversar. Sempre que me lembrava da intransigência do meu pai, acabava me aborrecendo.

- Você precisa entender que ele fez planos... E contava com você para ajudá-lo a tocar os negócios na fazenda, e quando percebeu que não seria da forma como ele planejou, ficou decepcionado. Afinal, você era seu filho único mas preferiu fazer sua vida longe dos olhos e dos negócios da família. É perfeitamente compreensível que ele ficasse chateado.

Lembrei-me da cara de decepção que ele fez quando eu o informei que estava partindo para o Rio. Depois desse dia, nunca mais me tratou como filho. Foi como se eu tivesse morrido para ele.

- Sim, mas por quinze anos? Que pai é esse que odeia o filho por quinze anos?

- Ela se aproximou e me abraçou novamente.

- Meu amor, já está na hora de vocês pararem com isso. Procure entendê-lo, lembre-se que você também tem um filho. Além do mais, esse é um momento em que precisamos unir a família e nada melhor do que fazer as pazes com seu pai para que isso aconteça. Então, vamos à São João, está bem? É pelo seu bem e da sua família...

Permaneci em silêncio por alguns instantes. Por fim, dei-me por vencido. Marina sabia ser bem convincente quando necessário.

Em três dias, estávamos a caminho de São João del Rey. Antes, porém, passamos na casa dos pais de Marina para nos despedirmos, pois não sabíamos quanto tempo ficaríamos fora do Rio. Me senti meio constrangido pela falta de atenção que eles nos deram, mas como nunca havíamos sido íntimos mesmo, procurei tratá-los com a mesma frieza. Marina ficou ressentida, mas tratou de não demonstrar. E eu não sabia como consolar minha esposa, pois em se tratando de relacionamentos familiares, eu não era a pessoa mais indicada para fazê-lo.

Chegamos à fazenda num final de tarde de uma sexta-feira. Percebi algo diferente logo na porteira: o mato estava alto, parecia que há muito tempo ninguém transitava por aquelas bandas. Ao nos aproximarmos da casa principal, notei que tudo estava em silêncio, tão diferente do tempo em que eu morava ali e havia um entra-e-sai de pessoas, animais e veículos. Não vimos uma única cabeça de gado ou cavalo desde a porteira da fazenda até a casa, e o mais estranho: não vimos ninguém.

Parei o carro em frente ao casarão colonial do século XVIII. A tinta era de um amarelo bolorento e mal cuidado. A fachada maltratada pelo tempo nem de longe lembrava aquela fachada imponente dos meus tempos de criança. O mato e as ervas daninhas cresciam por toda parte, tomando conta de onde antes ficava o pomar que mamãe plantara e cuidava regularmente. O descaso com a propriedade só não era mais assustador que o silêncio que imperava naquele lugar.

- Deus do céu, o que aconteceu aqui?

Eu estava pasmo. Minha esposa, que ainda lembrava da única vez em que estivera ali, também estava assustada.

- Para onde foi todo mundo? - ela pegou na minha mão.

- Carlinhos, venha aqui com papai - tratei de puxar meu filho pelo braço e colocá-lo à nossa frente, onde pudéssemos vê-lo.

Caminhamos em direção à porta. As tábuas da varanda rangeram sob nosso peso.

A porta estava aberta, como era costume. No interior quase não se usam as chaves das portas. Nós entramos e logo percebemos que a decadência do exterior também se fazia presente no interior do casarão. Manchas de infiltrações desciam pelas paredes até quase a metade, algumas rachaduras partiam das quinas de portas e janelas, e enormes teias de aranha pendiam nos cantos e nos objetos e móveis que ainda restavam na enorme sala. Uma parte do reboco estava espalhado pelo chão.

Eu não sabia o que pensar. A fazenda estava completamente abandonada.

Tentávamos entender o que se passara ali. A última carta que mamãe me escrevera datava de pouco mais de um ano. Mas em nenhum momento ela deixara transparecer que havia algo de errado acontecendo com eles. As notícias que me enviava eram sempre as mesmas... Sempre iguais...

- Ah, meu Deus! - sentei-me desanimado numa cadeira que quase cedeu com o meu peso.

- Querido, o que se passou por aqui? - Marina me perguntou - Parece que ninguém mora nessa casa há meses...

Eu não sabia o que responder.

- As cartas...

- Que cartas?

- As cartas que mamãe me enviava... Estive pensando... Salvo por um ou outro detalhe, pareciam cópias fiéis. Eram sempre as mesmas notícias, nos últimos cinco anos... Droga, como eu não percebi? Era a mesma carta, sempre... Somente a data, a ordem dos assuntos e um ou outro cumprimento eram mudados. Mas o conteúdo... Tudo idêntico!

- Alberto, precisamos ir à polícia. Temos de saber o que aconteceu com seus pais...

Levantei-me de um pulo. A polícia de novo entrando em minha vida! E eu que fora até ali para descansar. Tentando fugir de um pesadelo e caindo em outro...

Subitamente, ouvimos um barulho lá fora. Corri para a janela empoeirada e vi um garoto negro atirando pedras em uma mangueira ao lado do casarão.

- Pai, é um menino! - espantou-se Carlinhos.

- Sim... - respondi - Quem sabe ele pode nos contar o que aconteceu aos meus pais.

Dei a volta rapidamente na casa e gritei:

- Hei, garoto!

Ele pareceu não me ouvir.

- Hei, você! - tornei a chamar.

Dessa vez ele ouviu, pois estacou com uma pedra na mão.

- Você é surdo?! - berrei, poucos passos às suas costas.

Finalmente ele me viu, pois arregalou dois olhos enormes e tratou de soltar logo as pedras e sair correndo como um louco.

- Espere! Eu não vou te fazer mal... - ainda tentei dizer, mas já era tarde demais, ele havia sumido em meio ao matagal.

Marina veio em minha direção:

- Onde está ele?

- Sumiu... Correu pro meio do mato. Possivelmente achou que ia brigar com ele por estar roubando mangas...

- Querido, não quero ser chata, sei que você está muito preocupado com seus pais, mas a noite está chegando e precisamos decidir logo o que vamos fazer. A casa está abandonada, não creio que temos condições de passar a noite lá dentro, ainda mais com uma criança...

Estávamos voltando para dentro de casa, Carlinhos ficou parado na soleira da porta nos esperando.

- Marina, ele tem nove anos, não é mais nenhum bebê - Argumentei.

Ela parou e me olhou firme:

- Acontece que não temos comida, nem luz elétrica. Os colchões das camas estão empoeirados e viraram ninhos de baratas e sabe-se lá que insetos mais. Os lençóis estão comidos pelas traças. E o banheiro, acho melhor nem comentar... Por isso, meu caro Carlos Alberto, é melhor o senhor tratar de entrar logo nesse carro e nos levar para a cidade, antes que escureça e não possamos mais achar o caminho. Nós não vamos passar a noite aqui, está bem?

Ela estava certa, o casarão não oferecia a menor condição de passarmos a noite nele.

- Ok, vamos para São João del Rey. Lá poderemos nos informar melhor sobre o que aconteceu aqui, e então saberei como agir.

Ela se deu por satisfeita. Estávamos caminhando em direção ao carro, quando minha esposa parou subitamente e agarrou o meu braço.

- O que foi agora?...

Ela estava pálida e não disse nada, apenas apontou para a janela do primeiro andar, onde uma luz de vela iluminava vagamente o que seria um vulto de mulher.

Subi as escadas de três em três degraus, ela estalava embaixo de mim, mas eu tinha pressa de chegar ao quarto. O primeiro cômodo era o quarto dos meus pais, e ao abrir a porta senti logo uma lufada de vento abafado, como se a porta não fosse aberta há muito tempo. Havia uma mulher com uma vela acesa olhando para fora, através da janela. Ela estava de costas para mim, de modo que não percebeu imediatamente minha entrada no cômodo. Meu coração disparou ao perceber uma ligeira semelhança naquela silhueta.

- Mamãe!!! - chamei.

A mulher se voltou, e eu quase caio para trás ante o impacto de vê-la naquela situação: estava praticamente irreconhecível, magra e pálida, com os olhos apagados e sem vida, em nada parecendo a mulher forte e decidida que eu conhecera noutros tempos.

- Filho... É você?... - ela levantou a vela para tentar enxergar melhor.

Corri para abraçá-la e senti toda a fragilidade daquele corpo em decadência que se abandonou em lágrimas de felicidade ao me abraçar.

- Filho, filho!... Pensei que nunca mais o veria nessa vida... Ah, como Deus é bom, dando essa última alegria a uma velha cansada como eu!...

- Mãe, o que aconteceu? Confesso que estou assustado com o que vi hoje! O que houve com a fazenda? Onde estão todos? E papai?...

Ela enxugou as lágrimas que não paravam de brotar daqueles olhos fundos.

- Ah, filho, a vida tem sido muito dura para nós. Eu fiquei doente, coisa séria... Seu pai foi vendendo tudo o que podia, tentando pagar o tratamento. Foi tudo embora, filho, todo o trabalho de uma vida inteira... - não havia mágoa na sua voz, apenas uma tristeza de cortar o coração.

Nesse momento Marina e Carlinhos entraram no quarto e ao se depararem com mamãe tomaram um tremendo susto. Marina, com sua calma habitual, foi a primeira a se recuperar e abrir seu imenso sorriso:

- Sogra! Estávamos preocupados com você!...

- Vocês vieram também!... Venha cá, me dê um abraço, meu netinho!

Carlinhos, ainda assustado, pareceu não se sentir muito à vontade, afinal ele nem lembrava da avó direito. Mas Marina o fez caminhar em sua direção e dar-lhe um abraço, ainda que tímido. Em seguida foi a vez de minha esposa, que lhe disse o quanto nós estávamos preocupados.

- Pensamos até em ir à polícia. Não tínhamos idéia do que havia se passado por aqui, a casa nesse estado de abandono...

- Por causa da doença, eu passo o dia quase todo na cama. Afonso é quem tem cuidado da comida, e da casa... Pobre do meu Afonso, depois de trabalhar o dia todo na roça, ainda tem que cuidar de uma velha imprestável como eu...

- Mamãe, não diga isso! Mas o que eu quero saber é por que vocês não me avisaram nada?... Eu estou abismado com tudo isso. A senhora doente, papai tendo que vender tudo e ninguém me avisa! Isso é um absurdo!

Minha mãe abaixou o tom de voz:

- Você conhece seu pai... Sabe que ele nunca pediria sua ajuda.

- Pode até ser. Mas a senhora... Mãe, porque você não disse nada nas suas cartas? Eu tinha o direito de saber, de ajudar...

Ela me olhou com a fisionomia serena que me lembrou a minha velha mãe de outras épocas:

- Ele me proibiu, filho. Não queria que te avisasse, revisava cada carta que eu te mandava.

Olhei com raiva para minha esposa.

- Está vendo? Esse é o meu pai! Mamãe doente e ele só consegue pensar no orgulho próprio. Você poderia ter morrido, mamãe!...

Ela tornou a me abraçar carinhosamente.

- O importante é que estamos todos juntos novamente, filho... Todos juntos...

Ouvimos a porta do saguão bater e passos no andar de baixo.

- Seu pai chegou, filho...

Eu me encaminhei para a porta, mas Marina barrou minha passagem:

- Por favor, meu amor, tenha calma! Não fique nervoso com seu pai, vamos evitar uma discussão que não vai levar a nada!...

Eu a afastei delicadamente do caminho.

- Pois sim... Ele não perde por esperar.

Abri a porta e desci as escadas.

Lá fora, o último raio de sol mergulhou na escuridão da noite.

Ali estava ele, finalmente. Papai, assim como mamãe, em nada lembrava aquele homem forte, de braços longos e feições enérgicas que sempre fora. O tempo também não havia sido generoso com ele. Estava encurvado pelo peso das preocupações e havia envelhecido pelo menos quinze anos nos últimos cinco. Confesso que fiquei desarmado diante daquele homem que era somente uma sombra do que fora um dia. Toda minha raiva passara como que por encanto.

- Papai... - eu chamei.

Ele não esboçou a mínima reação. Acendeu um lampião de querosene na parede, depois se encaminhou para a mesa e desembrulhou um pacote que estava no centro dela. Ele devia ter trazido aquele pacote, pois não me recordava de tê-lo visto ali antes. Retirou de dentro dois pães e um pedaço de lingüiça, e começou a fazer um sanduíche.

- Você vai comer, enquanto mamãe fica com fome e no escuro?

Mais uma vez ele pareceu não ouvir, pois pegou uma garrafa de vinho que também não estava ali antes, despejou um pouco numa caneca e começou a comer o sanduíche.

O sangue me subiu à cabeça novamente.

- Escute aqui, você vai se fazer de surdo por quanto tempo? Está com medo de me encarar? Vamos, diga alguma coisa... Mamãe doente e você só pensa nesse seu orgulho idiota!

Dessa vez ele parou de mastigar e se voltou em minha direção. Olhou diretamente para mim, mas dava a impressão de olhar através de mim. O olhar cansado não demonstrava querer briga, antes parecia pedir descanso. E dois sentimentos antagônicos se misturavam dentro de mim: ora a raiva, a vontade de bater com força na sua cara pelo que deixara acontecer a mamãe, ora uma imensa tristeza ao me deparar com aquele homem frágil e cansado da vida que estava diante de mim. Ele me encarou por quase um minuto, sem dizer uma palavra sequer.

- Eu nem sei se vale a pena discutir, papai. Mas a verdade é que você fracassou completamente na vida. Perdeu tudo o que tinha, por causa da sua teimosia e do seu orgulho. Eu poderia ter lhe ajudado, mas você era bom demais para pedir a minha ajuda, não era?...

Nenhuma reação, apesar de estar olhando diretamente para mim.

- Por que você não diz nada? Fale alguma coisa, defenda-se!

Nada. Havia algo muito estranho ali.

Aproximei-me da mesa. Ele levantou-se de um pulo, assustado, olhando para todos os lados com os olhos arregalados.

- Você agora enlouqueceu? Além de mudo focou louco?...

Foi quando aconteceu aquilo: assustado, ele deu um salto para diante e passou por mim. Eu recuei horrorizado.

- Deus! Eu o senti.... Eu o senti dentro de mim!... Ouvi seus pensamentos!... O que está acontecendo?!? O que está acontecendo?...

Eu olhava para o meu próprio corpo, tivera a nítida impressão de que meu pai passara dentro de mim... Mamãe, Marina e Carlinhos estavam parados no alto da escada. Papai se encolhera num canto, e tentava se defender de um ataque imaginário fazendo movimentos frenéticos com os braços.

- Desculpe, filho... Mas já está na hora de você saber a verdade.

Eu olhei para mamãe sem entender o que ela queria dizer.

- Meu amor, fique calmo. Nós estamos aqui, do seu lado. Por favor, não se preocupe, tudo vai dar certo.

- Marina... O que significa isso? Por que vocês estão agindo de forma tão estranha?

Ela desceu as escadas e postou-se ao meu lado. Pegou minhas mãos entre as suas e falou suavemente:

- Sabe o seu pesadelo?... Não era apenas um pesadelo.

- Não era pesadelo? Mas é claro que...

- Tente lembrar-se... Você pode, você consegue. Está tudo aí dentro... - ela apontou para minha cabeça.

Eu olhei nos seus olhos castanhos e fui sugado para dentro de um turbilhão de acontecimentos... O assalto... O ladrão apontando a arma para a cabeça de Carlinhos... Eu pulando sobre ele... O tiro... O tiro...

Coloquei as mãos no rosto.

- Não, é impossível!... Não pode ser... - minhas lágrimas começaram a cair suavemente.

- Sim, querido, pode ser sim. E quanto mais depressa você admitir a verdade, será melhor para todos nós. Você precisava vir aqui, precisava rever o lugar da sua infância, precisava rever seu pai... E perdoá-lo.

Eu balançava a cabeça negativamente, não aceitaria assim, sem lutar.

- Querido, olhe para mim... Aceite a verdade, precisamos ir embora. Este não é mais o nosso lugar... - Marina lutava para manter meus olhos fixos nos seus.

Então a verdade se revelou, e veio como um clarão que ilumina as trevas da noite: eu me vi saltando sobre o ladrão e ele atirando. O primeiro tiro acertou a cabeça de Carlinhos e o sangue espirrou em mim, junto com pedaços de miolos do seu cérebro. O segundo tiro acertou Marina, que havia se abraçado a ele... Marina, minha amada Marina, caindo sobre meu filho... E eu gritando desesperado, segurando a arma junto com o bandido... Ficamos assim por segundos que pareceram séculos, até que a arma disparou novamente... Senti a bala rasgando meu abdômen e logo em seguida o sangue se esvaindo por entre minhas mãos. Os bandidos correram em disparada... E eu me arrastei até minha família, a família que eu não pudera salvar.

Carlinhos, meu filho, sinto muito mesmo! Uma vida inteira que você não terá para viver... As namoradas que nunca beijará... Os aniversários que nunca irá comemorar... Marina, minha doce e forte Marina... Como é triste saber que não verei mais seu rosto lindo... Nem o seu sorriso...

Por isso meus sogros não nos deram atenção... Eles não podiam nos ver! E o garoto que estava roubando manga... Ele, de uma forma ou de outra, pressentiu a nossa presença. Por isso o susto!...

- Mamãe... Há quanto tempo aconteceu?...

- Alguns meses, meu filho, alguns meses...

Marina me abraçou e depois ao nosso filho, e ficamos assim, enquanto a luz aumentava de intensidade. Mas mamãe permaneceu onde estava.

- A senhora não vem? - Marina perguntou.

Ela sorriu e apontou para papai, sentado no chão, sabendo que alguma coisa estava acontecendo diante dele, mas sem conseguir atinar direito o que era.

- Eu não posso, queridos. Algo ainda me prende à vida terrena. Mas dentro de pouco tempo nos encontraremos em um outro lugar. E será um tempo muito mais feliz que esse aqui, eu creio!

A luz ficou mais forte e mais reconfortante... Era maravilhosa aquela sensação de bem-estar, de amor e de paz que sentíamos.

A última coisa que ouvi foi a voz da minha mãe dizendo:

- Até breve, amo vocês!