OUTRA MALA

BASEADO EM FATOS LIGEIRAMENTE REAIS.

Trouxe uma mala, quando veio para o Rio proveniente do Nordeste. De couro marrom, enorme, do tipo resistente que já não se fabrica mais há tempos.

Primeiro guardava na casa da mãe, depois, ao casar-se, levou para a nova casa e guardou-a debaixo da cama do casal, local onde pensou que não ocuparia espaço no pequeno quarto e sala. A esposa, maníaca por limpeza, estava sempre reclamando daquele trombolho embaixo da cama, empoeirada, servindo de esconderijo para baratas, mas ele recusava-se a dar fim na mala, era quase um objeto de adoração.

Ela não imaginava o motivo de tanto amor por uma simples mala velha e fora de moda, mas ele insistia em deixá-la onde estava. No princípio era como uma piada entre os dois, uma brincadeira de casal apaixonado; porém, como o passar dos anos e o natural desgaste do casamento, adquiriu um sentido pejorativo, quase uma batalha psicológica entre marido e mulher pelo domínio da situação. Ela cismou que jogaria fora aquela coisa empoeirada e sem serventia que só atrapalhava a limpeza do quarto, enquanto ele defendia com unhas e dentes sua velha companheira dos tempos de retirante.

Já sem paciência para aturar o que considerava um capricho do marido, começou a implicar com qualquer coisa, como forma de demonstrar sua insatisfação com o rumo que o casamanto tomara: eram os amigos imprestáveis, a profissão sem futuro, a falta de filhos, o futebol na TV, tudo servia de motivo para resmungos e queixas intermináveis. Às vezes ele saía de casa batendo a porta, em outras aumentava o volume da TV ao máximo, deixando-a mais furiosa ainda.

Naquela manhã específica, ao vê-lo sair para trabalhar, pensou consigo mesma: “É hoje!”. Retirou o objeto de discórdia de debaixo da cama, tomando o cuidado para não espalhar a grossa camada cinza que a recobria. Mosquitos voaram em todas as direções e ela não pôde conter a tosse, tal a quantidade de poeira produzida. Pegou a faca da cozinha e retalhou a mala com requintes de crueldade.

Fosse a mala uma pessoa, certamente teria sofrido muito: cada golpe com a faca era dado como se destinado a alguma parte do corpo do marido, em especial aquela que fica bem na junção entre as pernas e o tronco. Em seguida, jogou o que restou no lixo, de modo que ele só veio a descobrir o que acontecera semanas depois, ao estranhar que ela não falava mais no assunto e não encontrar a mala embaixo da cama.

Ficou furioso. Fez escândalo. Jurou que não ficaria assim. E saiu de casa batendo a porta.

Ela ficou só e gargalhou, sentindo-se vingada, relembrando a expressão de paspalho dele ao levantar a ponta do lençol e se deparar com o lugar vazio. Agora sim, o marido sabia quem mandava ali. Já deveria ter feito isso anos atrás, logo que ele inventou de guardar a mala no quarto. Talvez a situação não se deteriorasse tanto, talvez o casamento tivesse um destino melhor caso mostrasse, desde o início, que na casa mandava ela.

Com o passar das horas, começou a preocupar-se. Onde ele teria se metido? Provavelmente divertindo-se com as prostitutas que arrumava na rua, aquele bastardo!... Mas ele veria só, agora ela não daria mais moleza para o safado.

*

Assustou-se quando, tarde da noite, foi acordada por ele. Tinha bafo de bebida e trazia um enorme embrulho na mão. Sentou-se na beira da cama e olhou-a com um sorriso estúpido:

- Oi, querida! Adivinha o que é isso aqui?... - ele perguntou, enquanto rasgava o saco plástico e mostrava o que estava dentro do embrulho.

Ela arregalou os olhos:

- Eu não acredito que você comprou outra mala! Mas... Homem, o que é que há nessa cabeça, pra que essa mala se você não viaja há anos?

Ele sorriu.

A conclusão? Você encontra em "A Mala".