TRIÂNGULO

Primeiro, o telefone tocou apenas uma vez. Em seguida, após cerca de vinte segundos, tornou a tocar e foi atendido em outro aposento da casa, antes mesmo da campainha terminar de soar.

Augusto olhava o aparelho, esquecido do jornal em suas mãos, onde segundos atrás lia a seção de economia. Pensou um pouco, por fim levantou cuidadosamente o fone do gancho e colocou no ouvido:

- ... está bem. Mas seja discreto, por favor. – dizia uma voz feminina.

- Claro, pode deixar - respondeu uma voz masculina. - Então até daqui a duas horas.

Aguardou que o telefone fosse colocado no gancho e só então desligou o seu aparelho.

Ficou a pensar no que ouvira. A voz masculina era de Gilberto Martinez, seu secretário particular. Já a feminina era de Solange, sua esposa. Augusto nunca fora um homem ciumento, desses que se punham a vigiar atentamente a mulher, e desde que casara com ela nunca tivera motivos para desconfiar que estivesse sendo traído, mas aquele telefonema era, no mínimo, suspeito. Procurou lembrar-se de alguma indiscrição que porventura um dos dois pudesse ter cometido, mas não conseguiu vislumbrar em sua memória nada que devesse ser considerado com mais atenção, uma palavra, um gesto, um olhar mais prolongado. Os dois pareciam apenas bons amigos, se é que se poderia dizer isso de duas pessoas que apenas se cumprimentam no trato social diário. Mas aquele telefonema era... Surreal. Será que eles o estavam enganando de fato?

Pensou em Gilberto, seu braço direito na empresa. Até aquele momento considerava-o quase como um filho. Ensinara-o todos os macetes do mundo dos negócios, e ele era um excelente aluno. Desde o primeiro dia mostrara-se solícito e interessado em progredir, desta maneira conseguira destacar-se dos demais treinees e galgara ao posto de assistente da diretoria. Requisitara-o para seus serviços pessoais ao notar a sua habilidade fora do comum em lidar com pessoas, coisa muito importante naquele meio, e o rapaz não o decepcionara, revelando um talento natural para os negócios. Não tinha nenhuma dúvida que ele chegaria logo, logo, a um cargo executivo, e isso sem que fosse necessário que alguém o apadrinhasse. Há dois anos estava com ele, convivendo dez, doze horas por dia. Confiara nele, dera-lhe emprego, um ótimo salário, roupas da melhor qualidade, viagens... Seria possível que aquele Judas o estivesse traindo?

Levantou-se. Encontrava-se no pequeno escritório em sua mansão, lugar onde se refugiava quando queria pensar. Naquele dia havia amanhecido com uma preocupação quanto às ações da empresa, que estavam em ligeira queda na bolsa de valores, e precisava estudar um meio de reverter esse quadro, por isso havia levantado mais cedo do que era costume. Mas a dúvida certamente o perseguiria por toda a manhã e pelo restante do dia, ele não teria condições de se concentrar no trabalho.

Andou de um lado para o outro, recordando a conversa. Então eles haviam marcado um encontro...

Despediu-se da esposa, fazendo um esforço tremendo para não deixar transparecer sua dúvida. Ela o beijou como fazia todos os dias, estava alegre e jovial como sempre. Talvez um pouco demais, na opinião de Augusto. Teria isso alguma relação com o telefonema? Indagou quais seriam os seus planos para aquele dia, mas ela desconversou e disse apenas que teria muita coisa a tratar para que a festa de aniversário de casamento dos dois fosse bem sucedida.

- Ah, a festa...

Ela pareceu surpresa.

- Sim, querido, a festa! Aposto que você já esqueceu da nossa festa amanhã...

Sim, de fato havia esquecido. Mas é claro que não confessou.

- Não, como poderia esquecer?

- Fico feliz que esteja lembrado - ela sorriu, dessa vez divertida. - Meu dia hoje está completamente tomado com os últimos preparativos. Então, vá trabalhar e deixe tudo comigo. Será uma festa inesquecível, você vai ver...

Ele dispensou o motorista, retirou o carro da garagem e saiu, mas parou assim que chegou à esquina e pôs-se a esperar. Não se passou meia hora e logo a esposa saiu também, no carro menor.

Augusto começou a segui-la pelas ruas do bairro de classe alta, colocando-se a uma distância segura para não ser descoberto. Em pouco tempo tomaram a autoestrada Lagoa-Barra, que os levaria ao centro da cidade.

Perguntava-se se seria correto o que estava fazendo, afinal Solange nunca dera nenhum motivo de desconfiança, e 25 anos de convivência não são 25 dias. A vida ao lado dela sempre fora tranquila e agradável, sem grandes emoções, é verdade, mas também sem grandes sobressaltos. Solange era uma mulher equilibrada, que sabia conduzir-se bem em qualquer situação. Desde o princípio do relacionamento deixara transparecer uma confiança à toda prova, ela era o seu porto seguro em meio às tempestades. Augusto nunca fora um homem dado à grandes paixões, mas não tinha nenhuma dúvida: se existia o amor, certamente era algo muito parecido ao que ele sentia pela esposa.

Notou que ela diminuiu a velocidade e pegou o retorno para o bairro vizinho, onde sabia que o secretário morava. Não demorou a comprovar que estava certo: Gilberto a esperava próximo ao seu prédio. Ela mal parou o veículo e ele logo subiu, voltando a seguir para a autoestrada.

Augusto, a essa altura dos acontecimentos, já não tinha mais nenhuma dúvida de que estava sendo traído. A raiva começava a dominar o seu cérebro, e no coração acelerado que parecia querer sair pela boca, um desejo crescia e tomava forma através da respiração ofegante: o desejo de matar.

Durante o dia inteiro não conseguiu pensar em outra coisa. Nem mesmo os problemas da empresa, que tanto o haviam preocupado antes, pareciam importar agora. Solange estava tendo um caso. Era duro de acreditar que aquela mulher, companheira de 25 anos, sempre carinhosa e solícita, o estivesse traindo de uma forma tão vil, recebendo telefonemas do amante em sua própria casa. Por que não o celular? Seria muito mais prático e discreto do que o telefone residencial. Estaria ela tão apaixonada a ponto de perder a noção do perigo?

Tentou disfarçar de todas as formas a raiva que sentia dos dois. Deu um jeito de manter o secretário particular ocupado e bem longe dele durante todo o dia. Achou que se o visse pela frente teria enfiado a mão na cara do safado, isso na melhor das hipóteses, então tratou de afastá-lo da empresa sob qualquer pretexto. Mas de Solange não teria como fugir.

À noite ela esperava por ele, com seu sorriso manso, suas mãos de seda e suas doces palavras, que sabia agora serem falsas. Maldita. Há quanto tempo o estava traindo? Dias, meses, quem sabe anos... Sentia-se um perfeito idiota.

Gostaria muito de ter descoberto para onde eles tinham ido pela manhã, pena que não havia conseguido segui-los por muito tempo naquele tráfego louco do centro da cidade. Mas sabia de vários motéis naquela área, certamente eles não tiveram dificuldades para concretizar a traição. E pensar que Gilberto a teve em seus braços, que esteve dentro dela, sentindo um prazer que era para ser exclusivamente seu... Não, decerto que isso não ficaria assim. Eles tinham de pagar caro pela ousadia de enganá-lo.

Procurou agir normalmente, mas não conseguiu, então inventou uma dor de cabeça para justificar seu comportamento arredio. De olhos semicerrados, acompanhou Solange tirar a roupa e colocar a camisola preta que ele tanto gostava de vê-la usar. Seu corpo dourado e bem proporcional à altura chamava a atenção de qualquer um que se interessasse pela beleza plástica de um corpo feminino, mas Augusto não conseguia sentir nada além de raiva e frustração. Será que ela o amava? E Gilberto? Até onde estaria disposto a chegar por ela? Será que eles pretendiam abrir o jogo ou continuariam a enganá-lo indefinidamente?

Deve ter sido a pior noite de toda a sua vida. Rolou de um lado para outro da cama até quase o nascer do sol. Ao seu lado, Solange dormia como uma criança inocente. Parecia feliz.

*

O novo dia mostrou-se uma continuação do anterior, só que dessa vez não teve como livrar-se da presença do secretário. A cada momento deparava-se com ele, perfeito na condução da sua agenda e dos problemas da empresa. Pegou-se a observá-lo como a um rival. Sim, era jovem ainda, na casa dos 25 anos, alto e de ótima aparência. Músculos rígidos de quem pratica capoeira e musculação, cabelos castanhos claros sobre a testa larga. Impecavelmente vestido num terno marinho que lhe caía muito bem e lhe emprestava um ar distinto de bom moço. Tinha que admitir, qualquer mulher normal se sentiria atraída por Gilberto. Pensou em seus 52 anos, nas rugas de quem viveu a vida para ganhar dinheiro, na calvície que já despontava em meio aos cabelos grisalhos, na falta de tempo para praticar esportes e começou a achar que havia perdido a partida. Mesmo que tivessem basicamente a mesma altura e peso, o secretário era muito melhor distribuído que ele. A única coisa que poderia pesar para o seu lado era o dinheiro. Talvez por isso ela ainda continuasse casada com ele. Mas até quando?

Na hora do almoço, preferiu almoçar num restaurante longe do escritório. Não queria encontrar ninguém conhecido, ainda mais ele. Já havia notado que quando Gilberto passava, um pequeno burburinho se formava na ala feminina da empresa. Secretárias suspiravam pelos corredores, sonhando em serem agraciadas com um simples sorriso do partido mais cobiçado da empresa, sem, no entanto nada conseguirem. Gilberto parecia imune aos encantos femininos. Agora ele entendia o motivo. Por que perder tempo com secretárias, se ele podia ter Solange, a esposa do patrão?

- Desgraçado. Ele não podia ter feito isso comigo...

Perto do final do expediente é que foi se dar conta que aquele era o dia da festa do seu aniversário de casamento. Foi o secretário quem o avisou:

- Seu Augusto, não seria melhor o senhor ir embora mais cedo para se preparar?

- Se preparar? - ele não entendeu.

- Sim, a festa. É hoje, o senhor esqueceu?

Augusto pensou um pouco, até lembrar-se do seu aniversário de casamento. Na verdade aquela festa tinha perdido o sentido para ele. O que estaria comemorando, afinal? 25 anos de casamento? E quantos anos de traição?...

Olhou para Gilberto, que aguardava a sua decisão.

- Sim. Eu já estou indo.

No caminho para casa, tendo novamente dispensado seu motorista, parou numa loja de armas, onde comprou uma pistola semiautomática no câmbio negro. Durante toda sua vida tinha procurado evitar as armas. Conhecia-se o bastante para saber do que era capaz, por isso nunca tivera uma. Sabia que por causa da sua condição social era um homem muito visado, mas sempre dispensara guarda-costas armados. Quando muito, em algum evento, contava com os serviços do seu motorista, um ex-lutador aposentado, que fazia a sua segurança. Não era o caso desse dia, já que a festa era em sua própria casa. Fez o resto do trajeto acariciando o cabo da arma, dentro do bolso, os olhos margeados de lágrimas.

Entrou em casa e atravessou a ampla sala, decorada para a festa. Ainda era cedo, os convidados só chegariam dentro de algumas horas. Subiu as escadas para o seu quarto como quem caminha para o cadafalso. Abriu a porta, a esposa estava acabando de se preparar para a festa. Olhou para ele com olhos de felicidade e o abraçou.

- E então, o que achou?

Abriu os braços para que ele visse o belo vestido que ela acabara de colocar.

Ele ficou quase sem palavras:

- Você está... Linda!...

De fato, ela estava mais bonita ainda do que o normal. A maquiagem perfeita realçava sua beleza natural, e a felicidade se encarregava de transformá-la na mulher mais bonita do mundo aos seus olhos.

Ela o beijou de leve, para não manchar o batom:

- Você também não é de se jogar fora - brincou.

Já ia se afastando, mas ele a reteve pela mão.

- Espere.

Solange achou que ele queria mais carinho e o abraçou novamente, sorrindo. Notou algo frio encostado à sua barriga e abriu a boca para perguntar o que era aquilo, quando ouviu o disparo à queima-roupa e, quase que imediatamente, sentiu-se invadida por um fogo que lhe queimava a carne na altura do estômago. Olhou para ele, que ainda a mantinha colada junto ao seu corpo, e não entendeu o motivo da lágrima que escorria pelo seu rosto triste.

- Querido... - sussurrou - O que... Aconteceu?... Por que você está chorando?...

Suas pernas fraquejaram, mas ele a amparou e a abraçou mais forte. Outras lágrimas vieram após a primeira.

- Meu amor, meu amor... Perdoe-me, meu amor!...

Solange continuava sem entender o que acontecera, apenas sentia as pernas bambas e sua cabeça que começava a dar voltas. Agarrou-se a ele com mais força.

- Augusto... Por que eu estou... Sentindo-me tão... tão...

Só então notou o sangue que escorria do ferimento. Seus olhos se arregalaram, ela afastou um pouco seu corpo do corpo do marido e viu a pistola ainda quente em sua mão. Tentou dizer algo, uma golfada de sangue escapou-lhe pela boca. Começou a se debater inutilmente em seus braços, como a tentar libertar-se daquele abraço mortal. Ele então encaminhou-se para a cama, apertando contra si o corpo da esposa, que buscava desesperadamente ar para respirar. Ela agora chorava convulsivamente, enquanto que, com as mãos, tentava parar a hemorragia, respiração ofegante, sujando os lençóis brancos de sangue.

- Por quê?... Por quê?... Eu... Te a... amava tanto!...

Augusto apenas chorava e tentava abraçá-la.

- Eu não queria... Juro que não queria... Mas vocês me obrigaram...

Ela olhava para o marido e parecia não compreender o que ele dizia:

- Vocês?... Quem?... Do que v-você...

Sua voz diminuiu de intensidade, seus olhos se estreitaram e ela teve uma última convulsão antes que a morte chegasse.

E Augusto ficou ali, em sua cama, segurando o corpo sem vida da mulher que o amava.

*

O celular da esposa tocou.

Ele levantou-se, meio tonto, não sabia quanto tempo passara abraçado ao corpo de Solange. Estava completamente sujo de sangue. Lá fora, podia ouvir a movimentação de veículos chegando para a festa, as bodas de prata que Solange tão diligentemente organizara.

Caminhou trôpego em direção à estante, e antes que pudesse dizer alguma coisa uma voz masculina com leve sotaque estrangeiro soou atabalhoada:

- Madame? Oui, madame, consegui terminar a tempo! Mon Dieu, cheguei a pensar que não conseguiria... Rápido, madame, mande seu chofer vir buscar o presente, ou então aquele simpático rapaz que veio fazer a prova hoje pela manhã. Foi realmente uma sorte acharmos alguém com o mesmo tipo físico do seu marido ou eu não teria como fazer os ajustes necessários. Ah, mas o acabamento ficou perfeito, madame!... O meu melhor serviço, sem dúvida alguma, e olhe que estou no ramo de alfaiataria sob encomenda há vinte anos... Madame? A senhora está aí?... Madame... O que...

O tiro soou como uma bala de canhão através do celular, e o homem com sotaque estrangeiro só pôde ouvir depois disso o barulho do corpo sem vida de Augusto batendo no chão, antes que a linha emudecesse.