O ENGANO

Dizem as más línguas que o português é um dos idiomas mais complicados do mundo, tanto pela riqueza de vocábulos quanto pela presença de diversos sinais e entonações que tornam o seu aprendizado uma atividade de difícil execução para aqueles que se aventuram a tentar desbravar a Última flor do Lácio, inculta e bela (*). Já outros retrucam que isso é apenas uma desculpa para justificar a falta de intimidade da grande maioria das pessoas com a norma ortográfica vigente no país. Apesar disso, nunca se poderia imaginar que a falta de domínio do idioma pátrio pudesse ocasionar a morte de um inocente.

Tudo começou entre quatro paredes, de uma forma bem ao gosto do brasileiro, ou seja, marido e mulher num delicioso idílio amoroso. Naquela tarde chuvosa, João e Rosário encontraram-se sozinhos em casa. Ele havia saído mais cedo do trabalho e como o único filho do casal ainda não chegara da escola, decidiram aproveitar o friozinho agradável da melhor forma possível: no quarto. Mesmo após doze anos de casados, o fogo de ambos era tão intenso quanto na noite de núpcias, graças ao amor que os unia. Sempre que podiam tratavam de apimentar a relação com jogos e brinquedos que o marido trazia da lojinha de artigos sexuais localizada próximo à fábrica onde ele trabalhava como operador de máquinas.

Naquela tarde, a grande vedete era um tubo de creme sabor morango, que João, entusiasmado, tratava de besuntar sobre o corpo da esposa e mais entusiasticamente ainda sugava com a ajuda da língua, provocando em Rosário arrepios de incontrolável prazer. Tudo corria às mil maravilhas, até o momento em que João inventou de chupar o dedão do pé da esposa. Ela então começou a se contorcer de cócegas e pediu para que ele parasse, no que foi solenemente ignorada. Ao invés disso, João proferiu a fatídica frase que seria o estopim de toda a tragédia que se seguiria:

– Ah, meu amor, só mais um pouquinho! Você sabe como eu adoro os seus pezinhos... Eu sou um grande pedólatra!... – ele disse, enquanto beijava os delicados pés de Rosário.

A esposa concordou, sabendo da fraqueza do marido, e os dois deliciaram-se por mais alguns minutos com aquela cena de pedolatria explícita, até consumarem o ato com sofreguidão e entusiasmo.

O grande problema aconteceu no dia seguinte quando Rosário, no intuito de agradar ao marido, procurou Josefa, sua vizinha e manicure nas horas vagas, para dar um realce no pé, objeto de desejo do seu parceiro. Ela queria ficar irresistível para o final de semana que se aproximava e sabia o quanto João era fissurado em pés bem tratados, por isso pediu para que a vizinha caprichasse no serviço, pois os dois iriam sair para comemorar o aniversário de casamento.

– Então vocês vão passear, não é? – sorriu insinuante Josefa, que não perdia uma oportunidade de saber da vida dos outros.

– Vamos sim. O meu maridinho parece um garoto de vinte anos quando se trata de... Você sabe, dessas coisas.

A outra mudou o sorriso para uma careta ao lembrar-se do seu próprio marido:

– Ai, quem me dera que o meu fosse assim também... Para ele, cama é lugar de dormir. Desanimado que só vendo...

– Mas você bem que podia colaborar, Josefa! Um perfume novo, uma roupa íntima bem sensual... Minha amiga, pequenos detalhes como esses fazem milagres!

– Você acha mesmo? – a manicure ficou animada – Mas diga, onde eu encontro essas coisas?

Rosário abaixou o tom de voz e segredou:

– Numa lojinha ao lado da fábrica. João não fica uma semana sem me trazer um presentinho!...

– Mas eu tenho vergonha de entrar nesses lugares, Rosário! Imagina, se alguém me vê...

– Que bobagem, Josefa! Os tempos agora são outros, eu mesma já fui lá com o meu marido. Pede ao Carlos para ele te levar, sua boba.

– Será? – ela pareceu em dúvida, enquanto começava a retirar a cutícula dos pés da cliente.

– Querida, eu te garanto que ele nunca mais vai esquecer aquele endereço... - as duas caíram na gargalhada juntas.

E foi assim, naquele clima de cumplicidade, que Rosário cometeu a maior indiscrição da sua vida, da qual se arrependeria pelo resto dos seus dias:

– Olha, vou te dizer algo, mas não é para sair por aí contando pra todo mundo, tá?

Josefa interrompeu o serviço para prestar mais atenção ao que Rosário iria dizer:

– Pode contar, amiga. Você sabe que eu sou um túmulo...

Rosário abaixou novamente o tom de voz:

– O meu marido é um pedólatra – sorriu timidamente, como se estivesse contando um grande segredo – É por isso que eu vim aqui hoje, dar um trato nos pés. Quero que tudo esteja perfeito para comemorar o nosso aniversário.

Josefa não entendeu muito bem o que a amiga estava dizendo. Afinal ela uma pessoa que não tinha muito estudo e não fazia a mínima idéia do significado daquela palavrinha engraçada. Como é que era mesmo o nome?...

Tudo teria acabado ali, naquela sala, sem maiores consequências, não fosse a completa incapacidade de Josefa em manter a promessa de não comentar com ninguém a confidência feita por Rosário. O caso é que, à noite, em conversa com o marido, ela deixou escapar sem querer o que a vizinha contara:

– Sabe essa vizinha nova do 304? Aquela bonitona toda emperiquitada...

– Não. De quem você está falando? – respondeu Carlão, o marido, se fazendo de desentendido.

– Não se faça de sonso, meu bem, eu já vi você de olho espichado para o lado dela.

– Você tem cada ideia, Josefa...

– Nem pense que você me engana, Carlão, que eu não sou boba. Você sabe perfeitamente que estou falando da mulher do seu novo colega de trabalho, o tal de João.

– Ah, o João. Sei.

– É, sabe sim. Pois ela esteve aqui em casa hoje. Veio fazer as unhas. Disse que é porque eles vão sair para comemorar o aniversário de casamento. Sei não, viu. Eles são meio esquisitos... Ela me contou que o marido, esse seu colega, é um... Pedo... Pedo... Como é que se diz mesmo?...

Carlão parou o que estava fazendo e dedicou mais atenção à esposa:

– Pedófilo? – ele arqueou as sobrancelhas.

A manicure pensou, pensou e por fim concordou:

– É... Acho que foi essa a palavra que ela usou: pedófilo. Mas pelo amor de Deus, não me vá sair espalhando isso pra todo mundo. Ela me fez jurar segredo.

– Zefa, você faz ideia do que significa a palavra pedófilo?

– Credo, homem, é claro que não! Pra mim parece mais um palavrão.

– Pedófilo é um tipo de tarado. Um safado de um tarado!...

– Ah, isso. Eu já sabia, ela insinuou alguma coisa assim. Disse que ele parecia um garoto em se tratando dessas coisas...

– Ela disse isso pra você? Zefa, você não está entendendo: pedófilo é aquele que... Faz safadezas com crianças!

Josefa olhou para o marido sem entender o que acabara de ouvir:

– Safadeza? Mas como safadeza?

– É, isso mesmo que você está pensando! Não se lembra do noticiário na televisão, aqueles caras que tiram fotos de crianças nuas e mandam pelo computador até para o estrangeiro. Eles fazem filmes com crianças se prostituindo...

Ela colocou a mão na boca, horrorizada.

– Não!

– Meu Deus, e pensar que o João, com aquela cara de bonzinho...

A mulher deixou escapar um suspiro:

– Não se pode mais confiar em ninguém, hoje em dia. Eu sempre achei que eles eram meio esquisitos...

Daí para a notícia se espalhar por toda vizinhança foi um pulo. Em menos de vinte e quatro horas todos já sabiam da história do casal de pedófilos do apartamento 304. Menos eles, é claro.

– Dizem que vieram fugidos de uma outra cidade. Por pouco a polícia não conseguiu capturá-los – contava D. Marocas, do 305.

– Dizem também que o computador deles é cheio de fotografias de crianças. E as poses? Só a misericórdia... – retrucava D. Marciana, do 410.

– O pior vocês não sabem: o filho também foi vítima dos pais tarados. Imagine que ele obrigava o menino a dormir com a própria mãe... – se indignava D. Clotildes, do 307 – E filmava tudo!

– Não!!! – exclamavam todas naquela estranha reunião de condomínio, convocada exclusivamente na base do boca a boca entre as mulheres do bloco 14.

– Precisamos fazer algo a respeito. Não podemos deixar nossos filhos à mercê desses dois facínoras.

– Pode deixar D. Clotildes, eu vou falar com o meu marido e veremos o que podemos fazer para expulsá-los daqui o mais rápido possível. Como a senhora sabe, ele é sargento da polícia – a última a falar foi Rosinha, moradora do 207 e casada com o ex-sargento Pimentel, aposentado por invalidez há mais de dez anos, que sempre teve vontade de ser síndica e viu ali a oportunidade de lançar sua candidatura – Tentaremos, inclusive, prendê-los. Afinal, pedofilia é um crime gravíssimo.

- Ele foi sargento da polícia, Rosinha.

A mulher se fez de desentendida:

– O caso é muito grave para nos preocuparmos com coisas tão pequenas, D. Marocas. Pimentel ainda tem bons contatos na delegacia, eu falarei com ele.

As outras mulheres sentiram-se gratas e apoiaram o discurso de Rosinha, que saiu dali com a certeza de que, se conseguisse pelo menos expulsar o casal de pedófilos do condomínio, a próxima eleição seria uma barbada.

Mas as coisas não seriam tão fáceis assim para Rosinha e ela descobriu logo que teria que mudar de tática se quisesse mesmo ser a próxima síndica. Pimentel não se mostrou muito animado com a possibilidade de expulsar um casal recém-chegado sem as devidas provas.

– Pimentel, você precisa fazer alguma coisa! O pobre garoto não pode continuar servindo de escravo sexual para aqueles dois tarados.

– Mas querida, eu preciso de provas concretas para tomar uma atitude. Não posso simplesmente prendê-los ou expulsá-los daqui baseados em suposições.

– Suposições? Como suposições? Foi a própria Rosário quem segredou à manicure do 303 essa história assombrosa. Isso não é uma confissão?

– Não, não é, querida. Ela negaria tudo e seria a palavra da manicure contra a dela. Não há testemunhas, portanto...

– Mas tem que haver uma forma de prendê-los! É um absurdo que eles continuem morando aqui, convivendo com as nossas crianças. Eu não aceito isso!

– Desculpe querida, mas não há nada que se possa fazer no momento.

Rosinha olhou enigmaticamente para o marido:

– Ah, tem sim... Ou eu não me chamo Rosa Pimentel!

Aos poucos os dois perceberam que algo não estava normal no relacionamento entre eles e seus vizinhos. No início era quase imperceptível: olhares, cochichos, alguém que saía de fininho assim que eles entravam em algum lugar, mas com o passar dos dias aquela sensação desagradável de rejeição foi aumentando até se transformar numa animosidade não declarada que os dois podiam sentir nas atitudes dos vizinhos mais próximos. Nem respondiam mais ao cumprimento do casal, davam-lhes as costas e simplesmente entravam em casa. No trabalho, João estava enfrentando uma situação idêntica. Até mesmo Carlão, que sempre o tratara muito bem, agora dera para evitá-lo, não o esperava mais para voltarem juntos quando estavam escalados para trabalhar no mesmo turno na fábrica. Nem mesmo seu filho escapou daquele estranho complô entre vizinhos: o garoto relatou que fora chamado pela diretora da escola para contar sobre sua vida em família, e ouviu insinuações sobre possíveis hábitos nada convencionais que seus pais podiam estar praticando, segundo palavras da própria diretora.

– Mas o que diabos está acontecendo por aqui? O que acontece com essas pessoas, estão todas loucas?... Alguém vai ter que me dar alguma explicação. Será que eles pensam que nós consumimos drogas? – explodiu João, quando soube da conversa que seu filho tivera com a diretora da escola.

– Calma querido. Deve haver alguma explicação para tudo isso – a esposa tentava contemporizar, já sabendo da personalidade explosiva do marido – Pode deixar que eu vou tentar descobrir o que está acontecendo.

Rosário começou a entender tudo ao flagrar Rosinha e mais três mulheres falando dela e do marido. Estava voltando do supermercado e quando entrou, de repente, na portaria do prédio, ouviu a vizinha do 207 falando:

- Então tratem de espalhar essa notícia, quanto mais pessoas souberem das barbaridades que eles praticam, maiores as chance de irem embora daqui o mais depressa possível. E não falem com nenhum dos dois, eles precisam saber que não são bem-vindos aqui...

– Desculpem, mas vocês estão falando da minha família?...

Ao ouvirem a voz de Rosário, as quatro mulheres que estavam reunidas se assustaram e empalideceram. Mas Rosinha, que havia assumido a liderança do grupo, tomou a frente, desafiadora:

– Foi bom mesmo você ter chegado. Fique sabendo que não os queremos mais aqui e vamos propor ao condomínio a expulsão de vocês do prédio.

Rosário abriu a boca espantada. Sabia que algo estava errado, mas não imaginava que fosse tão sério.

– Mas... Por qual motivo? O que nós fizemos de tão grave assim, eu não entendo... Isso é um absurdo!

– Ah, coitadinha, você não entende, não é? Pois todos já sabem o que vocês dois fazem entre quatro paredes...

Rosário ficou lívida de vergonha:

– O que você quer dizer com isso?

– O que eu quero dizer com isso? Vocês ouviram isso, meninas?... Tão inocente!...

A acusada ficava cada vez mais branca, um misto de raiva e vergonha, e não sabia como rebater as insinuações maldosas.

As outras três mulheres só repetiam - Absurdo! - a todo o momento, e balançavam a cabeça negativamente.

– Mas, meu Deus, o que significa isso? Eu não faço a mínima idéia do que vocês estão falando!

Os olhos de Rosinha se abriram e ela crispou o rosto de ódio quando falou:

– Nem ouse falar no nome de Deus, sua vagabunda! E trate de sumir daqui o mais rápido possível, antes que algo muito grave aconteça a você e ao seu marido!...

Rosário, acuada e estupefata ante a violência verbal de Rosinha, preferiu sair dali depressa ou acabaria apanhando daquelas mulheres enfurecidas sabe-se lá com o quê. Subiu rapidamente as escadas mas quando chegou à porta do seu apartamento tomou um outro susto: alguém escrevera em letras garrafais a frase Fora tarados!

– Jesus, isso é um pesadelo! – desesperou-se ela, entrando depressa e trancando-se em casa.

Lá pelo meio da tarde o que ela temia aconteceu: o telefone tocou, e ao atender, uma voz cavernosa ameaçou:

– Vadia! Vão embora ou não nos responsabilizamos com o que acontecerá caso vocês insistam em permanecer aqui como se nada tivesse acontecido!...

– Mas o que...

– Fora daqui! Fora...

Rosário desligou o telefone com um murmúrio abafado de terror, e começou a chorar. Seu filho, que naquele dia havia faltado à escola e estava no quarto jogando vídeo game, saiu assustado e se deparou com a mãe chorando compulsivamente no sofá.

– Mamãe! Por que você está chorando?

A mulher, que não queria deixar o garoto assustado, enxugou imediatamente as lágrimas e tentou se recompor:

– Nada, filho!... São apenas problemas de adultos. Um dia você vai saber o que é isso. Venha cá, me dê um abraço...

Mesmo sem entender nada o garoto abraçou a mãe e percebeu que ela estava tremendo.

Os dois ficaram abraçados por longos minutos.

João chegou logo depois, e com más notícias: sem nenhum motivo aparente seu chefe o dispensara do trabalho no meio do expediente. Ao ser indagado pelo motivo de tal dispensa, simplesmente deu de ombros e disse:

– Não precisamos mais dos seus serviços.

O rapaz ainda tentara argumentar com ele, mas o outro lhe comunicou secamente para passar no departamento de pessoal em três dias úteis e pegar suas contas, depois lhe deu as costas e foi embora sem se importar em despedir-se.

João estava transtornado, sem compreender o motivo de tanta perseguição. Falava alto e gesticulava, Rosário sabia que ele estava no limite de tomar uma atitude extrema, por isso tentou ainda manter a calma:

- Entendo que não há uma explicação plausível para isso, mas creio que sei quem está por trás desses boatos: é Rosinha, a esposa do policial do 207.

– Mas por quê? Nós mal a conhecemos... Que interesse ela teria em denegrir o nosso nome?...

Rosário contou então sobre o encontro que tivera na portaria com as quatro mulheres e de como Rosinha a havia destratado na frente de todas.

– Você acha que é ela quem está à frente desse complô para nos expulsar do prédio?

– Creio que sim, querido. Da maneira como falou comigo, não restam dúvidas que ela é a líder. E essa pichação em nossa porta, tenho medo do que eles possam fazer daqui por diante. Acho melhor nos mudarmos o quanto antes daqui.

– Isso nunca! Não vou deixar que meia dúzia de mulheres que não têm nada pra fazer me coloquem pra fora da minha própria casa!... Eu vou falar com o marido dela agora mesmo, e se descobrir que foram eles, irei direto à delegacia.

– Mas ele é policial, João! Você acha que teremos alguma chance de vencer o corporativismo?... Ouça meu amor, vamos embora daqui, antes que algo de ruim nos aconteça...

Mas João, como todo homem, era um cabeça-dura inveterado, e não quis ouvir os sábios conselhos da esposa.

– De jeito nenhum, Rosário. Agora quem quer saber o que está acontecendo aqui sou eu. Deus é testemunha de que nós nunca prejudicamos ninguém. Isso que estão fazendo conosco é crime! Ameaça é caso de polícia. Eles terão que agir...

Rosário olhou bem nos olhos do marido e viu que ele estava decidido a não entregar os pontos. Mesmo assim, ainda tentou uma última vez convencê-lo a simplesmente ir embora dali.

– Eu não sei João. Mas estou com muito medo do que possa acontecer ao nosso filho. Vamos embora, eles já conseguiram fazer com que você perdesse o emprego... Deixa isso pra lá.

– Não, eu já disse! Eu quero saber quem é o responsável por essas calúnias que andam falando de nós por aí. Seja quem for, vai ter que pagar. Ah, se vai!...

Nem bem ele terminou a frase e o telefone tocou pela segunda vez naquela tarde. João atendeu rapidamente.

– Alô.

Ficou em silêncio por alguns instantes, de repente soltou um palavrão e correu para a porta. Rosário, assustada com a reação inesperada do marido, só teve tempo para fazer a pergunta que João jamais responderia:

– O que houve?

O marido não escutou, pois já estava descendo as escadas do prédio. Rosário foi atrás, e ao chegar ao térreo deparou-se com uma terrível cena: o pequeno carro da família, comprado com tanto sacrifício, estava transformado em uma imensa bola de fogo, enquanto João, em desespero, tentava inutilmente abrir a porta da frente para pegar o extintor de incêndio no seu interior.

– João! – gritou Rosário – Larga isso, pelo amor de Deus!...

Mas João não teve tempo para ouvir o que ela gritava desesperadamente, pois naquele momento as chamas atingiram o tanque de gasolina do veículo, que explodiu violentamente.

O corpo do homem caiu quase ao lado da esposa, que gritou de pavor ao sentir o bafo quente da explosão e respingos de sangue batendo com força no seu rosto.

Durante o inquérito que se seguiu a verdade veio à tona. Foi descoberto que o pivô de toda a confusão fora a ignorância da manicure Josefa, que confundira a palavra pedólatra com pedófilo e assim causara a morte de um inocente. Mas o principal, ou seja, quem colocou fogo no carro da vítima e quem fez a pichação na porta do apartamento, nunca foi descoberto, apesar de os indícios apontarem para uma mulher loira ainda jovem, muito parecida com Rosinha, que foi vista próxima aos dois locais minutos antes dos fatos acontecerem. O ex-sargento Pimentel usou do seu conhecimento dentro do departamento de polícia e sua esposa nunca foi indiciada. Apenas teve que passar uma temporada com a sua mãe, em São Paulo, escapando assim de ser reconhecida como autora do delito.

Rosário e seu filho continuaram a morar por mais alguns meses no mesmo apartamento, até a situação da venda do imóvel se resolver e o garoto terminar o ano letivo. Após a morte do marido, ela podia ser vista todas as noites na sua janela, olhando durante horas seguidas para a imensa mancha escura no estacionamento, lugar em que o carro fora destruído pelo incêndio, muda testemunha da tragédia que se abatera sobre sua vida. Ficava horas na mesma posição, até o filho vir retirá-la da janela e levá-la para cama. Também nunca mais se ouviu a sua voz nos corredores do prédio, pois evitava falar com quem quer que fosse. Alguns vizinhos ainda tentaram se desculpar, mas ela ignorou-os completamente, deixando bem claro que jamais esqueceria o que se passou ali. A vizinhança inteira se sentia incomodada com a presença deles, uma vívida lembrança de algo que preferiam manter no esquecimento.

Quando mãe e filho finalmente mudaram-se, todos respiraram aliviados: finalmente poderiam esquecer aquele pesadelo e recomeçar a viver, livres de qualquer sentimento de culpa que porventura ainda pudessem sentir.

Rosário e seu filho jamais tornaram a ser vistos novamente por aquelas paragens. Pode-se dizer que foram totalmente apagados da memória dos moradores do condomínio, para que todos pudessem voltar à sua vidinha de sempre, como se nada tivesse acontecido.

E estariam esquecidos até hoje, não fossem os estranhos desaparecimentos de Rosinha e Josefa, ocorridos quase três anos após a mudança de Rosário.

Os corpos foram encontrados às margens da rodovia Presidente Dutra. Rosinha teve a língua arrancada e morreu com o órgão enterrado na traqueia. Já a manicure tinha na boca e no estômago dezenas de páginas de um livro, que a autópsia revelou tratar-se de um mini-dicionário Aurélio Século XXI, 5ª edição revista e ampliada. Morreu entalada com o dicionário na garganta. O legista declarou oficialmente que a causa mortis de ambas foi asfixia. Mas dizem as más-línguas que, na verdade, foi a maldita fofoca...

(*) Verso inicial do poema Língua Portuguesa, de Olavo Bilac (1865/1918).