O Túnel
Acordo com a boca seca, uma leve brisa quente bate em meu rosto, sinto o cheiro da umidade no ar, o chão é duro. Levanto meu corpo devagar até encontrar uma posição de joelhos, sinto minha cabeça latejar como se eu tivesse levado a maior pancada de todos os tempos, bem no meio da testa, tento me concentrar um pouco e percebo que estou num breu total, não é possível ver nada, nem mesmo minhas mãos. Vasculho meu corpo em busca de algum ferimento, estou aparentemente bem. Levanto-me com calma , a cabeça latejando, tateio no escuro na esperança de encontrar algo, e encontro, uma parede, a julgar pela brisa quente incessante, presumo que do outro lado ha outra parede. Vou conferir, ando devagar, estava certo, outra parede, logo devo estar em algum tipo de túnel. Automaticamente eu vou com a mão ao coldre do meu revolver, afinal um policial tão experiente sabe que em situações de risco sua arma deve estar sempre em punhos! Policial experiente? Piada! Minhas mãos encontraram o vazio. Ainda não estou raciocinando muito bem, mas está mais do que evidente pra qualquer idiota que eu caí em uma armadilha. Encosto na parede e respiro fundo, a dor ainda está la, martelando minha têmpora, mas está passando. Então decido fazer o que qualquer “idiota” faria: gritei por ajuda!
Gritei feito um louco, mas como era de se esperar, ninguém respondeu, a julgar pelo eco produzido, esse túnel deve ser muito grande. Túnel? Que tipo de louco sequestra alguém e coloca em um túnel escuro? Decido andar contra a brisa, afinal ela está vindo de algum lugar.
Horas se passam e eu andando sempre cauteloso com o caminho oculto pela escuridão, a mão não desgruda da parede na esperança de sempre andar na mesma direção, preciso de um cigarro, pego meu isqueiro, isqueiro! Fogo! Luz! Como não pensei nisso antes? A única coisa que vem na minha cabeça é: “parabéns senhor policial experiente!”. Tento acender uma vez, ele falha. Tento uma segunda, esses isqueiros vagabundos sempre dão problema. Tento uma terceira, quarta... décima. Arremesso longe o objeto comprado de um camelô. Estou eu na escuridão, desarmado e com a cabeça doendo. Ótimo! “Parabéns senhor policial experiente!”
- Não se preocupe com a luz! Não agora! – Do nada uma voz cortou o silêncio mortal, o susto me fez cair no chão, estranhamente não produzia eco, trazia em seu tom uma frieza que nem eu teria conseguido e o mais perturbador: era a voz de uma criança!
Um frio súbito passou pela minha espinha, pela primeira vez desde que eu acordei eu senti uma pontada de medo e não consegui ter nenhuma reação, nunca pensei que pudesse ser intimidado de tal maneira, ainda mais por uma voz de criança.
“Parabéns senhor policial experiente.”
Passou-se uma eternidade até que eu conseguisse me mover outra vez, pensando no próximo passo. Olho ao redor para tentar ver algo, mas é em vão, me sinto uma simples presa nessa escuridão desgraçada.
“Parabéns senhor policial experiente.”
- Quem é você? – finalmente falo – O que quer de mim? – silêncio – Onde diabos eu estou? – nenhuma resposta – Que porcaria é essa?
- Policiais! – finalmente disse a voz – Policiais e suas perguntas tolas! Vocês não tem graça!
- Por que me trouxe para este lugar? Responda! – estou apavorado, mas tentando disfarçar, afinal sou um “policial experiente”
- Já te passou pela cabeça que pode não ser eu quem te trouxe aqui? – era meio óbvio
- O que você quer de mim? – mudo a pergunta
- Bom, de você eu não quero nada, só estou aqui para observar suas próximas escolhas!
Me observar? Minhas próximas escolhas? A verdade é que eu não me lembro de como vim parar aqui, não me lembro nem que dia é hoje, estou apavorado e pensando em minha família, minha cabeça dói mas eu não posso demonstrar fraqueza. Estou encurralado. Ha! Como um rato num laboratório. Então eu faço uma escolha:
- Então eu escolho te dizer algo, vai pro inferno!
Uma gargalhada cheia de inocência corrompida antes da resposta.
- Acalme-se, agora não tem nenhuma arma apontada pra sua cabeça. Ninguém vai tentar te ferir, apenas continue andando, vamos conversar!
Ótimo! Me jogam inconsciente em um túnel escuro apenas pra conversar com uma criança aparentemente com problemas psicológicos que tem total controle sobre mim nessa situação, isso é perturbador! A única coisa que quero é minha família. A dor aumenta e é difícil manter a calma.
- Que tipo de jogo doentio é esse?
- Jogo? Nunca tinha visto por esse lado! Mas eu gostei, vamos jogar! No chão a sua frente tem um objeto, pegue-o, você o reconhece? – a voz da criança trazia uma certa satisfação.
Como ele sabe que tem um objeto a minha frente? Com certeza deve haver varias câmeras de visão noturna aqui, é impossível ver alguma coisa nesse breu, e isso me apavora ainda mais. Me abaixo e realmente havia um objeto, é impossível não reconhecer, por mais que não fosse possível enxergar nada, apenas o tato era suficiente para reconhecer uma arma, objeto que me acompanhou durante quase toda a carreira, e que me ajudou a tirar algumas vidas. Que tipo de loucura era essa? Loucura? Será que essa seria a resposta? Não... Não seria tão facil assim, uma simples loucura.
- Na sua arma só tem uma bala, afinal foi o que sobrou, pense muito bem em como utilizá-la. – um tom sádico que nenhuma criança saberia ter – Continue andando e vamos conversar, afinal como você deve estar pensando, uma hora chegará em algum lugar!
Não poderia fazer nada além de seguir as ordens da voz, estou aparentemente em desvantagem, sinto uma terrível vontade de colocar a arma na cabeça e acabar logo com isso, mas penso em minha mulher e em minha filha, nunca as coloquei em meus “negócios ilegais” na corporação, era quase certo que isso é algum tipo de vingança e eu tenho que ter certeza de que elas não estão envolvidas nesse maldito jogo. Dor desgraçada!
“Parabéns senhor policial experiente.”
- O que você quer que eu faça? – Pergunto
- Fale-me sobre seus últimos anos na corporação, suas condecorações, seus trabalhos bem feitos, as propinas que recebeu e as vidas que tirou injustamente.
Agora ficou bem claro, é uma vingança, sim, vingança! “A sua morte é apenas um reflexo de como viveu”, agora essa frase faz sentido! Fui um bom policial durante muito tempo, mas depois, entrei em certos “esquemas”, daí tudo virou uma bola de neve, não dava mais pra sair e algumas vidas foram tiradas. Alguém deve ter descoberto algo ou me denunciado e agora estou eu indefeso a mercê de alguém que eu nem sei quem é. - “Parabéns senhor policial experiente.” – Sabendo disso me apavoro mais ainda quando lembro da minha pequena menina. Decido deixar claro que já sei do que se trata:
- Então vocês querem vingança? Por que não me mataram de uma vez? Não é assim que as coisas funcionam?
O que ouço é outra gargalhada, infantil, mas cruel! Que tipo de criança era essa? Ao fim da gargalhada, vem a resposta:
- Vingança? Talvez possa ter sido, mas não minha. Em relação a sua morte, pode ser que você morra hoje, é até bem provável, se não, será em breve – isso me atinge como uma punhalada e é difícil esconder o medo – ou pode ser que você seja preso, se você for preso, morrerá também, a escolha vai ser sua, mas se te serve de algum conforto, se você decidir ser preso hoje, terá a chance de refletir sobre seus erros antes da morte, chance que você privou de muita gente por seus motivos idiotas.
Estou estático com o que ouvi, não consigo nem pensar de maneira racional, confusão em minha mente, aquela dor de cabeça, pelos deuses! Minha têmpora parece que vai explodir! E a voz continua:
- Veja bem, estou te dando o direito de fazer uma boa escolha, pois, você desperdiçou toda sua vida com más escolhas, porém, pelo menos uma vez você foi herói e isso já é o suficiente para ter uma chance, agora cabe a você fazer outra, mas pense bem, morte ou prisão? – já tinha me convencido definitivamente que não poderia ser uma criança normal a falar comigo – Por falar em heroísmo, você se lembra de como chegou aqui?
A dor continua forte, mas eu já raciocino melhor, não tenho memórias claras, mas lembro de ter saído mais cedo do trabalho, pois tinha que comprar um presente pra minha filha, oh céus! Minha filha! Hoje é o aniversário dela! Minha esposa me aguarda para fazermos uma surpresa para minha menina. Uma súbita agonia desmorona sobre mim, deixo rolar uma fio de lagrima, estou desesperado. Exausto, já estou andando ha horas. Não tenho noção de tempo nesse túnel maldito.
- Você realmente ama sua família? – agora ele atingiu o ponto fraco
Um misto de dor, raiva, e desespero toma conta de mim:
- O que você fez com minha família seu desgraçado?
- Tenha calma, sua família não faz parte disso! – a voz demonstra um pouco de raiva na afirmação – Sua mulher já sabe sobre você e nesse momento deve estar chorando como qualquer boa esposa faria.
Não aguento mais, caio de joelhos, choro desesperadamente. Minha mulher e minha filha são tudo que eu tenho, não conseguiria viver se soubesse que algo aconteceu a elas.
- Que infernos você quer que eu faça? Quer que eu te pague? Que eu saia da policia? Quer que eu me mate? – Grito com toda minha força, olhando para o vazio interminável da escuridão.
Seguro firme a arma e estou pronto para disparar contra minha própria cabeça se isso significa a segurança dos meus próximos.
- Pare de chorar feito criança! – era irônico ouvir isso
Levanto a cabeça e vejo que a frente, existe um pequeno ponto de luz, “uma luz no fim do túnel!” A dor é terrível agora, parece que ha um picador de gelo na minha testa. A voz novamente fala comigo.
- Bom, o percurso esta chegando ao fim. Mas antes, terá que se lembrar de mais uma coisa.
- Sim... – mal consigo falar, nesse ponto a dor quase me faz rastejar
- Tente se lembrar da loja, se esforce, a loja de brinquedos onde você ia comprar o presente da sua filha.
É difícil pensar com uma marreta batendo na minha cabeça e a preocupação com a vida de quem amo, mas a situação me obriga a fazer o que me mandam. Me esforço para lembrar. Eu estava na loja, escolhendo um presente, havia uma senhora idosa, uma jovem com um bebê no colo e um senhor perto de mim, haviam outros clientes na loja além dos funcionários, mas eu não consigo me lembrar de todos, – minha cabeça vai explodir – de repente um homem entra na loja sacando uma arma e anunciando um assalto – dor de cabeça maldita – ele olha pra mim, eu o reconhecia, sim, eu já o havia prendido em outra ocasião, ele também me reconheceu e não pensou duas vezes, começou a disparar em minha direção, eu, saquei meu revolver e disparei contra, como por instinto, pulei na frente da mulher com o bebê para protegê-la. Não consigo me lembrar mais... Aquele desgraçado deve ter sido mandado por alguém e me trouxe para esse lugar! A dor é insuportável!
“Parabéns senhor policial experiente.”
Quando volto a mim, percebo que já alcancei a “luz no fim do túnel” É uma grande porta redonda, cheia de grandes furos de onde vem a luz e a brisa quente, agora mais forte.
- Vejo que se lembrou do que aconteceu, mas ainda não entendeu muito bem. O que importa é que fez sua escolha e fico feliz por tê-la feito! – novamente a satisfação na voz
- Mas eu não fiz nenhuma escolha. – estou confuso. Dor. Família. Assalto. Sequestro.
- Ah sim, escolheu sim – a voz se tornou mais séria – antes de chegar aqui você escolheu ser herói. Você não foi um covarde! Já aqui, eu te dei a opção da morte ou a prisão para refletir, você tinha uma arma e uma bala, poderia ter escolhido a morte a qualquer hora, mas ao invés disso, preferiu ficar preso nesse túnel para refletir e pesar suas escolhas, as boas e as más e ver que lado da balança pesava mais.
As lagrimas escorriam pelo meu rosto e a voz continuou:
- No final o pouco de honra que você tinha aprisionado falou mais alto! – penso durante alguns segundos no que ouvi - O que você sente por sua família é inviolável! Bom, está na hora de partir, contudo, vou te deixar fazer um pedido antes de cruzar a porta.
Ainda não entendo muito bem o que aconteceu, mas já imagino.
- Eu preciso estar com a mulher que eu amo, nem que seja por mais um minuto – é tudo que eu mais quero
Então a porta se abre. A voz não diz mais nada. Fico um tempo fitando aquela luz que é quase cegante depois de tanto tempo na escuridão, caminho em direção a ela e a dor some...
Beep...Beep...Beep...Beep...
A escuridão voltou, mas dessa vez por que não consigo abrir os olhos, não consigo me mexer.
Beep...Beep...Beep...Beep...
Não consigo falar, nem mesmo a respiração é minha, sinto tubos pelo meu corpo
Beep...Beep...Beep...Beep...
Sinto alguém apertando minha mão e ouço uma mulher chorando, reconheço a voz, é inconfundível, esteve ao meu lado por longos anos.
Beep...Beep...Beep...Beep...
Ouço um homem dizer:
- Infelizmente a bala atingiu a têmpora e houve uma grande perda de massa encefálica, não ha mais nada que possamos fazer, os aparelhos serão desligados.
Beep...Beep...Beep...Beep...
Sinto a mão apertar mais forte, pelos deuses, não consigo nem chorar!
Beep...Beep...Beep...Beep...
Mentalmente digo adeus a minha família, eu fiz minhas escolhas...
Beep...Beep...Beeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee
“Parabéns senhor policial experiente”