"OBSESSÃO..." - CAPÍTULO II

Capítulo II

“Amor desalmado”

Levada por Joaquim à sala de estar, Catharine agora repousa. Apesar de pálida, estava linda naquele modelito francês. O negro, em seu corpo, não exalava a dor intrínseca de se perder um ente querido; contornava-lhe o corpo, resplandecendo enlouquecidamente a sua beleza. Uma beleza surreal, desnorteadora... Puro êxtase!

Ernestina cobriu-a com um manto fino e pediu a Joaquim que a protegesse das malvadezas de George enquanto fosse à plantação da mansão buscar algumas ervas para fazer-lhes um chá. Era o que ele mais desejava. E como desejou esse momento. Não o de vê-la mórbida, caída a um sofá após uma briga com o esposo; mas o momento de poder estar ainda mais perto dela. Dessa mulher que tanto o perturbava.

Sentado ao lado dela, ele arfou. Estava hipnotizado por um desejo latente. Trêmulo, uniu suas mãos as dela, quando percebeu o abismo que havia entre eles. As mãos dele eram grossas, com calos enormes, frutos de uma vida sofrida no sertão; as dela, de uma delicadeza ímpar, cuja espessura assemelhava-se às pétalas de uma rosa.

Desde que chegou à mansão e a viu pela primeira vez, sentiu que Catharine seria aquela que o completaria como homem e o faria viver as maiores aventuras em busca da felicidade. Tinha certeza, amava-a mais do que o ar que respirava... Queria poder tê-la nos braços, amá-la de verdade, sem medo de que isso fosse um erro, algo discriminado pela sociedade - o ser tão cruel dos folhetins. Por mais que fantasiasse, esse amor jamais seria possível! A diferença de classe entre ambos era incomensurável! Pelo menos era o que ele pensava.

Filho da ralé, sem grandes ambições, Joaquim vagou pelo mundão afora na esperança de que Deus o visse uma única vez. Terceiro fruto de uma família desmiolada, ele fugiu da fome assim que a razão lhe dominou. Não poderia morrer como seus pares, naquele sertão que fazia fronteira com as vidas secas de Graciliano Ramos. Por isso veio tentar a vida em São Paulo. Era um retirante! Já ela, uma dama da sociedade, invejada por todos, cortejada pelos herdeiros das famílias cujos brasões estão estampados na antessala do Governador. Havia um Mar Vermelho entre eles e para atravessá-lo, só com a ajuda de um outro Moisés.

Se tudo isso pudesse ser mudado, se tivesse uma oportunidade de tocar seus lábios aos dela ou mesmo ouvir de sua boca um simples elogio... Deus meu, seria fatal! Seu coração não aguentaria! Como George poderia subestimar uma preciosidade como aquela? Como poderia desmerecer àquela cujos olhos lhe substituem o sol em tempos anuviados? Como?

Com a corrente sanguínea explodindo, atreveu-se a violar as leis da moralidade ao tocá-la na face e beijá-la de leve. Mesmo com a voz quase embargada, ousou lhe confidenciar:

_Se Deus permitisse, queria tê-la somente para mim. Seria só minha! Só minha... Viveríamos felizes, longe desse lugar, dessa agonia...

Continuou a se revelar, sob a ameaça constante do pranto, que assim como uma tempestade, anunciava-se, e seria difícil de evitar.

_ Dona Catharine, não vivo mais! Minha alegria sucumbiu à dor desde aquele dia em que cheguei a essa casa. Foi uma paixão fulminante, e como tal, está me levando, me jogando para baixo, como fazem as âncoras dos navios – lágrimas desciam desordenadas por sua face.

Detrás da porta, Ernestina não teve coragem de interrompê-lo. Estava diante de um nobre matuto, que de matuto mesmo, só tinha a aparência, porque as palavras eram de um poeta que roga pela mulher amada. Aliás, Joaquim nunca deixou de estudar, mesmo em São Paulo, e todo livro que encontrava era uma nova fonte de alegria, um passaporte para um mundo paralelo, em que a dor da realidade não passava de mera fantasia.

Por instantes, até mesmo Ernestina se esquecera de George, aquele traste, como ela mesma gostava de dizer. Um fiozinho de esperança reacendia a fogueira da paixão naquela casa.

_ Quanta é a solidão, quanto é o meu amor, meu carinho pela senhora... Meu Deus, o que estou dizendo???– levanta-se apressado, como se quisesse se livrar para sempre daquele mágico sentimento que o movia há tempos. _O que estou dizendo? Ela é minha patroa, a mulher a quem deveria servir... Só isso! Só! O que estou fazendo não está certo, ela é minha patroa, é casada – soluços de dor o conduzem ao limbo dos desalmados. _Livre-me dessa agonia, dessa maldição, meu Deus!

A empregada até quis findar aquele momento de desabafo, mas não conseguira, um homem como ele era raro de se ver. Joaquim não era igual aos outros, parecia enxergar a alma feminina, senti-la, amá-la como se ama alguém muito especial, talvez um filho, uma mãe, uma mulher... Seus olhos não eram de um roceiro; por um instante reluziam a força de um trovador trancafiado dentro de si mesmo. Isso era esplêndido! E lá permaneceu, à espreita, sendo a única testemunha daquela cena quase censurada pelo destino.

_ O que se passa aqui? – inquire o vereador, com a força de um vulcão, surpreendendo a empregada pelas costas. _O que esse caipira faz perto de minha mulher? Fale Ernestina!

A face ruborizada e os olhos estatelados da mulher pareciam não se encorajar em defender o pobre Joaquim. Seria o seu fim?

*Aguarde o capítulo III.