A verdadeira verdade

“Sinto que é a única coisa que eu posso fazer..”.

Me olho no espelho. Os olhos vermelhos, tentando conter o choro.

“Infelizmente não dá mais pra esperar...”

A raiva e o ódio vão tomando conta de mim. Fazendo minha nuca arder.

“Não adianta tentar compreender, não dá! Cansei...”

Dou um murro na parede, fazendo o espelho se entortar.

“Isso passou dos limites. Têm que acabar!”

A luz turva reflete no espelho os cortes no meu pulso.

“Você é fraco, insuportável, gosta de ter atenção...”

O rancor foi tão grande...

“Mas também é a única maneira de saber quem eu sou...”

Vou correndo em direção à cozinha...

“Não chores... Foi preciso...”

Pego a primeira coisa pontuda que vejo...

“A dor logo passa...”

Volto correndo pra frente do espelho...

“Você se sentirá melhor...”

Me arranho. Gotas de sangue respingam no espelho...

“Não te reconheço mais! O que há de errado?”

No começo foi dolorido. Mas junto com a dor, todo o sofrimento se foi...

“Estava sentado diante de uma porta de vidro escuro, impaciente, esperando alguma notícia. Mas fora tarde. A única pessoa que passou diante daquela porta foi uma pessoa de branco, com o rosto literalmente sorridente, olhou pra mim dizendo que sentia ter me deixado, mas ele estava indo a um lugar melhor, longe de todo esse sofrimento.

“Olhei aquilo, e não sabia se chorava ou se me assustava. Foi confuso vê-lo saindo pela porta uma vez que acabara de entrar carregado pela emergência do hospital, vestindo um short jeans e camiseta preta.

“Mas ele ainda estava ali. Me olhando. Feliz. Sentou-se ao meu lado dizendo para não temer. Que era boa a sensação. Unicamente indescritível. Disse que foi difícil no início, a dor que sentiu, o fogo lhe queimando, mas depois, ele entrou numa paz celestial, suas perguntas foram respondidas, suas dúvidas esclarecidas. Mas que ainda sentia falta, o que o fazia diferente dos outros que já subiram até agora. Disse que sentia falta de mim e queria me ver junto a ele.

“Meus olhos se encheram de lágrimas. E ele continuava sorrindo. Foi então que ele se aproximou mais e disse ao meu ouvido que estava me esperando, e que não iria demorar muito. O olhei assustado. Ele me abraçou. Pude senti-lo me apertando. O calor de seu corpo se transferindo ao meu. Sombriamente a temperatura caiu. A porta do hospital se partiu em pedacinhos. De lá vinha vindo uma coisa cinzenta, esfumaçada, que, quando o encarei, pareceu gritar não gostando de ser visto. Do seu braço esquerdo, saiu uma lâmina enorme que atravessou o peito dele, transformando-o em cinzas que voaram ao vento junto com a coisa. Não restava nada mais ali pra mim.

“Com o coração partido, saio dali em direção a minha casa. ‘Sinto que é o melhor que posso fazer’, pensava comigo. ‘Ele se foi, agora fico eu perdido nesse mundo. Sozinho. Sem ninguém que possa me ajudar. Que me entenda. Infelizmente não dá mais pra esperar. Se é isso que ele quer, é isso que terá.’ Entrei e fui em direção ao quarto, deitei em minha cama. ‘Não pode ser! Porque me abandonaste? Éramos tão felizes!’ Já não era possível conter as lágrimas. ‘Você é fraco, insuportável. Gosta de ter atenção! Não! Não é verdade! Sou carente sim, mas, nos entendíamos tão bem!’ Me levanto e vou pra frente do espelho. ‘Não dá mais pra esperar. Isso tem que acabar!’ Vou pra cozinha e cato qualquer coisa pontiaguda. Volto à frente do espelho. Pressiono a ponta no pulso. Inicialmente não havia forças para apertar. Olho pra cima e aperto com tudo. A dor foi terrível, o sangue começou a escorrer. Deixei cair a faca no chão, olhei-me no espelho, não me reconhecia... Meu rosto e olhos vermelhos. Foi então que tudo escureceu...”

Diante do espelho apenas um rosto molhado pelas lágrimas caídas. Os pulsos ardiam. A raiva e o ódio tomando conta de mim. Boto tudo pra fora gritando o mais alto que pude ao mesmo tempo em que esmurrava o espelho fazendo-o despedaçar.

O frio me invade e o vejo olhando pra mim novamente sentado na minha cama. A expressão no rosto dele não era a melhor. Disse que a minha hora ainda iria demorar a chegar. Mas que eu não me machucasse tanto, disse olhando nos meus pulsos e a meu corpo sem camisa e com o peito sangrando, porque ele me queria inteiro lá em cima. Disse para mim ter fé, que aos poucos a dor iria passar, eu iria saber quem sou eu, e não precisaria ficar me escondendo sobre uma máscara, pois com o tempo elas caem e nos mostram o monstro que nos tornamos. E ele não queria isso. Ele queria que eu vivesse minha vida com normalidade. Então perguntei como seria possível viver com normalidade se a única pessoa que amei se fora? Ele respondeu que o simples fato de me aceitar e de aceitar uma perda terrível já seria o começo da normalidade. E que não me deixasse levar pelo que os outros dizem, e que seguisse apenas o meu modo de ser e de agir. Independente de como isso afetaria as outras pessoas. Indiferente de como os outros me condenariam. Indiferente de como eu me aceitaria. Indiferente de tudo. Mas que permanecesse o amor que eu sentia por ele. E que no coração dele eu ainda habitava. E seria a única pessoa a entrar lá.

Dito isso, se levantou e foi em minha direção, tocou no meu rosto com aquela mão gelada fazendo-me arrepiar. Tentei retribuir o gesto, mas ele me impediu falando que não adiantaria eu querer tocá-lo com medo e desacreditando daquilo. Fechei os olhos, suspirei, abri novamente e lá estava ele do jeito que nos conhecemos. Cabelos repicados, olhos claros, forte, sorrindo. Me olhava como se eu fosse precioso. Então sorri pela primeira vez desde que essa história começou. Estendi a mão em direção ao rosto dele, acariciei seu rosto quente e macio. Sorri mais ainda porque aquilo era verdade, eu o via, sentia o calor de seu rosto e de sua mão que agora estava descendo ao meu peito. Foi então que nos beijamos. Eu cada vez mais confiante de que aquilo era verdade. Seus lábio quentes e carnudos tocando nos meus. Me sentia como se flutuasse sobre o chão e pequenas rosas vermelhas e branco-alaranjadas florissem no meu quarto, e seu cheiro se espalhasse por tudo...

Foi então que senti um aperto no coração. Ele me olhou assustado, perguntou o que houve, mas eu não sabia explicar. Senti outra pontada, a realidade voltou ao normal. Em meu quarto, deitado na cama, sem camisa, chorando por sua morte. Começa a me faltar o ar. As dores eram terríveis.

Então tudo parou. Tudo escureceu. Eu queimava, mas não podia ver fogo algum. Pouco depois, estava numa paz celestial. Ele me olhava sorrindo. Eu o olhava assustado. Ele veio ao meu encontro. Me abraçou calorosamente. Não pude conter as lágrimas. Desta vez de felicidade. Ao seu lado, alguém irreconhecível, sob vestes brancas, uma luz mui clara ofuscava minha visão, mas ele não me importava. Nada me importava mais a não ser estar perto dele novamente. Poder senti-lo. Poder tocá-lo.

Não é bom estar aqui? Me perguntou. Respondi que não importasse o lugar, e sim a companhia.

Infelizmente no céu não podemos ter contado físico...

Mas pouco importava. As regras foram feitas pra serem quebradas. Uma vez que estar com ele já era de tamanho único e adoravelmente sublime.

E por mais que eu o amasse, por mais que eu o adorasse, nunca parei de sonhar com alguma coisa melhor. E aqui estou. Ao lado do meu melhor. Uma vez que perde-se uma parte do seu eu, você se perde no mundo. Você não sabe pra onde seguir. Você não sabe como agir. Você morre. Esperando a outra parte de você morrer.

Foi isso que aconteceu. Deixei de acreditar em mim. E como conseqüência, fui punido em perder uma coisa muito importante. Fui perder a mim. Me perdi na escuridão. Metade de mim morreu. E a outra se perdeu. Uma metade esperou a outra que se negava em morrer também. Mas no fim, ambas se uniram em poder maior. Ambas se uniram na única verdade que move o mundo. A verdade que não cabe a eu contar. E sim, a tu de descobrir.

Afonso Herrera
Enviado por Afonso Herrera em 15/01/2010
Código do texto: T2030197
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