O Homem-sujo
Deus! Como era pesada! Ele engoliu em seco olhando no pequeno espelho do para-sol. Olhando para si mesmo. Alguma parte dele queria ver um homem certo, firme e decidido. Mas a vida decepciona. O que ele viu foi um menino assustado e isso o assustou mais ainda. Não assustado apenas. Ele estava apavorado pra caralho. Sem mais nem menos: apavorado pra caralho. Quem sabe mais, mas com certeza não menos do que isso. Mas que porra ele estava fazendo ali pra começo de conversa.
– O passado está morto – a psicóloga havia lhe dito.
Ele tentara não responder – não, responder era um eufemismo, no mínimo, um eufemismo por que ele iria berrar, rugir, urrar – que o passado não era a única coisa morta naquele retrato da triste – de novo um eufemismo o que ele teria dito seria fudida – existência humana. Havia muito mais coisas – pessoas, pessoinhas, crianças – mortas naquele retrato na existência humana do que o passado.
– O passado é para ser esquecido.
Ele quase riu por dentro. Primeiro é aprender com os erros do passado agora era uma questão de esquecer o passado?! Ele estava pagando por aquela merda! Uma puta titânica pilha de merda como diria o pai.
Mas por fora ele não disse nada. Não riu, não berrou e muito menos falou palavrões sobre a fudida existência humana. O plano era ficar ali, no silêncio. talvez o que ele não dizia lhe viesse a mente no momento derradeiro, no momentum em que ele faria o que era devido de fazer. Talvez aquilo o ajudasse. Ou talvez o matasse antes dele terminar. Talvez o corroesse. A idéia de areia áspera entre as juntas de uma dobradiça de metal lhe veio a mente por algum motivo. Mas não importava. Ele já não tinha dobradiças onde jogar areia. Alguém as havia arrancado ao invadir a varanda onde eles dormiam naquela noite quente de verão.
Veio-lhe de novo a mente o quanto aquilo era pesado. Uma porra de um trambolho monstruoso. Teria dito o pai. Adorava misturar palavras difíceis com palavrões comuns. O seu favorito era: “nada melhor para curar uma paixão platônica do que uma transa hercúlea”. Ele sempre se rachava de rir com aquela.
Cale a boca! Ele disse a si mesmo mandando que se concentrasse. Papai está morto. O grande-pequeno-Pedro está morto. Sabrina, o eterno bebe de cachinhos castanhos, está morta. Clarice estava morta. Mortos e enterrados em caixões de madeira negra com tantas camadas de verniz quanto fora possível. E do lado de fora do cemitério pessoas haviam levantado velas. Velas para eles. Ninguém havia sequer conhecido nenhum deles. Nenhuma daquelas pessoas conhecia o Pequeno-Enorme-Pedro. Por que ligariam para os caixões de madeira grossa que haviam ficado fechados durante todo o maldito processo de...
– Merda – ele resmungou limpando os olhos. Olhou para o espelho do quebra-sol e o que viu o assustou. O fez sentir pequeno e insignificante. O menino assustado de antes era um menino assustado e chorando.
Olhou para o colo, para A Ferramenta. E, Deus, como era pesada. Não era neles que ele deveria pensar. Não desse jeito. Deveria pensar naquele... No homem, no homem-sujo. O homem-sujo. O homem que entrara na varanda no meio da noite com alguma coisa no sangue, alguma coisa nas veias pulsando por si mesma. Alguma coisa viva que o dizia o que fazer. O mal, a coisa ruim que ardia nas veias dele agora. Mas ele era mais esperto que o homem-sujo com suas jeans cheias de lama seca e botas duras de solados macios (Por que suas botas são tão macias vovó? Cachinhos castanhos deve ter perguntado. Para me esgueirar melhor querida. Não quer perguntar dos meus dentes? Da minha boca? Da minha faca? Mas isso estava errado. Ele tinha misturado duas historias de ninar no mesmo pesadelo?).
Ele era mais esperto que o homem-sujo por que usaria a coisa ruim que ele contaminara nas suas veias. Ele teria o que o policial Vilas não lhe dera. Ele teria aquilo mesmo que ele próprio tivesse que invadir a varanda de alguém com as calças sujas de lama seca.
Então A Ferramenta pareceu mais leve. A Ferramenta Derradeira pareceu leve no seu colo. Pareceu levíssima nas suas mãos. Olhou no relógio no pulso o velho e surrado Swatch que Clarice havia comprado nos anos noventa. Não muito antes de eles começarem a falar sobre filhos; sobre ter um Pequeno-Enorme-Pedro. Aquela lembrança doce daquele presente barato, porém carinhoso lhe entregou uma percepção amarga: estava quase na hora. Estava quase na hora do homem-sujo. O carro pareceu ficar menor ao seu redor. Ele pensou em sair para pegar um ar fresco.
– Não – ele disse. Não via por que se dar ao trabalho. Baixou a janela e pôs a o rosto para fora por uns instantes. Uma brisa fresca. Justo o que ele queria. O que ele precisava. Já havia ventando daquele jeito. Mas da última vez havia o cheiro de maresia.
Eles tinham ido para a casa de verão. As paredes eram de madeira branca e havia uma goteira na varanda que dava para o mar. O mar em si não era maravilhoso para as crianças, pois a arrebentação era perto da costa e eles nunca entravam no mar muito fundo e jamais sem Clarice ou ele por perto. Mas as ondas eram uma música maravilhosa que tocava sempre e formava a continua e simplista trilha sonora para suas mais doces memórias. El se lembrava de quanto mostrou a casa a ela algum tempo antes do casamento e lhe prometeu que estaria mobilhada para a lua de mel. Fora ali que ele a jovem esposa haviam passado a lua de mel regada a amor, vinho tinto e... Mais amor. Fora na rua ampla e raramente movimentada na frente daquela casa que o Pequeno-Grande-Pedro aprendera a andar de bicicleta. Fora num dia bonito no qual o terrível mar agitado estava estranhamente calmo que o Pequeno-Grande-Pedro havia ajudado-o a ensinar Sabrina, o eterno bebe de cachinhos castanhos, a nadar. Ele se lembrara das crianças crescendo naquela casa todos os verões. De um empurrando o outro no balanço de pneu da torta árvore do quintal enquanto ele e a esposa tentavam o terceiro tanto pelo amor quanto pelo filho. Fora ali, naquela casa sob aquele mesmo céu que ele e Clarice haviam concebido os dois e começando a sua família fora ali que o homem-sujo, com sua camisa torta e rasgada, a pele vermelha de sol descascando e coberta de sardas e o pescoço eternamente esticado tortamente para a esquerda lembrando a árvore que caíra sobre o carro deles durante uma tempestade, acabou com ela. E tudo o que ele precisara fazer era forçar o trinco da porta de tela da varanda da frente.
Sua família estava morta. O homem-sujo a havia destruído.
(Para me esgueirar melhor querida. Não quer perguntar dos meus dentes?)
Ele apertou os olhos forçando outra lagrima a cair. Não eram mais as lagrimas choradas, eram uma lagrima chorada. Ele chorara tanto por causa do homem-sujo que as lagrimas não tinham mais o mesmo valor. O homem-sujo lhe tirara tudo! TUDO! Ele nem podia mais chorar pela família por causa do homem-sujo. O universo dele fora devastado totalmente por um único homem. O homem-sujo, não apenas destruiu a sua vida e tudo o que ele via como mundo ele tirara o seu futuro, as suas esperanças.
O que ele poderia fazer dali para frente? O que ele poderia fazer da vida? Que futuro ele teria no mundo?
Nada. Ele não tinha futuro. O passado feliz lhe doía. O presente doloroso era um buraco no seu coração e o futuro inexistente o sugava para baixo como um oceano profundo.
Como o oceano além da arrebentação daquela praia onde a areia era tão branca, tão limpa – exceto é claro por um dia bem de manhazinha do qual ele acordara e viu da janela fechada do segundo andar uma trilha de sangue vermelho. Como o oceano profundo, profundo, profundo... Nada sob seus pés, nada acima dele além da orla clara, distante e sem esperança do sol. Ele estava perdido la no meio, sozinho e sem esperanças e cada vez mais o homem-sujo o puxava mais e mais para baixo.
– CHEGA! – ele quase grita para si. O promotor pode ter convencido o júri com esse papo furado de erro nos testes, mas DNA é definitivo. O homem-sujo se chamava João Romano e em... Ele olhou no relógio... Seis minutos e meio ele iria sair daquele tribunal. Em seis minutos e meio ele poderia finalmente levar a uso A Ferramenta Derradeira. E a justiça seria feita.
Seis balas. Cinco para ele. Uma para mim. Por que o homem-sujo iria sujá-lo até depois que A Ferramenta tivesse posto seus pulmões a caminho de apodrecerem.
Então a Ferramenta não pareceu pesada demais, nem leve demais. Ele apreciou o seu peso, apreciou o peso e a sua carga maravilhosamente imparcial.
– Uma Magnum 357 com balas hollow point mata qualquer um, amigo – respondera o homem da loja depois dele ter perguntado se um veado morreria com um tiro no peito.
Então algo se moveu. E ele soube antes de olhar que eram as portas do tribunal. O homem-sujo saíra do tribunal – impune. Bem vindo ao Brasil! – e estava na hora dele. Estava na hora do homem-sujo. Estava na hora deles.
Ele abriu a porta e ela pareceu se abrir para ele, convidá-lo a sair do carro. A fazer o que ele faria. Diante dele as escadas subiam altas em degraus brancos e começando a descer-las estava o homem-sujo. Acomodado no seu terno emprestado, limpo e cheiroso. Mas não por muito tempo, homens como ele se sujam. E agora estava na hora daquele pai fazer a sujeira.
Seus passos eram firmes, sua cabeça baixa. Ninguém via o olhar que ele dava ao homem-sujo enquanto eles andavam um para o outro. O homem que um menino chamado Pedro certa vez chamara de Papai e uma mulher chamada Clarice chamou que Querido ou Marcelo andava agora para o homem que pôs fim a sua vida com a vida do homem-sujo na ponta dos dedos. Tudo o que ele precisava fazer era chegar perto, mirar e apertar um gatilhozinho. Com um estrondo ele iria derramar a morte no peito do homem sujo e a justiça estaria feita. Com um estrondo ele poria um fim aquela loucura, ao som da porta de tela rangendo pela manha enquanto o vento a empurra, abrindo e fechando, abrindo e fechando... Ele poria um fim aos rostos que via no meio das noites insones, primeiro os rostos tranqüilos, depois os rostos de olhos vidrados salpicados de vermelho – tão diferentes apesar de serem os olhos dos mortos.
Mais perto.
Um gatilho e ele iria acabar com a vida que acabou com a vida dele. E somente ele sabia o quanto saber daquilo era bom.
Quase na mira.
A mão que ele levava no bolso enquanto abria caminho inconscientemente por entre os jornalistas escorregou para fora do bolso e A Ferramenta escorregou junto e foi tão... Fácil...
Perto o bastante.
Ele engatilhou, engatilhou ate o fim e aquela sensação metálica fora como doce na sua boca.
Agora!
Ele mirou e viu no rosto o homem-sujo um estranho momento de reconhecimento. Por um instante o homem-sujo não viu a arma! Ele mirou. Alinhou os dois pequenos pininhos de metal brilhante com o peito do homem sujo onde alguma coisa ainda batia um coração repulsivo, semi-apodrecido e pequeno coberto por teias de aranha. Então ele não apertou o gatilho, o sentiu ceder sob seu dedo rigo.
E o som tomou o mundo. O terrível estrondo da Ferramenta em ação. Não houve explosão de sangue. Não pode ver a bala, não foi como no cinema. Foi mais rápido, mais sujo. Como o homem do qual ele estava dando cabo. O peito dele simplesmente se abriu. Como uma flor vermelha.
E de novo.
E de novo.
Ele olhou para o homem sujo. Duas crateras se abriram no peito do homem-sujo, agora uma vermelha massa esburacada e úmida. Mas Marcelo que fora papai não ficou feliz. O peso do seu poder havia lhe tomado. Ele era o senhor do destino. A vida e a morte! Com um único dedo!
De novo um trovão soou da ponta do longo dedo metálico daquele homem que um dia fora feliz e agora comandava raios e morte com um único dedo.
E de novo.
E de novo.
E um clique surdo e metálico. A sua própria voz lhe veio. Seis balas. Cinco para ele. Uma para mim. Mas não fora assim. A sua frente ele estava sozinho. Todos haviam abandonado aquele pedacinho fresco e límpido da cidade, aquela escada que um dia fora tão bonita. E agora apenas dois homens estavam de pé. O condenado e o carrasco. E apenas um estava vivo. O outro tomara o ultimo suspiro no terceiro tiro e o quarto o arrancara dele. Agora quatro vales profundos brotavam daquele homem morto e deles escorriam rios grossos e negros de sangue. Mas ele não estava feliz. Ele ainda estava no meio do oceano. Ainda estava perdido no mar sem poder nadar, nem se afogar.
Ele ainda estava... Morto por dentro.
Então ele olhou para o verdadeiro morto. Nada nele. Os olhos vazios e vidrados. Ele sentiu o mais doloroso calafrio quando os olhos da própria família lhe vieram à mente. Estavam do mesmo jeito, o mesmo vazio, o mesmo nada. Pareciam olhos de bonecas, perdendo cada vez mais e mais brilho.
Ele olhou para baixo e viu sangue. As hollow points abriram o homem-sujo e o sangue dele estava agora na sua camisa. Ele olhou bestificado para as gotículas e então ele estava sujo. Ele estava sujo e culpado sentindo o peso daquela arma o puxando para baixo naquele mar, tão profundo. O peso da vida que ele tirara o puxava.
Ele ouviu um grito fino e estridente. Olhou para trás. Na base das escadas duas mulheres choravam. A mais velha abraçara a mais nova por trás a segurando e agora a mais nova gritava. O que ela estava gritando? Ele se perguntou desnorteado sentindo tudo ir em todas as direções ao mesmo tempo. O trovão da ferramenta ainda soava para ele e ele não a ouvia. Então ela gritou de novo e ele ouviu e entendeu. Ela gritava “papai”. Então ele viu que não era uma mulher. Uma menina. Uma menina que cresceu rápido demais.
Ele olhou para o homem-sujo – algo na sua mente chamava aquele homem de João – e não viu um assassino. Viu um pai. Viu um homem. Viu um morto. Ele sentiu lagrimas no rosto quando se lembrou das gotas de sangue na camisa e percebeu o que havia feito. Ele era um homem sujo agora. sujo com o sangue de um inocente. Um pai. Aquele homem tinha um apelido para a filha que chorava a beira de escadas onde o sangue do pai começava a coagular em poças. Aquele homem ensinara um filho a andar de bicicleta, a nadar, os empurrara em algum balanço de pneu. Aquele homem era um homem. um simples homem comum.
– Não – ele murmurou. – Não mais. – ele sussurrou com a voz sumindo e as lagrimas escorrendo. – Agora ele é alguém para um caixão de madeira negra envernizada.
Ele olhou para a mulher-menina na base das escadas quando percebeu que ele fizera com ela o que o verdadeiro homem-sujo fizera com ele.
– Meu Deus – ele murmurou tapando a boca com a mão esquerda.
Ele ouviu um grito.
– Parado! – uma voz atrás dele gritou. Ele virou-se. De dentro de um uniforme caqui um homem gritava apontando uma arma para ele. Aquele homem andava lentamente ficando entre ele e as duas mulheres. Ele se lembrou da Ferramenta na mão. Era inútil agora. mas...
Ele olhou para o homem e as lagrimas aumentaram.
– Eu sinto muito... – ele gemeu se virando totalmente para o policial. – Mas não posso fazer sozinho.
Ele ergueu a Ferramenta – estava mais leve agora. sua carga da morte se fora – para o policial.
– Parado! – o policial gritou de novo mirando a arma para seu peito.
– Não posso – sussurrou o homem que um dia fora pai mirando a Ferramenta inofensiva no policial que não sabia que ela era inofensiva.
Não foi como o trovão da ferramenta. Foi um baque surdo e uma pressão no peito. Ele nem sentiu dor. Ergueu mais um pouco a Ferramenta e desta vez viu um clarão vindo dos dedos do policial e sentiu outro soco leve o peito. Ele olhou para baixo e viu com satisfação que não era apenas o vermelho do homem chamado João que sujava a sua camisa.
Ele caiu.
Por uma última vez viu os rostos da família.
Então viu o céu acima dele.
E então nem o azul do oceano profundo ele viu.