O Lago (relato)

Mudei-me aqui, para Prosperidade a cerca de oito anos, talvez nove, eu não sei – ultimamente estou desconectado de qualquer ligação com horas, dias, meses... Enfim, pouco me importa pensar que estou inserido no termo: vivendo numa caverna. De qualquer jeito sair pode significar meu fim breve, quanto aqui dentro de casa, ah, aqui dentro tudo transpira segurança e conforto.

Há uma janela no lado leste de minha residência e dela posso fitar o lago Cachimbo, ultimamente vigia-lo compreendia acordar pela manhã e após o café sentar-me aqui com um livro, jornal ou o que seja e ler enquanto momento ou outro o encarava. Após um rápido almoço que mais consistia num novo café da manhã eu retomava a minha posição, e não pela primeira vez relia o livro, jornal ou que estivesse em mãos. Lembro-me de uma simples revista em quadrinhos que a bons tempos estava enfiada em uma antiga caixa de sapatos minha, estes por sua vez estavam empoeirados e com pequenos furos de traças (se é que roeriam sapatos) ou quem sabe ratos, a casa esta realmente imunda nos últimos dias e não me impressiono se os encontrasse dentro do armário roendo os biscoitos que tento economizar para os dias que ainda se seguirão comigo trancado aqui dentro, de qualquer forma lhes falava de minha revista em quadrinhos certo? Nada de incomum, uma história simples envolvendo o pato Donald e o Zé carioca, é bem pequena. Meu café da manhã encerrou-se por volta das seis e quarenta e cinco (apenas dois biscoitos amanteigados e meio copo de café preto, lembre-se: tenho que economizar) e após o término sentei-me e a li e reli infinitas vezes; meu almoço – alguns biscoitos, um pão e café a mais se iniciou lá pelas onze horas e quarenta e cinco e mais uma vez após terminá-lo deixei a mesa suja com os farelos novos e alguns que lá estavam a dias e voltei para cá. Reli novamente toda a revista até a noite. Aquele foi o ultimo dia em que pude ter algum controle quanto a meus horários, o relógio pifou e não arrisquei sair para ir às compras. A cidade fica longe, a cerca de dois quilômetros e isso é suficiente...

Mas, entretanto talvez o leitor esteja mais interessado em compreender o porquê de todo meu cuidado com o lado de fora certo?

Ora, eles estão lá fora, não sabe?

Não me arrisco ir lá fora jogar fora o lixo ou as migalhas que descansam na mesa, eles estão lá fora, na penumbra e para eles pouco importa se é dia, pois sei que podem criar a noite em volta de si e me arrastar para lá. Para dentro do lago!

Não abro as janelas! Sei que possuem gases especiais (são bem equipados) e estão sempre a minha espera para esguichá-lo em mim caso eu tente, e então estarei sendo forçado a abrir a porta e estender a mão a eles, como damas do século passado com seus longos vestidos e olhares fascinados para com os cavalheiros. Entretanto não sou dama alguma, e não são eles cavalheiros, são os mandados do lago!

Sabia que eu tinha um cão de estimação?

Sim, mas logo ao início da aparição dessas coisas, precisei solta-lo para que não o apanhassem, e consegui. Eles ainda eram irracionais e talvez pouco soubessem de mim e eu também pouco os conhecia e pouco os temia; então simplesmente saltei para o lado de fora e com força e um pouco de desajeito desamarrei a corda que prendia o Lup (esse era o nome dele) e quando enfim estava livre um deles saltou por trás, sem ao menos olha-lo e fugi amedrontado. Lup fugiu em direção oposta latindo e com o rabo entre as pernas (esse fato deu-me comprovação de que eles existem), atravessei o portal de pintura gasta e empurrei a porta em seguida trancado-a. Não houve o tombo contra essa. Eu não o vi e não desejei mais abrir a porta. Além do mais a tranquei por dentro com uma barra paralela atravessando-a e pus mais algumas fechaduras que possuía no meu armazém, onde encontrei a revista do Donald.

Lup foi-se, esperei que ainda reaparecesse arranhando as portas e latindo; não houve mais sinal algum de sua existência, talvez esteja morto, talvez vivo e longe daqui com novos donos, ou tenha se transformado num cão de rua. Irônico não? Ele era um vira lata. Ontem a noite ouvi movimentos fortes nas águas, eu estava deitado a alguns minutos, mas como sempre o sono atrasa e o medo impediu-me de ir até a sala e observar pelo ponto de vigilância. Aliás, esse é um detalhe não tão importante, mas que precisa ser conhecido: há uma janela em meu quarto sim, essa, entretanto eu bloqueei com madeira que consegui do interior do meu sofá e com alguns pregos as prendi nas laterais, por precaução. Se os desgraçados tentarem invadir minha casa (isso deverá ocorrer quando sua paciência se esgotar) irão saltar pela janela da sala, entretanto não poderão invadir meu quarto – pus barras de ferro na porta e alguns trincos a mais também. Talvez me pergunte: e por que não prende madeira a janela da sala?

E lhes direi que oras meu gás de cozinha não demorar a acabar e quando o mesmo ocorrer terei de usar madeira para cozinhar alimentos. E acho necessária uma ligação com o mundo lá fora através dessa única janela com vidraça um pouco manchada, aliás, as últimas chuvas a deixaram em péssimo estado mesmo. Que fique como está, ainda posso fitar boa parte da extensão do lago, do céu e dos raios de sol que transpassam o vidro.

Pergunto-me a mim mesmo como devem ser os... Antes de tudo, o que eles são?

Tenho certeza que visitaram a cidade. Duas noites atrás acordei com o som de gritos, pela histeria e agudez acredito que fossem mulheres. Não sei dizer ao certo; e por trás dos gritos histéricos ouvi murmúrios grossos como ronronar de grandes gatos.

Tem algo no lago, acredito eu, não posso lhes dizer o que nem de onde veio mas não há dúvidas em mim quanto a tese de que há algo no lago. Talvez não acreditem enquanto lêem essas páginas (talvez quando as encontrarem já estejam amareladas e eu... bem, vocês saberão) e pouco importa a mim.

Acredito que o lago seja o portão para o inferno, e que eles sejam a representação grupal do esquelético de capa negra e foice na mão.

Wenderson Mota
Enviado por Wenderson Mota em 05/01/2010
Código do texto: T2012828
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