ENFIM

Olhei para o relógio e dei de ombros. Nada, ninguém seria capaz de impedir-me.

Feliz e confiante, imaginando o sorriso desenhado em meu rosto, cocei as rugas da testa, recostei-me na cadeira e deixei os olhos descansarem sobre a tela verde provida com relógio e povoada de números entendíveis exclusivamente por poucas mentes deste planeta.

Desviei os olhos do marcador de tempo e vi que alguém que geralmente evitava ter, a não ser via e-mail, contatos comigo aproximar-se e após a ladainha típica de perguntas sobre minha saúde e os parentes perguntou como eu estava me sentindo.

Consciente da exígua fração de tempo que tinha a meu dispor, mas sem parecer ansioso, respondi com um curto e seco “muito bem” extensivo a família inteira, eliminando todas as perguntas que sabia que ele havia planejado fazer e alegando estar muito ocupado com detalhes finais de um projeto, encerrei a conversa.

Ele devolveu-me a resposta com a testa franzida e um olhar carrancudo, mas no mesmo instante afastou-se e eu escondi minha face por detrás da tela do computador, voltando a concentrar-me nos ponteiros do relógio que insistiam em percorrer cada polegada da superfície plana com lentidão exagerada, torturando-me, testando meus nervos.

Inesperadamente, ouvi uma voz suave chamar meu nome.

Receoso, retirei, cautelosamente, a cabeça do lugar de onde tentava esconder os pensamentos, olhei o rosto firme, com olhos acinzentados que sorria e incerto se ria para mim ou de minha atitude, sorri de volta e ela, enfadonhamente, repetiu a pergunta de “com vai você?”.

Mantive minha posição e agi de maneira idêntica e em menos de um minuto meus olhos estavam acompanhando suas costas a se afastarem pelo corredor longo e acarpetado.

Antes de apressadamente, enfiar novamente a cabeça em meu “esconderijo”, parecendo ser um avestruz, olhei ao redor para certificar-me que estava livre de novas interrupções, então baixei a cabeça em direção ao computador e colei o nariz na tela de fundo verde, fazendo com que meus olhos girassem no mesmo ritmo que os ponteiros, enquanto em algum lugar, no fundo de minha mente as palavras “Vamos, vamos, vamos”, se sucediam.

De repente, fazendo-me saltar na cadeira, o telefone branco no meu lado direito tocou e imediatamente senti blocos de gelo descerem pelas costas e minhas mãos começarem a transpirar.

Fechei os olhos, tremi e senti o coração tentar abrir caminho através de minha garganta enquanto ao mesmo tempo ouvia as palavras serem substituídas por “Não. Não. Não.”

Incrédulo, engoli em seco e completamente imóvel fiquei a olhar o aparelho telefônico que olhava para mim no ambiente tão silencioso que eu quase podia sentir o silêncio.

Sem querer, meu braço direito avançou, mas em seguida recuou e avançou novamente e eu fiz com que ele recuasse definitivamente.

O telefone, incansável, continuou a tocar, o som amplificado em milhões de vezes com a acústica de meus nervos e senti que cabeças se erguiam e olhares se voltavam para mim.

Levei ambas as mãos á boca em concha, como se quisesse impedir que meus lábios separassem, respirei fundo e vi com o canto dos olhos, que restavam apenas segundos, nada mais do que isto e estaria definitivamente livre.

Precisava resistir a qualquer preço.

As palavras, entremeadas pelo som estridente do telefone, repercutiam como um trovão ao longo de minha mente.

“Não atenda. Não atenda. Não atenda”

Tentando ignorar os pedidos incessantes do telefone, cravei os olhos na tela verde.

“00.00.08”

Desesperado, enquanto minha mente mergulhava em complexos cálculos matemáticos, avaliando minhas chances de escapar, senti minha perna esquerda mover-se sem autorização, chutando a lixeira por debaixo da mesa e xinguei enquanto sentia o suor, salgado, quente e pegajoso escorrer em meus olhos e pelo meu rosto, chegando até a boca.

“00.00.04”

Lutando em agonia com minha mão direita, tenazmente contida pela esquerda, impedindo-a de atender o chamado desesperado do telefone, com o peito arfando, gemi, mexi-me na cadeira, escorreguei e caí de joelhos, com todo o meu peso contra o chão.

Esgotado, ajoelhei-me com um joelho só, ergui os olhos e em completo pânico enxerguei:

“00.00.02”

Embaraçado, sentindo o corpo todo dolorido, arrastei-me de volta á cadeira, sentei-me, cobri o rosto com ambas as mãos, enquanto o telefone esquecido prosseguia loucamente a gritar, e quando baixei mãos, com a luz esverdeada a refletir em meus olhos, quase me cegando, pude ver a informação na tela.

“00.00.00”

Tempo esgotado.

Então, vagarosamente levantei-me da cadeira.

O cansaço e a dor lancinante em minhas têmporas transformaram-se logo em alivio. Comecei a me sacudir, como um cachorro molhado, acomodei melhor o traje de corte italiano que estava vestindo, arrumei a gravata e me coloquei completamente ereto. Então com um leve toque de meu dedo médio da mão direita, desliguei o computador e com passos tranquilos, sem voltar os olhos para o telefone emudecido, cantarolando uma canção que desconhecia saber a letra, acenei com visível prazer para alguns colegas á distância e dirigi-me para a saída do escritório.

Depois de cinco anos de trabalho ininterrupto, enfim eu estava de férias.