Imagem do Google
A senhora naftalina
Mais uma noite de um novo, demorado e chato plantão para cumprir no hospital. São 15 anos assim: ô vida sem graça!
Dizem que a sensibilidade vem ou se vai com o tempo, comigo não foi uma coisa nem outra, entrei fria, sairei fria, sem remorsos, sem histórias para contar, o que conto mesmo são somente os minutos para acabar a praga do turno.
Vida de enfermeira é uma porcaria mesmo!
Nesses 15 anos vi muita coisa no vai-e-vem diário, principalmente quando se trabalha no grande hospital de uma capital, dava para escrever um livro muito fácil, de terror é claro!
Por ser um estabelecimento público me deparo todos os dias com os mais variados tipos de pessoas possíveis, desde trastes imprestáveis que não valem uma moeda furada até bondosas velhinhas, das quais um dia também espero ser, velhinha, eu quero dizer, e malvadinha também!
Todos reclamam que o duro é quando temos que priorizar um paciente ou outro e como tenho grande experiência acaba sobrando para mim esta tarefa de triagem das vítimas e eu adoro! Sinto-me uma deusa! Por quê? Porque posso escolher em muitas situações quem vive ou quem morre. Se isso não é poder não sei o que é então.
Hoje mesmo no final do plantão, eu já louca para chutar toda aquela porcaria e ir embora para casa, me acontece um acidente feio na Rebouças, entre um ônibus e um caminhão. Mandam à maioria das vítimas graves para cá, até encher essa encrenca, e adivinhem para quem sobrou a numeração da ordem do atendimento. Estou feliz por isso! E já que vou ter que esticar o turno, alguém vai pagar caro, ah vai!
A chance surge quando não há mais leitos disponíveis e vem um rapaz com cara de bandido, sem dúvida nenhuma. Por mim passava o saco preto com lacre e mandava cremar, mas o infeliz devia ter uns trinta anos, então mandei dar um jeito lá dentro e liberei sua entrada. Mas logo em seguida vem uma daquelas idosas cheirando a naftalina que gastam a aposentadoria no bingo. Nem pensei, corredor nela! Parecia que eu já a conhecia de algum lugar, mas nem perdi tempo refletindo sobre isso.
Creio que o estado dela era bem grave. Dei uma escapada para perto de sua maca, analisei bem a sua situação e vi a dor escrita em seus olhos. Levei minha boca perto de sua orelha e lhe disse: -- Que morra!
Ah, isso me deu energia para virar mais doze horas direto sem parada. Até um sorrisinho eu dei para a velha, que me olhava agora como se visse um lobisomem na frente.
No fim uma hora depois do plantão eu já estava liberada, disseram que graças ao meu excelente trabalho na recepção e direcionamento das vítimas. Bando de babacas!
Fui então para minha casa, um porre de lugar apertado que não dava nem para os meus cinco gatos. Morava no segundo andar de uma espelunca que iria cair mais dias menos dias.
Dois dias depois após mais um turno empurrado pensei em antes de dormir dar uma varrida na minha varanda, afinal eu ainda estava acesa, sem a mínima vontade de dormir.
Essa minha varanda era um troço mal feito, sem proteção nas beiradas, justamente onde eu varria agora. Mas ali não vinham crianças, essas coisinhas perturbadoras, e meus gatos tinham sete vidas. E um dos meus gatos, o Chaninho, estava ali me rodeando naquele instante e eu já o havia tocado várias vezes, com toda a certeza ele iria ganhar uma bela vassourada no traseiro antes que eu fosse dormir, pois parece que o cansaço começava a aparecer.
Dei um belo bocejo e sem querer acabei pisando na porcaria do rabo do Chaninho, que soltou um miado agudo, creio que devido à dor no rabo e nas costa onde minha vassoura o acertou, pois acabou escapando de minhas mãos por querer.
Acho que de raiva ele me unhou e acabei me assustando dando um passo desequilibrado para trás. O meu malvado gato tentou me presentear com outra unhada, que consegui evitar dando mais um passo para trás, mas num azar danado acabei pisando muito na beirada e vim a cair de costas na viela abaixo, no fim de um beco.
Com toda a certeza poderia ter quebrado o pescoço na queda, mas para minha sorte acabei caindo em uma grande lixeira, onde os sacos pretos amorteceram o tombo. Só que não saí ilesa, bati forte com a parte de trás de minha cabeça numa quina de ferro da lixeira, antes de parar no fundo.
Depois que pousei, visualizei alguns palavrões em minha mente e ainda procurava um bem feio para gritar quando percebi que não conseguia me sentar. Nem me mexer direito eu conseguia, meus braços e pernas ficaram meio que paralisados, pena que a porcaria do meu nariz não tinha entrado no embalo, porque um cheiro horrível de coisas podres invadiu minhas narinas.
Achei que o lugar estava escuro demais, mas foi um pouco depois que entendi que era minha visão que ficou um pouco turva, atrapalhada. Tentei dar um berro e minha voz também falhou, ou pelo menos achei que era isso, podia ser que eu não estivesse ouvindo.
Analisando toda a situação em que me encontrava recordei de casos semelhantes, onde uma pancada na cabeça deixava a pessoa como uma marionete. Mas nos outros era bem mais engraçado do que em mim.
Percebi que a minha audição estava boa quando ouvi o barulho de alguém se aproximando.
Pô! Estava demorando!
Comecei a fazer o máximo de movimentos que meus membros conseguiam. Vislumbrei o vulto de uma pessoa que começou a jogar vários sacos de lixo na lixeira, conseqüentemente alguns sobre mim. Adoraria xingar muito esta pessoa, mas como não podia fazer isso agora, resolvi me esforçar mais um pouco para me mexer ainda mais, fazendo um esforço descomunal que deu certo, pois o vulto parou e me encarou. Que lerdeza, seria uma pessoa cega? Isso seria um lixo de azar!
Deu até vontade rir novamente, devida à expressão se encaixar muito bem na situação, mas fiquei quieta quando a cabeça do vulto começou a se aproximar de mim e ficou assim me observando por um tempo. Mas que tanto me olhava, era só chamar ajuda se fosse necessário para me tirar daquele buraco.
O vulto se aproximou mais ainda, deu para sentir o hálito cheirando a alho e mais um cheiro misturado que não consegui identificar a princípio. Então o vulto falou numa voz ranhenta:
-- Não sou vingativa, mas meu desejo é que você morra!
Agora que o vulto se afastava consegui sentir melhor o outro cheiro, era a porcaria de naftalina! E que droga de coincidência! Sabia que conhecia aquela velha miserável de algum lugar e só podia ser deste lixo de beco, quando colocava a cadeira na varanda para tomar um ar fresco.
A velha jogou mais um saco de lixo que despencou sobre minha cabeça, depois senti outros mais caindo sobre meu corpo e um último que bateu sobre aquele que estava me sufocando, estourando o mesmo. Devia ter a porcaria de um queijo azedo lá dentro que veio parar quase dentro da minha boca. Sorte que não vomitei, teria engasgado e morrido. Bom, ao menos teria sido mais rápido, pois pelo jeito eu não ia sair tão facilmente do meio daquele lixo, provavelmente me tornaria parte dele e seria encontrada um mês depois por alguma máquina no aterro sanitário.
Que se dane!
De repente o cansaço chegou forte e acabei dormindo ou desmaiando, sei lá.
Quando acordei estava num lugar branco.
Que bom, morri! E o pensamento até que me alegrou, já que não tinha sofrido tanto. Mas fiquei confusa, o inferno não era vermelho? Ri por dentro, nunca tinha sido santa, imaginem as caras das beatas de carteirinha se me vissem agora aqui no Céu!
Com o canto do olho observei uma movimentação e olha, não é que vinha então um anjo em minha direção. Mas minha visão melhorara bem e o anjo na verdade era uma enfermeira do plantão diurno, uma mocréia bandida solteirona que nem eu.
Puxa, era tudo branco e não parecia, era o inferno!
-- Como é que você está? Disse ela e continuou: -- Foi por pouco hein! E olha quem vem lá, sua salvadora!
Consegui virar um pouquinho a cabeça na direção da porta e lá vinha a senhora naftalina em pessoa, com um sorriso mais falso que nota de 3 reais no rosto.
-- E advinha, falou a enfermeira, ela se ofereceu para cuidar de você!
Quando ficamos sozinhas a velha cochichou em meu ouvido: -- Eu não sou como você! Quero que viva!
No fim ela era sim igual a mim e até pior, pois fiquei quinze anos vegetando numa cama, com a bunda sendo trocada por ela, que parecia imortal. Acho que ela estava com uns 90 quando eu finalmente bati as botas.
E no fim não é que eu estava certa: é vermelho mesmo!
=============================================
Clique abaixo para ler outros contos:
Um adeus para Elizabeth Stefany
Jonas
Minha primeira impressão
Abraços!