Halo
- Olhe.
- Não...
- Olhe... Vamos.
- Me deixe em paz!
- Olhe. Você não tem como evitar. Olhe. Pare de fugir. Aceite. Abra os olhos e veja.
E eu abri. E seus olhos azuis me fitavam na escuridão, por entre os cabelos negros. Sua voz era hipnótica, impossível de ser ignorada. Diante de mim eu a via, por entre os dedos que cobriam meus olhos esgazeados de pavor e loucura, e meu rosto banhado de suor e lágrimas. Do canto da cela, eu sentia o chão frio como o vento glacial do norte queimando minha pele. As paredes, ao contrário, eram macias, acolchoadas e quentes, que me permitiam passar horas e horas naquele mesmo canto, sem ser incomodado. A escuridão era densa como a água, mas a presença dela afastava o breu do ambiente que envolvia meu corpo e aos poucos meus olhos começavam a ver. E eu vi.
As formas foram aos poucos se delineando. Primeiro os dedos da mão, estendidos para mim, como a ofertar algo. A pele muito branca da palma da mão ali exposta e a luminosidade azulada e fraca fizeram meus olhos acostumarem-se e uma curiosidade latente moveu meus olhos para cima. Acompanhei a luz através do braço igualmente branco até divisar a ponta de um seio nu, semi-encoberto pelos cabelos negros que caiam dos ombros, daquela forma ali em minha frente.
O resto do ser de luz era sombra. A incidência da luz azulada no corpo nu daquela mulher e meu ângulo de visão não me permitiam ver mais nada. O resto era breu. Num átimo, vislumbrei o que poderia ser um sorriso por trás das sombras e dos cabelos compridos, mas os dedos moveram-se num chamado. “Venha” – sussurrava sua voz – “Agora que você enxergou, venha”.
Meu coração batia desesperadamente. Senti minhas mãos, que cobriam meu rosto, serem puxadas para baixo por uma força invisível. Meus olhos, descobertos aos poucos, pararam seu choro mudo e as lágrimas, secaram acalmadas pela luminosidade azul daquele ser.
Fiquei entregue, ali, mãos e braços largados ao lado do corpo, joelhos encolhidos no peito e um olhar suplicante e calmo. O ser, parecendo nunca desistir, estendeu então a outra mão. Pude então ver o seu rosto que se iluminou um pouco mais, saindo de trás dos cabelos compridos e negros. Agachou-se silenciosa apoiando os seios nus nos joelhos e aproximou-se. Olhou-me mais uma vez nos olhos e depois fitou alguns segundos minhas palmas sujas e cheias de cicatrizes. Aproximou suas mãos das minhas e apanhou-as, num gesto de amparo. Ela levantou-se e com esse gesto, puxou-me em sua direção. Deixei-me levar, não por que quisesse ir. Nem sequer sabia o que estava acontecendo ou para onde seria levado. Ou sequer quem seria ela. Fui por que sabia que tinha que sair dali.
Agora em pé, com ela à minha frente, podia ver seu rosto com mais clareza e agora os olhos pareciam mais azuis do que nunca. Suas mãos seguravam as minhas num gesto amoroso e mudo e nossos olhos se falavam eloqüentemente. E ela sorriu de novo.
- Agora é a sua vez – falou calma.
- Como? – falei com voz sumida.
- Você também não quer?
- Quero? O que?
- O halo.
- Halo? – o torpor na voz e na mente ainda eram duas presenças quase físicas.
- Sim. O halo. Essa luz azul. Você gosta dela não?
- Gosto. Ela me acalma.
- Pois bem. Então você pode tê-lo. Basta querer. Você já foi preparado para isso. Concentre-se.
- Mas... como?
- Calma. Concentre-se e você vai conseguir.
E dizendo isso, soltou a mão direita, apoiando-a em seguida em minha fronte. Um calor imenso invadiu meu corpo. Por alguns segundos senti como se tivesse sido atirado a uma fornalha e todo o ar tivesse sido retirado do ambiente. E tudo fosse restabelecido instantaneamente. E de novo eu vi. Só que agora não era ela. Era eu. Meu próprio corpo brilhava uma luz esverdeada, fraca, porém constante.
Ela, maravilhada, batia palmas.
- Verde! Maravilhoso! É a primeira vez que eu vejo um verde! Incrível!
E toda a letargia tinha sido retirada. Todo vigor e toda a vitalidade voltavam em profusão e eu jamais havia me sentido tão bem em toda minha vida como naquele momento. E meu brilho aumentava.
Enquanto eu, ofegante, fitava minhas mãos, de repente, a luz começou a mudar de cor. De verde, para um azul pálido e depois para um branco acinzentado e depois para o cinza. Finalmente ameaçou morrer. Foi quando ela falou de novo.
- Concentre-se e não se assuste. Acalme-se e tudo voltara ao normal. Sua luz é belíssima e deve brilhar para todo o sempre.
- Mas, como essa luz, ela...
- Não fale. Apenas se concentre. Ela é um presente meu para você.
- Presente?
- Sim. Você ainda não se lembra. Mas isso agora não importa. Só quero que você seja feliz.
- Como posso chamá-la?
- Como você quer me chamar?
- Luz.
- Está bem. Então serei Luz para você.
- E esse presente?
- Não se preocupe com isso. Veja. Sua luz fica mais forte a cada momento. E estou cada vez mais feliz de tê-lo escolhido. Agora precisamos sair daqui.
E dizendo isso, sorriu infantil e puxou-me delicadamente pela porta da cela, que se abria para nossa passagem e sem que eu me desse conta como isso tinha acontecido. Segui-a, ainda maravilhado pelo halo azul de seu corpo nu e pelo meu, que agora era verde-esmeralda.
Seus cabelos compridos e negros, que balançavam alegres, acariciando suas costas, tinham escondido o detalhe principal. No pescoço, as marcas perfurantes de caninos, duas, que furavam a pele e a jugular. No pescoço dela. E no meu também.