O menino, o corpo e a casa ensanguentada...
O menino, o corpo e a casa ensangüentada...
O menino andava sozinho pela calçada, tinha nos braços um maço de jornais, vez ou outra encontrava um transeunte e lhe dirigia o pedido:
__Jornal aí moço?
__Jornal aí dona?
Muito raro era achar alguém disposto a comprar, a ceder um espaço de tempo, a olhar ao menos aos olhos, era simplesmente um levantar de mão e a face entortada ao lado, bem a outro lado.
Naquela manhã o estômago roncava pela falta do café, do pedaço de pão, e não havia arrecadado o suficiente que cobrisse o custo do jornal e lhe sobrasse um trocado para aquele pão, sem nenhum acompanhamento, sozinho mesmo.
Cansado sentou-se ao banco de madeira sobrepostas em tiras sobre a base de ferro, depois de colocar os jornais ao lado esticou-se sobre o encosto, gesto de todo menino que mostra que possui virilidade, que ela está presente.
Ao fazer isso com a cabeça para trás viu o outro garoto entre o arbusto que lhe sorriu, estava ali abaixado, fez sinal colocando o dedo sobre os lábios implorando silêncio. Pouco tempo depois estava ali do lado, fazendo perguntas e dizendo outras, queria saber de onde viera e para onde iria o que fazia, se tinha família, se tinha morada, em pouco divididam um pedaço de sonho recheado com goiabada que o garoto trazia na mão...
__Eu também tenho, mas quase nunca eu vou, fico aqui mesmo, aqui perto tem uma casa velha que ninguém mora e é só levar um pouco de comida e dá para dormir lá sossegado...
__Mas...
__Nada de, mas meu amigo, ninguém vai lá, ela é abandonada, quer conhecer? Quem sabe um dia você precisa, vai me dizer que nunca perdeu a lotação para casa e já era tardão e você foi andando, chegou na casa de manhã e ainda levou bronca...
__É já me aconteceu...
Levado pela curiosidade de piá, ou pela atenção lhe ofertada de graça, sem pedir nada, ao contrário foi alimentado e conversava com ele, nem mesmo em casa a mãe tinha tempo de ao menos lhe mandar tomar banho, não mais lhe mostrava as roupas limpas e isto quando as limpava.
Normalmente tinha os olhos voltados para o beco do arraial, ela esperava que seu homem voltasse, mesmo que lhe batesse na cara, que tomasse uma sova dia sim e outro também, ela falava de coisas românticas sobre os cabelos dele, de que ele comportava-se assim porque haviam feito macumba, por que ele era loiro e de olhos azuis, que as vizinhas lhe tinham ciúmes. Derramava lágrimas toda noite esperando que ele saísse da penitenciária e viesse ao seus braços.
Chegaram na casa velha, lá estava ela, a porta de trás quase caindo, era só empurrar e a única dobradiça a segurava, lá dentro o pó disputava espaço com o entulho de madeira e lixo, o lixo sempre presente como o povo o é considerado pelos que a ele representam nos altos escalões do governo. Ou daqueles funcionários que acham que o povo lhes vai pedir ajuda e para isso precisam ser humilhados, devem entrar nas suas salas rastejando.
__Venha. O meu canto é por aqui...
O menino seguiu o outro, num quarto lá em cima no segundo andar havia um resto de colchão e dois cobertores amontoados, dava até um sinal de limpeza, ao menos o lixo estava amontoado a um canto. Ele chegou a sorrir com a idéia de dia desses vir se esconder ali e dormir muito sem a mãe a lhe tirar da cama aos berros, sem ter de dormir na mesma cama de solteiro com mais três irmãos.
Ouviram barulho e quando voltaram-se um homem estava ao escuro.
__Coisa ruim é você?
__Sou sim... Trouxe um amigo...
__Amigo é?
__É e ele é bem gente boa...
__Uhm... Sei... Se ele for bonzinho comigo ele pode ficar.
__Ele não veio pra ficar ele veio para ver onde eu morava só isso.
__Não interessa. Vai ser bonzinho comigo ou não.
O impasse estava criado, quem seria aquele homem, o que seria ser bonzinho com ele? O menino estava perdido nesta nova situação que ele desconhecia.
Tudo estava escuro e o homem deu dois passos para dentro do quarto mal iluminado, não lhe aparecia nada, só o vulto e sua altura assustadora. Apanhou o garoto pelo colarinho da camiseta e o puxou fazendo com que o seguisse... No outro quarto empurrou-o parar o canto.
__Tira aí esta roupa.
__Faz isso não com ele...
__É ele, você já estou enjoado.
__Não... Não pode... Você disse que me amava...
A gargalhada foi ouvida como um trovão.
O menino assustado começou a tirar a roupa, ouviu o grito de que tinha de tirar toda a roupa, e ele ficou ali n o canto encolhido, tolhido pelo medo. O homem arriou a calça e avançou para ele, quando chegava próximo dele, intumescido, de mãos abertas...
__Eu disse a sua mãe que um dia a traição dela ia ser paga...
__Você?
__Você conhece ele?- perguntou o outro garoto.
__Como conheço, por anos convivi com este fantasma na mesma casa. O fruto da traição daquela vagabunda.
__Não chame minha mãe assim...
E jogou-se contra o homem que de calça arriada perdeu o equilíbrio e foi ao chão, lutaram, a agilidade do menino contra a força do homem, o outro veio lhe ajudar carregando uma faca na mão. Golpes e perfurações, a mão grande que esganava o pequeno pescoço aos poucos foi afrouxando pela perda de sangue e deixou-se cair ao lado com os olhos vidrados.
__Não e agora quem vai me proteger?
__Como?
__Eu... Eu vivia com ele há muito tempo, ele cuidava de mim... E em troca eu só fazia nele uns carinhos, mas à noite ele me deixava dormir do seu lado com a cabeça no seu peito e muitas vezes ele cantou para que eu conseguisse dormir, roubou até uma farmácia por que eu estava com febre. E agora?!
__Venha comigo, vamos sair daqui...
__Vai você, vai... Eu fico por aqui...
Dias depois o cheiro insuportável chamou a atenção e a polícia veio ver, encontraram um homem esfaqueado em posição grotesca, uma faca fincada ao chão toda suja de sangue e um menino dormindo sobre seu peito com os olhos molhados de lágrimas, perdidos ao além cantava neste momento:
“Dorme nenê que o bicho vem pegar, mamãe foi à roça e papai vai acordar...”