Fantasmas e Assombrações
Seu Hercílio saiu para dar sua caminhada matinal, saindo do seu casarão antigo na Rua dos Ilhéus, atravessando a rua e entrando na Praça XV de Novembro – ou da Figueira, chame como quiser – passando pelas ruínas do velho trapiche, na Praça da Alfândega, foi até a lotérica onde costumava ir ao menos uma vez por semana, falou com os velhos conhecidos, fez gracejos com as meninas, entrou no Mercado Público, a fim de comprar uns bifes, uns filés de merluza, um peixe marinho, muito apreciado, algumas verduras. Surpreendeu-se ao ouvir uma moça falar que vira seu amigo por ali, pouco antes dele vir. Gabriel estaria passeando pelo mercado? Só ia para acompanhar Hercílio, não lembrava-se de ouví-lo dizer que ia lá sozinho, ouvia-o até resmungar, muitas vezes, como se sentisse alguma claustrofobia que tinha a ver com o cheiro de incensos e charutos vagabundos vendidos na loja de artigos religiosos, ou de peixe.
Era verdade, Gabriel Youth andava meio estranho, nos últimos dias, desde que vira a notícia daqueles quatro assassinatos, quatro meninas bem novas, a polícia trabalhava com a idéia de um assassino serial, Gabriel só via uma possibilidade: sanguessugas, da família McCulling, estavam seduzindo, se aproveitando das meninas, depois se banqueteando com o sangue delas. A polícia já tinha comprovação que, em pelo menos dois casos, as meninas poderiam ter consentido com o ato antes de serem mortas, seu Hercílio lembrava que Gabriel já havia lhe dito isso.
Seu Hercílio lembrava-se também que à noite Gabriel costumava estar fora, perambulando pela cidade à noite, talvez buscando um dependente de droga pesada nos lugares mais barra pesada. Desde que voltara a freqüentar seu apartamento, saía bem cedo, de manhã pouco antes do sol nascer, e a altas horas da noite, ficava na sala, sentado, pensando longe. Algumas vezes, o velho major acordava e ouvia acaloradas discussões murmuradas, embora só ouvisse a voz do parasita.
Saiu do Mercado Público, refez o caminho todo por onde viera, até a Rua dos Ilhéus e a sua casa. Abrindo a porta, sentiu vir da cozinha um cheiro de macarrão, e vegetais sendo refogados, com bacon. Das duas pessoas que ali moravam atualmente, só ele cozinhava, e comia, e nunca vira, nesses anos todos, Gabriel fazer qualquer coisa na cozinha, nem mesmo entrar naquele aposento, desde a primeira vez em que se viram. Definitivamente, o jovem capitão andava muito estranho! Atravessando a soleira da porta, não se surpreendeu ao ver o rapaz tirando o macarrão do fogo e passando no escorredor, em cima da pia da cozinha... não se surpreendeu muito! Só um pouco!
“O que está fazendo...?”
“Estou testando, pra ver se ainda sei cozinhar” disse Gabriel, sem tirar os olhos dos legumes e bacon refogados na frigideira preta, não do teflon, e sim da gordura de frituras anteriores. “Tive que aprender a cozinhar, em Hong Kong, quando adotei minha filha. Mas sei fazer só comida chinesa...” disse, num tom de escusa. Seu Hercílio sorriu e disse que tudo bem. Sentou-se à mesa da cozinha e deu uma lida, meio por cima, no Diário Catarinense, jornal que assinava há vários anos. Não se concentrava na leitura, pensava numa forma de abordar as estranhezas do amigo, que aparentemente se antecipara, quando voltou a falar:
“Hoje pela manhã reencontrei alguém...”
Seu Hercílio levantou os olhos do jornal e olhou para Gabriel, atento. “Tu estás falando de quem?” indagou, esperando que o amigo respondesse, falando dos tais sanguessugas de quem falara. Há alguns dias, contou toda história sobre sua filha adotiva Ling Ly, de como vira-a ser massacrada pelos irmãos McCulling, de como matara um deles, num acesso de ódio extremo. Desde que conhecera o rapaz, não o vira demonstrar tanto suas emoções quanto no dia em que relembrara todos aqueles acontecimentos. Mas, para sua surpresa, Gabriel falou:
“Tô falando da mulher que foi minha maior paixão... talvez a única que tive até hoje! Ninna Stepford... ela veio me encontrar, ali na praça da figueira!”
“Ninna? Mas tu não conheceste ela antes da I Guerra Mundial? Tem certeza...?”
Gabriel levantou os olhos, fitando o amigo com um sorriso irônico. “Eu sei, tenho revisto muita gente nesses últimos dias... na última semana conversei quase todos os dias com minha filha, e pelo menos duas vezes vi o mestre Ching Hong, na sala. Ninna está mesmo aqui em Floripa, veio ao meu encontro. Não é um fantasma como os outros, é só uma assombração!” “Assombração?”, repetiu seu Hercílio, sem entender. Gabriel colocou a sua frente um prato fumegando, com o macarrão yakissoba coberto com brócolis, couve-flor, cebola, pimentão e o bacon frito.
“É”, confirmou Gabriel. “Ninna é a assombração dum passado que nunca foi, mas que poderia ter sido. Eu a amei muito, fui perdidamente apaixonado por ela, e acreditei que meus sentimentos eram correspondidos. Hoje descobri que, além de não serem, só alimentaram uma succubus mutante. Tu sabes succubus?”
Seu Hercílio deu um riso meio irônico: “Succubus? Demônios sexuais? Não sabia que existiam...”
“VAMPIROS sexuais femininos”, corrigiu Gabriel. “É mais fácil acreditar em parasitas como eu, ou sanguessugas?” continuou com um sorriso irônico. Seu Hercílio deu uma risada: “Na verdade, pra mim ainda é incrível que tu existas, arcanjo!”
Deu umas garfadas no yakissoba com legumes e bacon, sorriu para o amigo e levantou o polegar, em sinal positivo, com um largo sorriso, aprovou os dotes culinários de Gabriel, e também a culinária oriental, que pouco conhecia. “Quem diria que um vampiro saberia cozinhar tão bem!” disse, gracejando.
“Não te acostuma!” disse Gabriel, com um riso curto. Seu Hercílio voltou ao assunto: “Por que tua Ninna estaria aqui em Florianópolis? Já te perguntaste pelo motivo?”
“Não me perguntei não” respondeu ele. “Não tô preocupado se ela veio por minha causa, ou não, se tem alguma intenção, ou se está por aqui por algum acaso, se está sugando o amor de algum trouxa, ou trouxas, do local... por enquanto! No momento, tenho coisa mais importante em que pensar.”
O sol começava a pôr-se na Lagoa da Conceição. Evangelina não esperava que fosse tão difícil encontrar um endereço, ninguém lhe disse o quanto aquela lagoa era grande. Nos mapas a ilha de Santa Catarina, onde fica a capital do estado, Florianópolis, parecia tão pequena... Edmonton parecia realmente conhecer a área, mas mesmo com seu conhecimento das ruas da praia de água doce na “ilha da magia”, não conseguiu ajudar a encontrar a casa onde provavelmente iriam encontrar Braddock e seus comparsas.
Na verdade, por aqueles dias Evangelina não estava mais com tanta pressa para encontrar a galera da Noite Preta. Cada dia que passava, conhecendo as praias e ruas do Centro histórico ao lado de Ed lhe parecia mais interessante, precisava aproveitar cada momento com o belo rapaz de pele clara, com adorável sotaque britânico, um sorriso belo que a fazia pensar num anjo, ainda mais com seus cabelos claros! Evangelina estava cada vez mais encantada pelo rapaz. Ele parecia ser cavalheiro, como havia mesmo no Brasil, em tempos mais antigos, talvez mais ingênuos... mas não podia ser daquela época, aparentava ter pouco mais de 20 anos, talvez 23. Ed a olhava como se tivesse despertado há pouco tempo, como se não houvesse mulher mais linda, mais encantadora. Na verdade, ele a olhava como se fosse a única mulher no mundo, e isso lhe agradava demais. Qualquer bobagem que ele dizia a fazia rir, mesmo que o gracejo não fosse tão bom, ele declamava poesias antigas, ou improvisava alguma ode ao belo pôr-do-sol que observavam agora, lado a lado, ante a orla da lagoa. Sua pele e seus olhos pareciam brilhar de uma forma mística, refletindo os últimos raios do astro que parecia se esconder por sob as águas. Ela encontrava-se completamente hipnotizada com os olhos fitos em Edmonton, como se apenas ele existisse, como se só estivessem os dois ali, ninguém mais.
Ed lhe sorriu, pegou em sua mão, segurou-a carinhosamente, seus olhos encontraram-se com os dela, fazendo-a sentir um calor intenso, que subia como uma labareda, suas mãos suavam, seu coração batia aceleradamente, ela perguntava-se se estaria tão vermelha quanto imaginava. Seu riso soou nervoso, seus olhos desviavam-se nervosamente, agora, dos dele, correndo de um lado para o outro. A escuridão da noite, e a luz da lua cheia os cobriam aos dois, agora, os olhos dele pareciam ter adquirido o tom prateado do satélite.
“Evangelina”, começou ele, com aquele sotaque inglês, tão sonoro, musical e adorável, “sinto que... cada momento que passo com você tem sido mágico, sinto uma tristeza muito profunda, toda vez que nos separamos, e uma alegria imensa, toda vez que nos reencontramos.”
A jovem sentiu-se como se fosse às lágrimas, embora não escorresse, realmente, nem uma gota dos seus olhos. Mas sabia que talvez eles estivessem ligeiramente avermelhados. Estava, com toda certeza, visivelmente emocionada com as palavras dele. Deu uma risadinha um tanto encabulada: “Eu não saberia dizer com palavras melhores... mas tenho sentido a mesma coisa, Edmonton... não imaginava... não pensei que fosse recíproco!”
O sorriso dele veio meigo para ela. “E eu temia que você não correspondesse a meus sentimentos... tinha medo que te assustasse, te dizendo como me sentia...”
As duas mãos dela estavam agora entre as dele, seus olhos fixos um no outro, Evangelina sentiu-o a envolvê-la gentilmente em seus braços, o calor do corpo dele, seu suor parecia perfumado, seus lábios aproximavam-se lentamente dos dela. Suas bocas tocaram-se, Evangelina entregou-se inteiramente ao seu beijo, sentia como se flutuasse, como se estivesse muito leve, uma imensa alegria e um enorme desejo começavam a invadi-la. E de repente, nada mais lhe importava, não sabia mais por que viera até ali, não se lembrava mais de dona Luzia, ou da promessa que fizera a Giovanni. Quis permanecer naquele momento, por toda eternidade. Agarrou-se fortemente a Edmonton, de repente, com um medo irracional de que fosse perdê-lo no próximo instante. Sentia os dedos finos dele a brincarem em seus cabelos, suavemente, e não percebia o sorriso estranhamente sarcástico a brincar nos lábios dele...