Conto da floresta
João era um homem forte, com um metro e setenta e seis centímetros de altura, segundo a última medida que fizera, fazia um ano; cabelos escuros, grossos, cacheados e conferiam força àquela sua estrutura óssea mandibular já espessa, e, com seu cabelo, aparentava ser ainda mais; olhos castanhos penetrantes e curiosos; sorriso fácil e agradável; ombros largos e braços fortes. Tinha dois filhos homens. O primeiro chamava-se Pedro e o segundo, Domingos. Eram seu maior tesouro vivo, dizia, pois sua esposa morrera fazia dois anos.
-Amava à minha esposa assim como aos meus filhos, mas quando ela morreu, nenhuma mulher conseguiu substituí-la. –Falava João para a empregada da sua fazenda, onde costumava ir aos finais de semana.
Não era uma grande fazenda, mas tinha atividade e organização suficientes para mantê-la funcionando. Os moradores eram bem tratados, os mais trabalhadores tinham privilégios, tais como o direito de abater peru no natal para consumo próprio, direito de nadar no açude cercado, para uso de João e seus convidados, nos finais de semana, direito de receber carona até a cidade para comprar eletrodomésticos sem precisar pagar o frete, entre outros; o que estimulava os outros a trabalhar para serem recompensados com esses privilégios. Já aqueles privilegiados que diminuíssem o trabalho, eram punidos com a suspensão de tais privilégios. Todos muito matutos e medíocres, embora houvesse uma escolinha lá para torná-los menos ignorantes. Os que ambicionassem uma faculdade eram mandados para a capital, Fortaleza, onde havia duas universidades públicas, a UECE e a UFC. A fazenda ficava em Quixeramobim, no Sertão Central.
Pedro tinha sete anos, era alegre e desbravador das matas que recobriam o quintal da casa onde morava com seu pai e seu irmão, em Fortaleza. Já este tinha quatorze anos de idade e, ao contrário de Pedro, vivia emburrado com o tédio que sentia em ficar em casa com aquela família de duas pessoas. Se pelo menos tivesse uma namorada... Mas o tipo de garota que ele desejava só aceitava sair com homens de carro, pensava ele. E, sendo assim, limitava-se a ficar em casa entediado.
Certo dia, estava João arrancando o mato do quintal de casa, para que não atrapalhasse o desenvolvimento das plantas que ele plantara e cuidara até que se tornassem belas e encantassem os vizinhos admiradores do seu pequeno jardim, quando foi surpreendido por dois olhos pretos e um paletó azul-escuro de um homem branco, alto e calvo. Olharam-se fixamente mudos até que o visitante quebrou o silêncio, falando, na frente do portão:
-João está?
-Sim, sou eu.
-Sou representante do Sr. Raimundo Cambraia Júnior, presidente do grupo Cambraia, responsável pelo investimento em obras de recuperação dos nossos mangues e por construir dois de nossos melhores hotéis, ou seja, nossa cidade tem muito a agradecê-lo.
-Tudo bem, vá direto ao ponto.
-Sim senhor. Meu patrão declara-se pai sangüíneo de Pedro Batista Nogueira e de Domingos Batista Nogueira, seus dois filhos de criação.
João vacilou alguns instantes antes que a tontura causada por aquelas palavras passasse. Depois sentiu o calor do seu corpo fazer suas veias dilatarem e a pulsação do seu pulso acelerar. Trancou a cara e esbravejou:
-Como ousas plantar em mim desconfiança de minha esposa, falecida há dois anos? Não tens caráter? Vá embora cabra! Senão...
-Veja bem, meu senhor, estou apenas cumprindo ordens.
-Pois dize àquele teu patrão que estes meninos que aqui moram são meus filhos! Ele ainda arrisca dizer que possuiu minha esposa? Por que eu acreditaria nisso? Vá embora!
O advogado pôs um envelope na caixa de correio e apressou-se para fugir do alcance de João, que bufava de raiva.
João não tocou naquela caixa de correio nesse dia, mas no dia seguinte deparou-se com um envelope aberto em cima da mesa. Os meninos choravam abraçados no sofá. O dia ainda estava recebendo os primeiros raios de Sol. As olheiras de choro eram evidentes nas crianças. Então ele disse:
-Venham aqui meus filhos. –E abriu os braços.
-Pai, não nos vão tirar do senhor, vão? –Perguntou Pedro enquanto era abraçado pelo pai e pelo irmão.
-Claro que não. Meus filhos, não se preocupem. Agora parem de chorar. Vão se deitar. Não irão à escola hoje. Vou consultar o doutor Fernando. Foi advogado do meu pai. Depois apareço na empresa para trabalhar.
João descobriu que o doutor Fernando morrera fazia meses. Chegou em casa desapontado. Era noite. Uma idéia que ocorrera pela primeira vez naquele dia na cabeça de João insistia, ocupava espaço e expandia-se para um sonho que deveria ser realizado imediatamente. Queria ser transferido para uma filial da empresa, onde trabalhava, em outro estado, que não fosse o Ceará.
O pedido de João foi negado, sob alegação de que a empresa tinha planos para ele ali mesmo no Ceará.
Semanas depois, João ainda esperava a abertura de um processo por parte de Raimundo Cambraia, que custava acontecer. João, até ali, não tivera notícias desse suposto amante de sua falecida esposa. O tempo passava cada vez mais tenso para ele, este parecia agonizar momentos antes de encontrar as correspondências rotineiras na caixa de correio. Tornara-se nervoso, parecia estar sempre alerta, mas distraía-se dentro de casa pensando no que estaria acontecendo lá fora.
Certa noite, enquanto João dormia, sonhou que deparou-se com uma praia. Parecia deserta. O céu estava calmo como aquele imenso mar azul da Normandia. Alguns cormorões pescavam ali perto e pousavam na praia. Tudo parecia bem calmo, quando os pássaros irromperam num vôo inesperado, deixando tudo no mais absoluto silêncio. João olhou em volta, mas não viu nada. Olhou novamente e avistou ao longe, vindo do alto-mar, navios. Eram navios de guerra, da Marinha Estadunidense. Tudo se passava a 6 de junho de 1944. Lembrou-se de como havia sido a receptividade dos invasores do Eixo ao desembarque das tropas dos Aliados. Naquele momento voltou sua atenção para as torres que agora avistava com nitidez. Tratou rapidamente de correr pela praia até sair do alcance daquela terrível batalha que ali se processaria. Mas, conforme corria, mais os navios se aproximavam dele. Foi inevitável ver os primeiros soldados americanos a desembarcar serem massacrados pelas metralhadoras inimigas. Conforme morriam soldados, outros conseguiam alcançar bancos de areia que usavam como abrigo da vista dos inimigos. Em meio àquela mistura de areia e sangue, João sofreu de cegueira durante um longo instante durante o qual esteve deitado na areia, procurando parecer morto. Depois desse tempo decorrido, sua visão voltou. Ele abriu os olhos, com certa dificuldade, pois ainda se readaptava à luminosidade ali presente. Aos poucos pôde distinguir uma figura mórbida abaixada em meio aos corpos feridos na praia. Parecia uma parca negra. Um homem certamente a vestiria. Mas quando a figura voltou-se para João, este não viu nada mais do que uma veste vazia que se movia como que por vida própria. A parca flutuante dirigiu-se a ele, aumentando a velocidade conforme se aproximava. João pôs-se a correr. Mas a parca voava com tal velocidade que João rapidamente foi alcançado por ela. Ele sentiu um choque no coração e despertou.
João acordou bruscamente, com um choque que tomou no coração causado pelo desfribilador com o qual se deparou dentro de uma ambulância. Estava fraco, não teve forças para perguntar ao médico que o atendia o que havia ocorrido, mas pensava já ter deduzido tudo. Enquanto sonhava tivera uma fibrilação no miocárdio. Seus filhos o haviam socorrido.
Alguns dias depois João recebeu alta. Estava pronto para voltar às suas atividades normais. O médico disse que a causa poderia ser a sua preocupação com seus filhos e disse para ele ficar tranqüilo, se quisesse continuar vivo para cuidar deles. O cardiologista recomendou que João fizesse uma terapia com um psicólogo amigo seu que, inclusive, era psiquiatra. Quanto ao sonho, o médico disse que poderia ter significado, como poderia não ter.
João foi ao Dr. Pedro, o referido psicólogo. Sentado em seu sofá-cama, foi paciente de uma cessão de relaxamento. Nas outras vezes nas quais João foi atendido por esse psiquiatra, a mente do paciente foi sendo direcionada no sentido de compreender os próprios sentimentos. Segundo esse médico, como os pensamentos é que causam os sentimentos, então João deveria pesquisar nos seus pensamentos o que estaria causando aquela inquietude durante seus sonhos. João já havia relatado o ocorrido em relação a Raimundo Cambraia, mas o psiquiatra não havia verificado nexo com aquele sonho, que, suspeitava o médico, causara o infarto.
Em casa, poucos momentos antes de tomar um tranqüilizante e ir para a cama, João pensava naquele sonho. Teria significado? Se ele não sabia, quem saberia. Dormiu.
Dias depois João soube pelo noticiário que o médico que o consultava era viciado em maconha e fora pego comprando um pacote da substância perto de onde morava. Outro médico, no noticiário, disse, inclusive, para os pacientes do “médico maconheiro” suspenderem suas receitas.
João dormiu naquela noite sem tranqüilizante. O mar ainda estava calmo. Alguns cormorões ainda atreviam-se a voar ali perto, mas o barulho das armas não permitia que João ouvisse o som daquela paisagem. Lembrou-se da parca e percebeu estar diante dela. Ela estava parada à sua frente. Ele sentiu um frio, um medo de morrer ali, naquela praia. Então ouviu uma voz:
-João, afasta-te dessa parca. Ela só pode ter contato contigo se tu toca-la? Ela não pode te tocar enquanto não fizeres isso.
-De onde vem essa voz? –Perguntou João.
-Não ouças essa voz. –Falou uma voz mais branda e menos vibrante, com um tom de simpatia. –Eu sou um espírito protetor dos sonhos, fui eu que impedi que tivesses um ataque do coração. Estou aqui para protegê-lo dessa guerra.
-Mas que sonho é esse do qual eu tenho que ser protegido?
-A parca mente. -Disse a primeira voz. –Ela quer que toques nela. Jamais o faça. Por mais que ela insista. Também não posso tocá-lo nem protegê-lo, pois tu ainda fazes parte do mundo físico.
-Que sonho é esse? -Perguntou João. -Quero acordar dele.
-Então toques em mim. –Disse a parca. –Assim tu acordarás.
-É verdade? –Perguntou João.
-Sim. -Disse a primeira voz. João fez um movimento indeciso de tocar a parca, mas desistiu tardiamente, pois quando fizera o movimento a parca se aproximara rapidamente, assim, João a tocou. Durante esse ínterim, a primeira voz continuava: - Mas darás poder à parca para que te toques no mundo físico.
Era tarde. João acordou assustado. Lá fora ainda estava escuro e o quarto onde João dormia estava iluminado apenas por um abajur. Mas não estava sozinho, pois seus filhos haviam ouvido um gemido e foram ver como o pai deles estava. A porta estava aberta e seus filhos ainda não tinham invadido o quarto.
-Venham, meus filhos. –Disse João. –Hoje podem dormir comigo.
Os garotos jogaram-se na cama e não demorou muito para dormirem levemente abraçados ao seu pai.
João se levantou. Não conseguia mais dormir. Viu que horas eram. Uma e meia. Ainda ia demorar muito para as seis horas. Então João decidiu sair um pouco. Vestiu uma calça preta, os sapatos marrons, uma bata branca e uma camisa de abotoar azul por cima. Pegou o carro e foi até uma boate. Lá tomou um chope bem gelado. Pensou mais tranqüilo sobre sua vida e naquele sonho. Estaria voltando a ser criança e a ter medo do escuro, pensou. Riu. O vento passava suave por seus cabelos desarrumados ainda, perdera sua vaidade da juventude. Lembrou-se de quando conheceu sua esposa. Apaixonaram-se meses depois. Mas veio a lembrança de Raimundo Cambraia, o que lhe causou um calafrio e estragou aquela lembrança boa. Tentou pensar em outra coisa e lembrou-se do sonho. Tinha que ser apenas um sonho, senão como ele saberia onde estava? Viu que horas eram. Três e quinze. Resolveu voltar para casa, ainda deixaria os garotos na escola.
No final de semana, João foi para a fazenda com seus filhos.
A fazenda tinha dois mil metros quadrados de extensão e tinha como atividade a criação bovina e suína. Havia produção de leite predominante sobre a venda de boi. O leite era comprado por uma fábrica de doces do Ceará, assim como o leite de várias outras fazendas. Os bois e os porcos eram vendidos para fazendas que abatiam os animais para vender a carne. João achava o custo do abatimento dos animais muito alto, era um investimento alto para o qual não estava preparado. A fazenda tinha outros animais, mas para criação, apenas. Os cavalos, de todos, só dois eram de corrida. Muito caros. Havia muitas casas além dos edifícios destinados à criação dos animais. A maior delas era a usada pela família de João. Era muito bonita. Tinha forma retangular, mas dividia-se internamente em partes bem distintas. Um corredor de quartos ficava voltado para o nascente, a cozinha ficava voltada para o poente e um grande salão ficava no meio da casa.
O sábado amanheceu calmo, o Caseiro, apelido de um funcionário da fazenda cuja função era zelar pelo patrimônio da casa e de suas adjacências, já havia aguado as plantas, limpado a sujeira dos pássaros e dado comida a eles. João não esperou seus filhos acordarem, tomou seu café da manhã antes de todos e disse ao Caseiro para preparar dois cavalos para os garotos, contanto que não fossem os de corrida. “Vou dar uma volta pela fazenda com o meu cavalo. Não quero ser acompanhado.” Disse João. Seu cavalo era um dos de corrida. O outro ele usava quando o seu não estivesse disponível. Na prática, os dois eram exclusivamente dele, mas um ficava de reserva.
João montou no cavalo e saiu do estábulo, acenou para um funcionário da fazenda para que fechasse o curral, bateu no cavalo e preparou-se para o galope. O cavalo disparou pelo gramado que se estendia desde o curral, espalhando-se para junto da Casa Grande, como era chamada a casa de João, até o açude a alguns metros e as matas da Caatinga. Uma estrada seguia entre o açude e um matagal. Foi por ali que o cavalo de João seguiu. Este último objetivava cavalgar pela maior parte da fazenda, para ver com seus próprios olhos como ela ia indo e se os relatórios do administrador, Mateus, eram verdadeiros.
Por volta de meio dia, João já voltava para casa para almoçar, quando foi surpreendido por uma mulher logo na passagem daquela estrada antes citada. Parecia mendigar e estagnou no meio da estrada, como se não visse nem ouvisse o cavalo de João. Este puxou os arreios e aproximou-se da mulher ainda montado no cavalo.
-Algum problema, moça? –Perguntou João. –Qual o teu nome?
-Sim. –Disse ela. –Estou perdida. Poderia me dizer onde João mora? Meu nome é Mirla.
Ele mirou a moça de cima a baixo e percebeu que ela era cega. Aproximou-se mais e perguntou:
-De onde tu vens?
A moça deu um leve sorriso contido, depois demonstrou uma expressão de sofrimento e disse:
-Venho de um agrupamento de sem terras, lá do Pará. Estou perdida e uns moradores disseram próximo daqui que João poderia me ajudar.
-Sim. Eu posso. Do que precisas?
O rosto da moça se iluminou por um momento e então ela disse:
-De um lugar para morar, roupas para vestir e uma enxada para trabalhar.
-Tu pretendes morar aqui. Para isso terás que demonstrar ser capaz de gerar lucro para minha fazenda. Vou mandar buscar-te. Fica aqui. Durante o tempo de observação, tu morarás com alguma família disposta a abrigar-te. Até breve. Rá! –E partiu galopando em seu cavalo.
Naquele dia a moça recebeu um tratamento de recuperação da grande viagem que havia feito e descobriram que ela era muito bonita. Bastou dar-lhe o que comer e o que vestir e ela já estava encantadora. Tinha os olhos verdes, seios fartos, uma forma arredondada na cintura, lábios férteis e pele queimada pelo sol, dando-lhe um aspecto de praieira. Falava palavras doces, era educada e misteriosa. João apreciou muito seu jeito quando esteve diante dela naquela noite, na igreja da fazenda. O padre somente visitava aquele recinto de quinze em quinze dias, para rezar a missa. João era responsável por conduzir o ritual sagrado naquele dia. Era sábado, 28 de julho de 2007, as velas oscilavam bastante, sem que o vento tocasse na pele dos que estavam presentes. Os olhos de Mirla cintilavam. Quando João deu início ao ritual, o ar começou a ficar abafado, João sentiu a vista abafada e dificuldade de ler o texto bíblico, para dar início ao ritual. De repente João teve uma tontura e lançou um olhar pálido para Mirla. Ela tinha uma cara de bode e parecia incomodada com o ambiente, como se sentisse um calor insuportável. A imagem da mulher de antes se confundia com a do falno de agora aos olhos de João. Os outros continuavam vendo Mirla como uma bela mulher. Lá fora estavam quatro centauros, os quais só eram vistos por João. Este, espantado, chamou Caseiro e perguntou em seu ouvido:
-O que vês lá fora?
-Vejo... Três homens a cavalo, senhor. Por quê?
João ficou meio confuso e disse, enquanto punha o livro sobre a mesa de mármore na bancada onde o sacerdote rezava suas missas:
-Vá ver o que eles querem, enquanto a Ana faz as orações com os presentes aqui, seria uma desfeita com eles. Eu não estou bem. Tu fechas a igreja para mim, Ana. –Disse João olhando-a em tom imperativo.
-Sim, senhor. –Disse Ana, mulher que fazia um trabalho social de educação daquela gente.
Caseiro foi perguntar aos cavaleiros o motivo de sua presença. João os viu levantarem seus arcos com as flechas em punho e dispararem cada um uma vez em Caseiro. Tudo o que os outros poderiam ter visto seria quatro homens a cavalo atirarem com pistolas equipadas com silenciadores em Caseiro. Mas os outros cantavam as canções da igreja. João correu para o seu carro onde tinha uma pistola, mas antes que abrisse o porta-luvas foi surpreendido por um dos centauros que o puxou pelo braço. O monstro segurou João no ar para que os outros o amarrassem, mas João gritou. Os presentes na igreja correram pelas portas laterais em busca de ajuda. Logo cinco cavaleiros armados apareceram para acudir seu patrão.
-Por onde o levaram? –Perguntou Mateus, o administrador da fazenda.
-Seguiram pela velha estrada, a que passa perto do açude. –Disse uma senhora idosa.
-Digam ao restante dos homens que chegarem para se reunirem a nós. Vamos seguir bem rápido, mas quem se sabe precisaremos de ajuda? Digam a eles que só partam depois de atingirem o número de dez homens. Vamos!
Os cinco cavaleiros partiram em disparada em resgate a João.
Mateus montava o cavalo de João. Achava prudente, pois precisava de velocidade. Um outro homem montava o cavalo de reserva. Era Tiago o nome dele. Sua função era comandar os seguranças da fazenda. Os outros três cavalos não seguiam muito atrás. Não muito distante vinham três motoqueiros da fazenda, faziam parte da segurança e foram chamados por Tiago. Logo alcançaram os dois cavalos corredores. Mateus fez sinal para que avançassem. Os três seguranças sumiram na curva à frente. Os cinco cavaleiros apressaram-se, faziam questão de ajudar no resgate de João. No caminho encontraram as três motos caídas no chão. Os motoqueiros estavam mortos. Os três cavaleiros mais lentos amarraram seus cavalos e seguiram nas motos. Os cinco homens tentavam ficar próximos, pois assim teriam mais chance de enfrentar os inimigos.
A noite estava bem iluminada pelas estrelas. Podiam seguir as recentes pegadas dos seqüestradores, quando notaram uma curva para dentro da mata feita por dois deles. Mateus fez sinal para que os outros perseguissem os outros três e seguiu dentro da mata com Tiago. Mateus acendeu sua lanterna, mas foi recriminado por Tiago:
-Desliga isso! É melhor que eles não nos vejam. Eu enxergo no escuro. Ainda dá para ver o chão com a luz da Lua.
A lua passava de crescente para cheia. Desaceleraram os cavalos, pois já ouviam uma conversa ali perto. Parecia que os dois homens haviam desmontado dos cavalos. Tiago fez sinal para Mateus parar e disse por gestos que avistara os dois homens no meio do mato, pareciam montados ainda. Estavam parados, talvez se escondendo. Desceu do cavalo e disse baixinho para Mateus fazer o mesmo e acompanha-lo. Os dois chegaram a uma clareira onde conversavam dois dos seqüestradores. Um deles segurava João, que parecia desmaiado.
-Parados! –Disse Tiago, apontando um revólver para um deles. Mateus apontava seu fuzil para o outro.
Os dois monstros sacaram suas armas, mas foram mortos com tiros por todo o corpo.
-Volte com João. –Disse Tiago. –Vou esperar os outros homens e partir ao encalço dos bandidos restantes.
-Tudo bem. –Disse Mateus antes de retornar à fazenda.
Quando Mateus chegou à casa, todos os moradores esperavam aflitos, em torno dela, notícias do patrão. Viram quem ele trazia. Vivas foram dadas ao senhor Mateus. Os dois seguranças pessoais de João e o veterinário da fazenda ajudaram a descer o corpo do patrão do cavalo e a levá-lo para a enfermaria da fazenda, a alguns metros da casa. A enfermeira, dona Maria, uma senhora branca até os cabelos, mas não muito idosa, já havia preparado a cama para receber o paciente.
-Deixem-no. Cuidarei dele daqui em diante. –Disse ela enquanto dispensava os homens.
Enquanto isso Tiago retornava com os homens que sobreviveram ao combate. Doze, no total. Seis morreram. Todos os bandidos foram mortos e a polícia fora chamada. Os moradores da fazenda reuniam-se em torno da enfermaria. Os homens da comitiva formada para o resgate ainda estavam em alerta. A lua brilhava forte, os morcegos voavam inquietos, os cães ladravam e o vento soprava frio e lento.
Quando João foi amarrado pelos centauros, ele tentou se libertar contorcendo-se, mas o monstro que o carregava deu-lhe um soco que o fez desmaiar. João deparou-se novamente com a paisagem de seus sonhos. O mar era o mesmo, a areia e o sangue... João viu a parca sentada sobre alguns corpos empilhados. Ela agora estava vestida por uma mulher. Não podia ser, pensava João, mas era. A mulher que vestia aquele traje mórbido era Mirla. João percebeu o perigo que corriam todos enquanto aquela mulher estivesse na fazenda. Ela veio em sua direção com ar sedutor e olhar repleto de crueldade. A areia se manchava de sangue por onde ela passava. Sua pele embranquecera, parecia morta.
-Dá-me teus filhos. –Disse Mirla.
-Jamais! –Replicou João.
-Pois matarei os dois para que não atrapalhem os planos que tenho para ti.
-Não! –Gritou João. –Acordem-me! –Disse ele olhando para o céu. Depois conteve o choro e pulou na direção da mulher. Segurou-a pela garça e investiu-lhe socos na face. Esta não revidou até o quinto golpe, depois deste, empurrou o pobre homem dois metros de distância dali.
-Tu não podes comigo pobre mortal. –Disse Mirla, com uma voz rouca de velha.
-Como posso acordar meu, Deus? Imploro que interceda! –Gritou João.
-Acorda homem e cuida das almas de teus filhos. –Disse a primeira voz que ouvira da primeira vez que tivera aquele sonho.
-Deus? –Perguntou João.
-Não. –Disse a voz. –Agora vai.
João acordou de um pulo. Estava ensopado de suor. A enfermaria estava sem ninguém além dele. Levantou-se nu e correu para fora do estabelecimento. As pessoas reuniam-se chocadas em frente à casa de João. Este correu para lá e perguntou o que acontecera. Ninguém falou nada. Algumas senhoras choravam. João foi tomado por um pavor das palavras que ouvira naquele sonho e correu para o quarto onde dormiam os seus filhos. Ali estavam três corpos inertes e ensangüentados. Os dois filhos de João mortos em suas camas a facadas e o corpo de Mirla, que ainda cheirava pólvora, repleto de tiros.
João jogou-se aos pés de seus filhos e começou a chorar com dificuldade de soltar sua dor, sua garganta arrastava-se com força, dificultando seus soluços.
-Por que perdi meus filhos? –Chorava João. –Eu os amava tanto. –Soluçando, João virou-se para o corpo de Mirla e disse: - Tu vais pagar por isso! Perseguir-te-ei até o inferno, se preciso. Mas terás o fim que desejastes!
Dizendo isso, João pulou no corpo de Mirla e começou a esmurrá-lo. Muitos presenciavam aquela cena, mas ninguém se atrevia a impedi-lo de matar sua dor, embora soubessem que ela seria eterna.
Mateus pôs uma das mãos sobre o ombro de João. Este continuava blasfemando enquanto chorava seu ódio em cima do cadáver da assassina.
-Vamos, patrão, deixe-nos levá-lo até a igreja. Lá o senhor poderá rezar pelas almas dos seus filhos. Este ambiente não faz bem ao senhor.
-Não! Deixe-me ficar a sós com meus filhos.
-Mas patrão...
-Está me contrariando, Mateus?
-Não senhor.
Então João empurrou-o até a porta e trancou-se no quarto. Pegou Pedro nos braços e deitou-o ao lado de Domingos, na mesma cama; apagou a luz e deitou-se na cama outrora ocupada por Pedro. Pouco tempo depois dormiu. O céu estava escuro, o mar quebrava suas ondas com violência e na praia parecia não haver outro homem vivo. João sabia que sonhava e desejava um encontro com Mirla. Desejava vingança ou morte.
A guerra parecia ter passado pela praia, mas desaparecido já há algum tempo. João não se lembrava de onde estava, como fizera da primeira vez que sonhara. Sabia onde e em que época estava. Mas agora estava perdido naquele sonho maldito que resultara na morte de seus filhos. Desejava que fosse tudo um mero sonho, embora, se não fosse, em parte continuaria sendo. Restaram corpos e mais corpos de soldados mortos pela areia. João sentia-se no inferno. Aquele inferno que temia existir. Mas verdadeiramente não sabia nem se Deus existia. Aquela realidade fantástica que para ele transformou-se em tudo que restou não seria aceita facilmente por uma pessoa inexperiente nessa área surreal. Mas ele estava lá. E permaneceu lá para sempre...
H. P. Simões