Olívia de Bordeaux, Cap. I
(Tão Ácidos são os Internautas)
Àquela hora, o vento fresco do fim da tarde sem sol podia estar acariciando os vinhedos ao norte de Libourne, região da França famosa por sua história e seus vinhos. Nessa região o solo é conhecido pela sua concentração incomum de óxido de ferro, o que em muitos casos caracteriza os vinhos Pomerol. Era o que o chato de cavanhaque dizia. Olívia não tinha diante dela agora uma garrafa do Le Mounant, um Bordeaux tinto que tinha degustado no rico apartamento do namorado de Olga, sua amiga, na festa de aniversário dele. Nem saberia dizer se aquela garrafa teria algo a ver com a uva Merlot, que aquele chato de cavanhaque na festa, fazendo questão de se mostrar como um respeitável sommelier, jurava tratar-se da uva mais importante naquela região da França. O que Olívia tinha à sua disposição era um Pizzato Merlot 1999, muito bem brasileiro, para ela de refinado sabor e capaz inclusive de lhe trazer algum auxílio naquilo que escrevia. A taça sobre a mesa ao lado do computador já tinha sido reabastecida por quatro vezes.
Olívia Bastos de Alencar tinha poucos amigos, mas era tanta a sua preferência por vinhos que ficou conhecida como Olívia de Bordeaux entre eles. Porque nos bares ou restaurantes sempre perguntava pelos vinhos Bordeaux. Em muitos casos de preço acima de R$ 50,00. Como os amigos se dispunham a pagar pelo vinho no máximo R$ 20,00 ou 25,00, ela sorria, fingindo-se contrariada. E começavam todos logo com a zombaria. Colocavam-na na berlinda, dizendo que ela era a mais pobrezinha do grupo, ou a mais sofisticada, vindo daí o apelido.
Na verdade Olívia tinha um bom rendimento mensal. Médica pneumologista, seu consultório vivia sempre cheio de pacientes. As consultas eram marcadas sempre com trinta dias, no mínimo, de antecedência. Aos 37 anos, com 14 de formada, já tinha se tornado bastante conhecida, especialmente entre as pessoas mais pobres. Para esses sua capacidade era inquestionável. Olívia reservava as tardes das segundas-feiras para o atendimento aos mais carentes. Era conhecido o carinho com que tratava dos menores, para quem doava os medicamentos que recebia dos representantes. Cobrava um preço simbólico pelas consultas, dispensando aqueles que via que não teriam realmente condição de pagar nada.
Entre os menores carentes, os casos mais comuns no consultório relacionavam-se à asma. Dando-se a asma, em geral, pela oclusão parcial dos brônquios em função da exposição a fatores alergênicos, tais como poeira, mofo, umidades ou infecções respiratórias, muito comuns em precárias habitações nas favelas, muitas delas situadas às margens de canais totalmente assoreados, Olívia não ia muito além dos testes espirométricos para a comprovação do diagnóstico. Realizados no consultório junto com a consulta médica, tendo por base a ausculta ao pulmão, esses testes permitiam uma rápida avaliação clínica do paciente, dando chance a que várias crianças fossem atendidas no mesmo dia. Em caso de extrema necessidade, Olívia tinha livre acesso aos mais perigosos redutos das favelas da redondeza, por ter se tornado bastante conhecida nessas comunidades. Podia entrar em qualquer lugar a qualquer hora do dia ou da noite, já que tinha a permissão dos chefões dos “movimentos” de diferentes facções.
Não sendo menor o seu prestígio junto à classe média. De onde provinha o rendimento mensal que auferia e que lhe permita viver em um apartamento de três quartos na zona sul da cidade, com todo o conforto produzido por uma parafernália de modernos eletrodomésticos. Computador turbinado, banda larga, telão de 42 polegadas, home theater, DVD, TV a cabo, micro-ondas, etc., e ainda por cima um Audi A3 com o qual entrava e saía das favelas, quando necessário, sem um único arranhão.
O namorado, também médico, não freqüentava com assiduidade seu apartamento. A relação ia se tornando a cada dia mais casual. O que Olívia atribuía à especialidade dele – oncologia –, bem como à falta de tempo dela. Alessandro tinha grande prestígio no Instituto Nacional do Câncer, onde era considerado um cirurgião respeitado e extremamente devotado à sua especialidade. Talvez fosse essa a razão de Olívia achá-lo muito frio e materialista, a ponto de não levar muito em conta as questões relativas ao amor. Olívia não parecia se importar. Seus dias – segundas, quartas e sextas – eram sempre cheios de pacientes. E às terças e quintas, o expediente acontecia no hospital público. As noites ou os fins de tarde sem sol, quando não havia um cinema ou um bar para a degustação de um delicioso vinho, eram dedicados à Internet, nova mania dos solteiros, divorciados ou de quem acha que não tem o que fazer. Olívia se enquadrava nesse último grupo, apesar da sua predileção por histórias de amor entre mulheres, que lia e costumava escrever. Como essa agora, Dulcinéia Divina, que fluía, já próximo do fim, sem muitos atropelos, talvez pela interferência da quinta taça do Pizzato Merlot 1999 que ela começava a ingerir.
Em Lisboa, Flora Magalhães Toledano não era um nome que se pudesse dizer muito querido nas altas esferas sociais. Simplesmente porque a sua presença não era constante. O marido, ex-senador da república e agora integrante do corpo diplomático, não ficava muito satisfeito com isso. Temia que fossem considerados “dissidentes”. O que duvidava, contudo, que lhe pudesse trazer algum prejuízo, já que era um dos poucos a privar da intimidade do Primeiro Ministro.
Mas Gustavo Henrique não ousava questionar a mulher. Como chegava sempre muito tarde, não raro devido a reuniões de trabalho ou a convites para acompanhar o Ministro em inúmeros encontros sociais, Gustavo Henrique achava-se sempre na defensiva. O que implicava em uma leve submissão à esposa.
Gustavo Henrique por vezes considerava intrigante o comportamento da mulher. Que lhe poderia parecer explicável se ele tivesse conhecido algumas peculiaridades observadas no crescimento de Flora. Quando menina ainda, Flora ganhara de sua mãe um gato bem jovenzinho, que por achar muito bonito chamava de Meu Lindo. De tanto usar as duas palavras para chamar o gatinho, decidiu uni-las para obter o nome de Melindro, que a fez afeiçoar-se mais ainda ao bichinho.
Um dia, dois anos após ter sido presenteada com o gatinho, Flora mantinha-o no colo enquanto bebia um copo de chocolate na cozinha. Ao perceber que manchara a linda blusa de linho que vestia, jogou violentamente o Melindro contra a parede. Ficou satisfeita com o fato de o gato ter caído sobre um tapete espesso que a empregada deixara na cozinha enquanto limpava a sala. Imaginou que, juntamente com as sete vidas que todo gato tem, isso poderia contribuir para a preservação daquela que ele poderia perder com a queda. E que toda vez que tivesse que jogar um gato contra uma parede, seria recomendável existir no piso, exatamente no ponto em que se daria a queda, um tapete espesso ou um colchão macio. Flora adorava também cortar os rabinhos das lagartixas na varanda para vê-los saltando, por não perderem o movimento durante alguns minutos, o que atribuía ao sangue quente naquela parte do corpo do réptil. Atraía-a também o deslocamento desses animais nas paredes e tetos, graças às forças de Van der Waals, como dizia um tio seu, estabelecidas pelas cerdas existentes em suas patas. Se fosse conhecedor desses detalhes, provavelmente Gustavo Henrique não se surpreenderia ao encontrar por vezes a mulher contemplando um ponto perdido no espaço, aparentemente sem ouvir a pergunta que ele incansavelmente lhe repetia até desistir de obter a resposta.
Depois do segundo aborto, aos 35 anos, Flora desistiu de ter filhos. Foi na época em que se deu a ascensão de Gustavo Henrique, que saía da condição de professor emérito na Faculdade de Coimbra para o mandato de Senador da República. A alteração do nível de vida do casal, como conseqüência de rendimentos financeiros bem mais vantajosos, deu a Flora a possibilidade de se transformar numa verdadeira socialite, com direito a reuniões com outras damas da sociedade, a freqüentar clubes fechados, salões de moda, inúmeras viagens curtas a outros países só para mulheres desacompanhadas, visitas periódicas a museus, chás beneficentes, etc. Flora logo se cansou de algumas dessas atividades, passando a priorizar cursos de curta ou média duração, que iam desde curso de etiquetas a psicologia, passando por escultura em material cerâmico, curso de língua espanhola e de decoração. À noite, sempre que se achava sozinha, o que se repetia com freqüência, e não estava cansada, se conectava à Internet. Em geral buscava os sites que se relacionavam aos cursos que fazia ou aos lugares que tinha visitado mais recentemente. Participava também de alguns sites de relacionamentos e mantinha, unicamente por diversão, bate-papos com pessoas que tinha o cuidado de que não fossem sempre as mesmas. Num desses bate-papos apareceu Helena, uma menina de 17 anos que se destacou pela sua capacidade de expressão, fluência e erudição em Psicologia, além de revelar um raciocínio político apreciável para uma menina da sua idade. Foi Helena quem indicou a Flora o site Anita à Noite.
“Querida Anita,
Tenho o prazer de lhe dizer que venho sempre acessando o
seu site, o que para mim já se tornou quase que uma obrigação
desejável. Nele encontro belas imagens, música, excelentes textos,
informação atualizada, curiosidades, enfim tudo o que se pode
esperar de um site bem estruturado. Vibrei quando você concordou
em apresentar os capítulos da minha Dulcinéia Divina
individualizados, em intervalos de quinze ou vinte dias. Mandei os
quatro primeiros e eles foram publicados. Só que já enviei por duas
vezes o quinto capítulo, como faço-o agora, e ele não foi ainda
publicado. É possível que você nem saiba disso, tal deve ser o
acúmulo de serviços e materiais a serem processados pelos
responsáveis por um site da categoria do seu. Mas, se você me
permite, vou continuar insistindo.
Beijos,
Olívia Bastos”
Após redigir o texto, Olívia sentiu-se desanimada. Sabia que o e-mail não lhe dava garantia de que o quinto capítulo de sua novela pudesse aparecer no site português Anita À Noite. E assim ficar disponível para toda a Europa e o mundo. Tinha sido bom demais até aqui. Muito embora tudo pudesse se tornar melhor ainda, se tivesse o texto alguma qualidade e dessa forma conseguisse direcionar para o site um número maior de pessoas. O que certamente seria do interesse de Anita.
Mas nem ela podia garantir que o capítulo seria publicado e muito menos se o conjunto de sua obra tinha alguma qualidade sob o ponto de vista artístico. O que somente poderia ter condições de ser avaliado a partir da publicação de um livro contendo a novela.
-"Acessou o site?
-Sem problemas. Foi fácil.
-Conseguiu localizar o conto de que lhe falei?
-Consegui sim. Aliás, colocaram umas imagens meio apelativas no início do primeiro capítulo – uma mulher vestida de freira, masturbando-se. Achei meio grosseiro aquilo, para não dizer pouco estimulante.
-E o que achou do texto, Flora?
-Interessante o primeiro capítulo. Bem menos vulgar que a imagem que a ele se refere.
-Também gostei. Apesar da imagem, não há no capítulo nada que se refira a sexo explícito.
-Pra desencanto de muita gente, certamente”.
Flora e Helena tiveram que esperar por vinte dias até que pudessem ter na tela o segundo capítulo de Dulcinéia Divina. Durante esse tempo, e por conta desse link, ou seja, da obra de Olívia de Bordeuax, o bate-papo entre as duas foi ficando mais freqüente, embora não conversassem todas as noites. Na verdade, o bate-papo tornou-se mais intenso a partir do décimo segundo dia, quando acharam que o capítulo poderia ser publicado.
A leitura do segundo capítulo não produziu nas duas reações diferentes das que tiveram ao ler o primeiro. Além da curiosidade em saber como a lourinha Dulcinéia, de 23 anos, noviça no convento e de temperamento às vezes rebelde, iria se adaptar a uma vida de quase total reclusão.
Por essa época era natural que Flora e Helena estivessem mais íntimas. Apesar de terem restringido, de início, o bate-papo à novela de Olívia que estava sendo transmitida pela Internet.
-“Já conversamos há mais de mês e meio, talvez, e nem nos conhecemos.
-Mas acho que faço uma idéia de como você é, Helena.
-Ah, é? E como você acha que sou?
-Estatura mediana, morena de cabelos castanhos, olhos castanhos e não muito magra. Acertei?
-Acho que não, Flora. Sou meio alourada, olhos azuis, 1,76m, magra.
-Nossa! Não dei uma dentro, hein? Taí, gostaria de ver sua foto.
-Vou mandar. Agora, deixe-me ver se acerto: branca, cabelos negros, alta, olhos castanhos, mais pra cheiinha. É isso?
-Pô, mas o que é isso? Você está com uma tele-câmara ou tem bola de cristal? Acertou em cheio. Não precisa nem de foto.
-Ah, precisa sim. Faço questão. Amanhã mando a minha.
-Tá bem. E eu retribuo. Vamos dormir agora. Beijos, Helena.
-Ok. Boa noite, Flora”.