O racista
Gostaria de saber como está o tempo hoje, não faço a mínima idéia. Me jogaram nessa cela minúscula já fazem quinze dias,. Quando me deito nessa cama de cimento sem travesseiro, quando anda acabando com as minhas costas, tenho que me dobrar um pouco, a cela é muito pequena para que eu fique todo esticado, suplício. Correm histórias que nenhum branco sobreviveu mais do que um mês aqui, que foram massacrados por um tal de “Ébano Demolidor”, uma espécie de negro justiceiro que, após terminado o serviço, desfila com o corpo da vítima por todo o presídio, sob aplausos de todos os presos e guardas. Obvio que eu sempre acreditei que tudo isso não passava de boatos, até hoje de manhã, quando recebi meu café da manhã: um pão tão duro que poderia servir de porrete e um café que mais parecia água de esgoto, o carcereiro que trouxe o café me alertou: “é hoje o seu encontro com o “Ébano Demolidor”. Estremeci e, logo após ele ter saído, os outros presos começaram a bater nas grades gritando o nome dele. Deixo claro que desde que fui jogado aqui, ainda não entrei em contato com ninguém, não me deixaram falar com minha mulher e minha filha, nem com o meu advogado, sem esperanças de contato com o mundo exterior, resolvei escrever a minha história nesse pequena pedaço de papel, se alguém vai ler ou recebê-la, não faço a mínima idéia.
Tudo começou em um belo dia de primavera, estava no meu gabinete assinando muitos papéis, sou executivo de uma empresa de eletricidade. Minha secretária avisou que iria almoçar e me chamou para ir junto, aceitei o convite e lhe dei carona, fomos no meu accord novinho, a cor preta ainda brilhava. No restaurante pedimos o simples: feijão, arroz, batata-frita, bife. Enquanto aguardávamos o almoço, uma notícia no jornal, aquele que jornal que passa sempre na hora do almoço nos chamou a atenção: “Um caso insólito foi hoje de manhã registrado na pequena cidade de Ervália, um rapaz de aproximadamente dezoito anos foi linchado pelos moradores. Segundo as testemunhas, ele tinha insultado um negro com palavras pejorativas como “macaco” e “tição”. Os moradores que assistiam a cena se indignaram e resolveram tomar as dores do negro. O jovem não resistiu as ferimentos e morreu a caminho do hospital”.
Minha secretária olhou para mim e disse que não tinha se espantado com aquilo afinal, todo dia acontecia muitas coisas estranhas, nada mais podia assustá-la, tive que concordar.
Nosso almoço chegou, comemos avidamente e eu pedi a conta, pague como um autêntico cavalheiro. Na saída, tirei um cigarro do bolso e comecei a fumar. Reparei muitas pessoas me fitando, reprimindo um sorriso de deboche, demorei a perceber o motivo, só descobri quando minha secretária chamou a atenção:
- Olha ali, tem um negro riscando seu carro.
Foquei na cena e era verdade, tinha um negro com o dobro do meu tamanho riscando a lataria do meu carro recém comprado, ele usado um arame para fazer isso, enquanto arranhava parecia que estava tendo um orgasmo. Não pude suportar aquilo por muitos segundos, joguei o cigarro no chão e fui lá resolver a situação.
- O que você pensa que está fazendo? – Falei fazendo uma cara feia.
Ele me ignorou e continuou riscando o carro, olhei em volta e avistei dois policiais, fui até eles contar o que estava acontecendo, nem me deram bola, seguiram em frente batendo papo, acho que para eles um bom par de peitos numa revista vale mais que seu serviço. Voltei a me aproximar do negro, notei agora que ele estava desenhando na lataria do carro e, para o meu espanto, era o desenho de um pênis, não poderia suportar tamanha humilhação. Arranquei o arame de suas mãos e o joguei no chão. Quando fiz isso, um murmúrio se fez ouvir entre os curiosos, o negro não se intimidou e me deu um empurrão. Partiu pra cima de mim a toda velocidade, mas não contava com minhas habilidades de boxe, adorava praticar nas horas de folga. Acertei um direto de direita e um cruzado de esquerda, ele tombou desacordado.
Não escondi um sorriso de satisfação, não é sempre que se derrota um adversário bem mais forte. Minha secretária tinha olhado abismada para toda aquela cena. Já me preparava para entrar no carro quando ouvi um grito:
- Pega o racista!!
A multidão que tinha acompanhado a briga veio em minha direção, não tinha como eu entrar no carro. Resolvi sair correndo a toda velocidade. Olhei para trás e vi que minha secretária estava sendo jogada de um lado para o outro, parei de correr e fui tentar ajudá-la, tudo em vão, a multidão me agarrou e começaram os pontapés, achei que iria morrer ali, se não fosse um apito eu estaria morto. Eram aqueles mesmos policiais que tinham me ignorado.
Por um momento achei que estava salvo, ledo engano, quando fui agradecer levei um chute no rosto, desmaiei na hora.
Acordei muito tempo depois nessa cela cretina. Gritei pelos meus direitos, que tinha direito a um advogado, nada disso adiantou. Isso tudo na verdade é muito surreal, nada faz sentido, sou o maior injustiçado de todos, queria que pelo menos alguém viesse me contar o que estava acontecendo, acho que é o mínimo que todo ser humano merece.
Ouço a aproximação da minha morte, os presos se agitam, gostaria de olhar para minha mulher e minha filha pela última vez, penso em reagir, será que esse tal de Ébano é muito forte? A grade do corredor se abre, seus passos são fortes, parece pesar uma tonelada. Rezo o pai-nosso, essa ameaça não é desse mundo. Agora eu vejo a sua silhueta, tem chifres, que hilário, o capeta em pessoa veio buscar a minha alma. Ele avisa que eu tenho apenas mais dois minutos de vida, deixo esse meu relato na fresta da parede, não quero terminar ele com a minha morte. Tem delegacias para gays, para mulheres, para negros, mas para me defender não tem.