- O que é um assassinato perfeito?
 
A pergunta do professor Salieri flutuou na pequena sala durante alguns segundos. A resposta parecia evidente, mas o único achado óbvio em um homicídio são os segredos invioláveis que o corpo insepulto guarda no seu silêncio eterno.
 
Salieri era um sujeito longilíneo, queixo proeminente, olhar distante, cabelos ralos, rondava pelos 50 anos e carregava uma aura de cinismo beato que fez Clemente se lembrar do personagem homônimo do filme “Amadeus”, aquele em que Mozart terminava liquidado pela inveja do maestro Salieri.
 
A turma não somava mais que 10 alunos. Não bastava o interesse em participar da série de palestras ministradas pelos mais experientes matadores, era preciso ser selecionado depois de uma sucessão de longos testes e exaustivas entrevistas. O curso não era oficial, realizava-se de forma clandestina, havia um pacto onde os participantes se comprometiam a jamais comentarem absolutamente nada sobre o evento. A pena para a quebra dessa regra explicitava o extermínio do traidor. Queriam integrar a elite e impunham que se comportassem como tal.
 
As explanações nunca se davam no mesmo local e nem na mesma hora. Havia um quadro de horário que se fragmentava por diversos ambientes no interior de um complexo de prédios sombrios no bairro de Sulacap, subúrbio do Rio. O ouvinte que faltasse a qualquer sessão estaria proibido de prosseguir. Não permitiam anotações de qualquer tipo. Celulares vetados. Gravadores, nem pensar. Sem nomes, se tratavam por apelidos. Tudo muito rígido e sigiloso.
 
- Então, me digam. O que é um assassinato perfeito? – Insistiu Salieri diante da hesitação da turma.
 
- É aquele em que o assassino nunca é descoberto – respondeu um dos neófitos.
 
- Falácia, irmão! – Retorquiu o docente.
 
As faces duras e impenetráveis da platéia fascinada amoleceram suavemente quando tocadas pela confusão da dúvida.
 
- O assassinato perfeito é justamente aquele em que o assassino se revela – prosseguiu o professor.
 
Foi inevitável ouvir vibrar grunhidos de surpresa e assombro no minúsculo auditório.
 
- Matar não é um gesto leviano, é uma arte sacra. Um matador é a vingança encarnada no homem. A morte expia a vítima. O assassino é um libertador. Não há vergonha no sangue, não há desonra em puxar o gatilho. Um homicida digno mata e deixa matar, mata e deixa morrer. E quem morre não necessita mais de bens materiais, cabe ao executor o prêmio dos despojos.
 
Um princípio de aplausos soou entre os presentes. Salieri abanou a mão censurando a manifestação. Queria continuar.
 
- Irão nos acusar de insanos, sanguinários, corruptos. Eu lhes digo que somente uma palavra nos define: coragem. Pois é exigido desprendimento para doar voz à bala, para emprestar o dedo ao tiro. Evoca-se a firmeza do caráter para dar as costas a um ferido por saber que todo ferido é um condenado. É necessário cultivar concentração, manter o foco, recolher os pertences do cadáver e transformá-los no único elemento abstrato que torna a vida real, o dinheiro.
 
Outra ameaça de aplausos. Novamente, o sereno professor eleva as mãos e abafa os mais entusiasmados.
 
Clemente ouvia extasiado o discurso que fechava a última reunião do grupo. O melhor ficara para o final. A filosofia do homicida. Salieri era um mago. As últimas resistências da sua moral sucumbiam ao veneno que vazava da boca ácida do palestrante. Um pecado insistente em sua folha servia de entrave à sua ascensão, nunca matou um homem. Pela segunda vez assistia às palestras. Porém, agora se sentia mais forte, mais preparado. Precisava se superar. Almejava ser respeitado. Corruptos como ele eram fichinhas, apêndices da corporação. Só os assassinos eram temidos e reverenciados, a eles ofereciam as melhores oportunidades, espaço na mídia, etc. O resto cumpria o papel de lixo que às vezes usavam como bode expiatório.
 
- Para terminar – continuou Salieri – não se inibam com as câmeras de segurança, com testemunhas à espreita, com denúncias, repreensões, ou punições. Nosso círculo se protege, somos irmãos unidos em uma só tarefa. Não temam apresentar o show. Nossa audiência é de vampiros. A sociedade tem sede e bebe com avidez o sangue que ordenhamos.
 
Finalmente, todos explodiram e ovacionaram o grande mestre pelo encerramento magistral.
 
Clemente pegou o caminho de casa eletrizado, ainda sobrava algum tempo antes de assumir seu turno. Beijou a mulher e a filha com uma euforia rara. Não restava mais nenhum traço do pudor que o impedia de ser aquilo que o convenceram a ser.
 
Bendito Salieri!
 
Chegando ao trabalho, arrumou-se com o capricho que se reserva para as grandes ocasiões. Fitou-se no espelho orgulhoso de sua farda e disposto a fazer crescer sua patente. Ajeitou o boné, espanou a poeira do coturno com um golpe de flanela e encantou-se com o brilho negro da graxa. Ensaiou uma fisionomia de fúria e gargalhou da própria tentativa. Marchou inabalável para a viatura, ligou a sirene e com um sorriso repuxado no canto dos lábios murmurou para si mesmo:
 
- Hora da caça!
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 26/10/2009
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