Assassino de Damas

Lucas limpou as lentes embaçadas dos óculos e em seguida pousou-o sobre o grande livro de capa negra aberto sobre a mesa. Uma forte lamparina estava iluminando as páginas, já que a fraca luz do ambiente não contribuía para a leitura.

Afastando a cadeira com ruído ele caminhou em direção a uma grande sacada e abriu a porta sem a menor delicadeza. Um vento gélido penetrou no ambiente, virando algumas páginas do livro e derrubando algumas outras folhas que estavam espalhadas sobre a mesa no chão.

Os cabelos compridos agitaram-se revoltos enquanto ele puxou a capa negra mais próxima ao corpo, buscando algum conforto. Olheiras profundas instalaram-se em sua face fazia alguns dias e as duas horas de sono diário que Lucas se permitia não contribuíam de maneira alguma para amenizar o efeito horripilante dos círculos escuros abaixo de seus olhos.

Ele suspirou, olhando cansado para a lua cheia que emanava aquela pálida luz amarelada sobre a cidade. As ruas estavam desertas enquanto o vento açoitava sem piedade as paredes de concreto. A madrugada era o momento que Lucas mais gostava do dia, pois lhe dava a paz que ele precisava para se concentrar mais no seu próprio caso.

Há dois anos abandonara sua profissão de detetive após um pequeno incidente com um de seus casos. Era algo que não deveria alarmar nem a polícia, nem a imprensa, apenas um banal caso de traição onde ele precisaria de algumas fotografias e nada mais. Lucas estava no local certo, no momento certo, com sua máquina fotográfica em mãos, apenas esperando o exato ato para fotografar. As cortinas do apartamento que ele viajava estavam escancaradas, apenas algumas das luzes estavam acesas, mas era o suficiente para ele ver a ruiva despindo seu elegante vestido escarlate para aquele jovem espalhafatoso.

Ele viajava o apartamento de uma sacada do hotel que ficava defronte, alugara um quarto por uma semana depois de descobrir onde eram os encontros secretos da ruiva. E aquela era sua última noite, as outras ele acabara se distraindo com a beleza inebriante da mulher e esquecera-se de fotografar, mas não perderia sua última oportunidade.

O jovem de cabelos curtos arrumados com gel aproximou-se dela e puxou-a para junto de seu corpo em um único movimento rápido – até demais. Os lábios dele desceram para o pescoço dela, beijando-a, enquanto suas mãos desciam pelas costas para desabotoar o sutiã. Lucas preparou a lente, ajustando o foco. O clarão produzido pelo flash chamou a atenção do jovem, que ergueu o rosto procurando a origem da luz.

Lucas estremeceu na sacada ao lembrar-se do momento em que os olhos daquele jovem monstro encontraram os seus, a um prédio de distância. A raiva faiscava deles, sem hesitar o jovem segurou a ruiva pelo pescoço, o sutiã tocou o solo no mesmo segundo que ele torcia-lhe o pescoço e a deixava cair no chão.

Sem nem se mexer, Lucas apertou o botão da máquina, o flash disparou novamente e outra vez, sem cessar, registrando todos os momentos do horrendo assassinato.

O jovem saiu em direção ao corredor, batendo a porta. Lucas sabia que ele vinha em sua direção, apanhou seus apetrechos e tomou seu rumo porta afora, descendo rapidamente as escadarias em direção ao ar livre.

Não havia muito mais coisas que ele se lembrava daquela noite. Quando o dia amanheceu ele estava caído dentro de uma das inúmeras caçambas de lixo do beco próximo ao hotel, suas roupas estavam rasgadas e ensangüentadas e ao seu lado sua câmera, partida em pedaços e sem o cartão de memória.

As manchetes no dia seguinte só falavam da ruiva da alta sociedade encontrada morta, sem vestígios do assassino. Mas Lucas não teve coragem o suficiente para ir a delegacia descrever o assassino e depor. E mês após mês ele via as manchetes sobre altas figuras da sociedade ser mortas pelo assassino.

Ele se escondeu na escuridão, no silêncio, vivendo na miséria com o pouco que havia juntado quando trabalhava como detetive. Mas durante as noites quem o visitava em seus pesadelos eram aqueles olhos, aquela face, aqueles cabelos elegantemente arrumados. Ele queria vingança, não pelas garotas, malditas ricaças hipócritas, mas por ele, pela ruína de sua vida. O desgraçado pagaria, isso ele tinha certeza!

Lucas voltou em direção a mesa, fechou o livro, apanhou um frasco negro de uma das gavetas e saiu pela porta, descendo os degraus do prédio centenário há muitos meses abandonado pela prefeitura. Dobrou à esquerda na esquina e caminhou, até o luxuoso hotel Divine, cinco estrelas, tudo como sua noite apelava.

A escada de incêndio deslizou com suavidade e Lucas galgou os degraus com agilidade até o sétimo andar. Velas acesas, o aroma de incenso de morango no ar, as janelas abertas, as cortinas esvoaçando, um vestido preto no chão, sapatos e roupas, sandálias e bolsa. A porta do quarto estava aberta, o inconfundível gemido de prazer chegou as ouvidos de Lucas, mas agora ele não se distrairia com as formas esculturais da moça, ele faria seu serviço, ele teria sua vingança.

Assim que ele bloqueou a iluminação das velas quando passava pela porta o casal parou, virando-se com rapidez para encará-lo. A expressão dela era do mais profundo choque e medo. Ele sorriu, levantando-se da cama e enrolando-se ao lençol branco. Com passos lentos e o sorriso ainda estampado no rosto ele caminhou na direção do detetive.

Lucas abria a tampa do frasco negro com os dedos trêmulos, a borracha demorou, mas cedeu, ele estava armado agora e não tinha medo. Avançou um passo em direção ao assassino, os mesmos olhos frios e horripilantes, Lucas teve arrepios, mas avançou firme e com velocidade.

Eles chocaram-se, Lucas quebrando o frasco na face do outro homem, que gritava tentando atingi-lo com golpes cegos das mãos e dos pés. A solução pingou no chão e corroeu o tapete persa. O homem gritava, logo a polícia estaria ali, Lucas correu em direção a janela e pulou.

Finalmente estava livre. Sem pesadelos, nada de assassinos, nem lindas garotas sendo assassinadas. Poderia até ser que o garoto não fosse preso e todos os jornais noticiassem o desmascaramento do Assassino de Damas como sendo ele, o pobre detetive Lucas, mas ao menos o patife não teria mais o belo rosto para conquistá-las.

Emília Kesheh
Enviado por Emília Kesheh em 19/10/2009
Código do texto: T1875757
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