ROMANCE - A FÊNIX NEGRA - CAPÍTULO II - parte 4
Quarta Parte – Ratos que Rugem
O Coronel Bolovo guiou os homens rapidamente até um imenso e bem ordenado lote de grandes caixas de madeira colocadas a um canto mais escuro. Na verdade, elas ocupavam o centro de um imenso salão subterrâneo, apenas parecendo ser um canto à perspectiva dos homens. O grande caminhão de lixo tivera de contornar para chegar à área de coleta. NVGs acionados, logo foi localizada a entrada do que parecia ser uma tubulação de ar, logo acima das caixas, que apresentavam rótulos em alemão indicando que continham produtos químicos e materiais diversos, destinados a algum lugar chamado Germania. Havia restos de serragem pelo chão, como se as caixas tivessem sido aplainadas ou...roídas. Pouco esperançoso, o Coronel Bolovo subiu numa das caixas e, com o auxílio dos homens, foi empilhando outras até ter acesso à entrada. Várias cargas de C-4 com detonadores remotos foram colocadas junto às caixas, bem disfarçadas. Poderia ser necessário criar uma diversão. Haviam checado com a luneta de alta potência as saídas externas do ar condicionado como possíveis vias de acesso mas fora decepcionante, as imensas grades escondiam dezenas de pequenos e longos tubos pelos quais passava o ar, mas um homem, nem pensar. Os alemães não eram nada bobos...
Mas aquela era interna e, para gáudio do Comandante, era uma passagem normal de ar com quase um metro de seção reta lateral. A grade parecia estar bastante danificada, o que mostrava que aquela pilha de caixas muitas vezes já deveria ter chegado até o teto e, durante sua manipulação, batiam na grade e a danificavam. Se haviam sensores, deveriam ter sido destruídos há tempos. Talvez tivessem feito consertos e substituições no início mas, com os constantes acidentes e danos, simplesmente deixaram por isso mesmo, afinal, estava dentro do prédio mesmo...
Com facilidade, a grade foi retirada e posta sem ruído sobre uma das caixas. O Coronel entrou primeiro. Era um imenso túnel quadrado, com várias encruzilhadas. Enquanto os homens entravam, ele seguia em frente, sabendo exatamente o que procurava: um atalho direto para o alto. Rapidamente o encontrou. Tinha a mesma largura do túnel. Os homens já estavam todos prontos, agachados em fila indiana. O Comandante largou suas armas e equipamentos, ficando apenas com o capacete com o NVG e a corda de kevlar. Por gestos, informou que iria subir e fixar a corda no topo, dando acesso aos demais.
Ficou então ereto. Fixou as costas numa das paredes e os pés na oposta. Então, começou a longa subida. Mais de vinte andares...
Arianne olhava para o homem na maca do hospital. Sua mãe fora informada dos acontecimentos por Herr Otto que, logo ao chegar em casa, a chamara para uma conversa reservada. Ficou algo surpreso com o relato de sua esposa sobre os meios que empregara para persuadir a filha a fazer o que era certo mas, principalmente, por ela simplesmente tê-lo feito. Temera uma batalha conjugal apenas para encontrar a vitória sem sequer necessitar lutar: estaria ela mudando? Sempre fora uma dura crítica de seus planos grandiosos, aí estava uma verdadeira surpresa. Ademais, estava linda e encantadora como nunca. Amou-a mais do que jamais o fizera por isso. Sim, a Condessa, a digna dama de um Cavaleiro Teutônico, ele escolhera bem...
A jovem apenas olhava. O homem era inegavelmente ariano, cabelos louros e finos, nariz reto, estrutura óssea do rosto bastante forte mas curiosamente graciosa. Suas feições pareciam relaxadas, em profundo repouso. Ressonava quase que em absoluto silêncio, ela sabia que seria assim, soldados de elite não se podem dar ao luxo de roncar ou então teriam de passar semanas a fio sem poder dormir, em alguma arriscada missão na retaguarda inimiga. Olhava e olhava, tentando ser isenta, imparcial. Se tinha de ser ele, que pelo menos fosse suportável. Bem, na verdade, feio não lhe parecia, assim, dormindo. Os olhos se moveram sob as pálpebras, apareceu a sombra de um sorriso: estava sonhando. Com o quê? Com quem?
O Coronel Bolovo subira o equivalente a três andares quando notou que as aberturas dos túneis se invertiam, agora não havia mais onde se apoiar. De costas, entrou no túnel, recuou cerca de dois metros, firmou as pernas contra as paredes e lançou, aos poucos, corda suficiente para os RATOS alcançarem. Quanto sentiu que alguém agarrara a ponta, esperou. Puxaram mais um pouco, depois dois puxões bruscos. Ele se firmou mais. Os homens estavam subindo.
Ao chegarem os primeiros, entregou-lhes a corda e foi procurar outro acesso para mais alto, que estava poucos metros adiante em linha reta. Pensou:
“Malditos alemães e seus esquemas complicados, por que não podem fazer as coisas à moda russa, tudo bem simples e funcional?”
Quando o último dos homens subiu, novamente se reuniram e novamente o Coronel começou a escalada. Tudo se repetiu, mais três andares, nova inversão dos túneis, corda, subida, nova busca, novo túnel para o alto. De certa forma era melhor assim, era mais lento mas muito menos penoso e arriscado do que ter de subir dezenas de andares de uma vez só: um escorregão e tudo estaria acabado. Prosseguiam e, pelo jeito, sem serem notados. Tudo ia bem. “Tomara que continue assim” – pensou o Comandante.
Na Base Aérea era tudo festa, banda de música, portões abertos, escolares, políticos, curiosos e entusiastas, além da indefectível imprensa. Não era todo dia que chegavam duas dúzias de supercaças Rafale F4 para ficarem na região, responsáveis por sua defesa. E chegavam em grande estilo, eriçados de mísseis, foguetes e bombas, quase tudo de manejo, mas causava uma tremenda impressão visual. Então os caças começaram a pousar, de dois em dois, para o delírio da multidão, atordoada pelo ruído das dezenas de turbinas, que reduziam a banda de música a um sonoro nada.
Os dois últimos caças a pousarem foram dois biplaces. No líder do elemento, um carrancudo Coronel Mathias conduzia o Comandante da II FAE, que não lhe dera sossego por um minuto durante o longo vôo, explicando e tornando a explicar em detalhes a natureza da missão e advertindo-o incessantemente das terríveis conseqüências do menor dos deslizes. O piloto imaginava cenas como inverter o caça e ejetar o Brigadeiro a baixa altura e crueldades afins. Era muito azar, por que diabos O Homem fora pegar logo no seu pé? Certo, reconhecia que tinha fama de ser meio independente demais mas porra, isso é ou não é uma qualidade também? Fizera ou não os americanos de palhaços na Red Flag? Sim, fora ele, então Tenente-Coronel Carlos Mathias, quem tivera a idéia de botar os caças em silêncio-rádio, data-links desligados e voando tão baixo quanto possível. Não comunicara nada ao Comando, simplesmente combinara com os outros pilotos. Os caras dos F-35 não se agüentaram, começaram a emitir e o Spectra os detectou, logo depois o OSF, daí foi simples, esperar passarem, subir como flechas e enrabar todo mundo. O mais legal é que os ianques não entenderam nada, espalharam que os novos módulos do radar RBE podiam detectá-los, isso gerou uma chiadeira dos diabos na imprensa norte-americana, sobre seus caríssimos caças não serem páreo para outros que custavam menos de metade do preço. Levou meses para descobrirem o embuste mas esportivamente os americanos reconheceram a engenhosidade do piloto brasileiro e o condecoraram. A promoção veio a reboque. E agora isso...
Só podiam estar no topo do prédio: os únicos túneis que conduziam para cima eram recheados de tubos menores. Até então não haviam passado por nenhum acesso direto a alguma sala ou corredor, precisavam agora procurar. Não levou muito tempo para acharem a primeira grade. Dava para uma sala ampla e escassamente mobiliada, parecendo uma espécie de vestiário militar, filas de armários metálicos e longos bancos entre elas. Não parecia haver ninguém no interior. Então o Coronel Bolovo passou a examinar mais detidamente a grade, buscando sensores que denunciassem sua abertura. Nada notou. Não satisfeito, apanhou de um dos bolsos de seu colete tático um pequeno aparelho, pouco maior que um controle remoto de TV, com uma espécie de lente alaranjada na parte superior. Começou a percorrer as bordas da grade olhando pela lente e logo notou que haviam radiações eletromagnéticas de altíssima freqüência curiosamente ondulantes, parecendo plasmas de energia e não ondas comuns. O mais estranho é que não pareciam sair de ponto algum nem ir para outro, apenas circulavam por toda a grade, mansamente. Não imaginava como se podia desativar algo assim. Falou baixo mas com volume suficiente para que todos pudessem ouvir:
- Pessoal, a discrição acaba aqui. Essa grade tem algum tipo de alarme que não há como desligar. Vou derrubar essa merda, entramos e daí em diante é guerra. Parou na frente, matem! Ninguém aqui é amigo.
Firmando as costas nos companheiros atrás, chutou com os dois pés, arremessando longe o obstáculo. Este ainda não tocara o solo e ele já estava na sala, em pé, arma em riste. Os homens rapidamente se espalharam, fatiando em torno dos armários. A grande sala estava efetivamente vazia.
Sala de Controle da Segurança Interna:
- Hans, olhe isto.
- Jawohl, Herr Oberscharf! Ei, a grade do vestiário parece estar com defeito, parou de sinalizar.
- Como pode ser isso?
- Não sei, nunca aconteceu antes, ao menos que eu saiba. Esses novos equipamentos que instalaram usam plasma eletromagnético moldado, não há emissores nem receptores, apenas uma central que os detecta. Poderia ser algum defeito na central, talvez algum rato tenha se esgueirado e encostado na grade, absorvendo a energia, virando cinza no processo. Ou...
- Ou...?
- Alguém a arrombou. Com botas ou luvas de borracha grossa, não sofreria nenhum efeito.
- Ora, vamos, Hans, quem chegaria até ali? Deve mesmo ser algum rato, mande uma turma de reparos.
- Jawohl, Herr Oberscharf! Heinz e Schmatz estão no mesmo andar, vou mandá-los lá. Boto no relatório?
- Vamos esperar primeiro para ver o que eles dizem. Aprenda, Hans, nunca se faz um relatório pela metade, primeiro compilamos todos os fatos, os ordenamos em seqüência lógica e cronológica para então lançarmos no sistema. Imagine o papelão que faríamos mandando algo como ‘aconteceu tal coisa, eu acho que pode ser isso ou aquilo’ para ser lido por todos os setores ligados à segurança? Seríamos a piada da semana...
Ele não sabia, mas com sua exacerbada paixão pela ordem acabava de decretar sua própria sentença de morte, bem como a de Hans. Na verdade, essa era uma daquelas pequenas coincidências que decidem batalhas, o homem errado no lugar errado que toma invariavelmente a decisão errada num momento crucial.
O Coronel Wolfgang abriu os olhos de supetão, assustado e assustando Arianne. Olhou em volta sem entender o que acontecia. Seus olhos então se fixaram na bela jovem ao lado de sua cama.
- Enfermeira, o que houve? O que estou fazendo aqui?
Ela sentiu vontade de rir com a expressão confusa dele, chamando-a de enfermeira, mesmo estando em sua farda negra de SS. Seus frios olhos cinzentos começaram a ficar levemente azuis. Notou que falava um alemão com certo sotaque berlinense e que tinha uma bela voz, grave e máscula. Então sorriu, algo a contragosto mas não podendo evitar, a situação era demasiado insólita:
- Não sou enfermeira. Quer que chame uma? Sente-se mal?
Ele fixou melhor o olhar nela:
- Meu Deus, deve ser sonho. Steiner me disse que eu seria melhor tratado logo mas jamais imaginei que fosse trocar aqueles gorilas por alguém como você. É minha guardiã agora? Por favor, diga que sim...- sorriu um sorriso que aqueceu levemente o coração de Arianne. Era um sorriso franco de uma pessoa obviamente inteligente e desenvolta mas lera sua ficha, era homem perigosíssimo e capaz de safar-se de situações praticamente impossíveis. Naquele caso mesmo, pelo que fora informada, apenas um acaso o derrubara, os SS não tinham tido a menor chance. E ele não estava atado à cama, poderia atacá-la a qualquer momento.
Instintivamente, começou a recuar um passo.
- Ei, não se assuste, jamais machucaria uma mulher. – ele sentou-se na cama. – só preciso que me explique o que está acontecendo, não estou entendendo nada, num instante estava conversando com Steiner e agora estou aqui, com uma dor de cabeça dos diabos – perdão – e sem saber o que houve comigo. – sua expressão era de genuíno desamparo. O que houve, passei mal ou algo assim?
Às suas costas, Arianne ouviu uma voz mais temida do que amada:
- Então, nosso Hóspede acordou. Como se sente, Herr Wolfgang Stauffenberg? Há algo que podemos fazer pelo senhor?
- Bem, se me conseguisse uns analgésicos eu creio que ajudaria, minha cabeça parece que vai estourar. O senhor é médico?
O homem riu.
- Não, médico não, mein freund. Mas não se preocupe, essa cefaléia que sente vai durar poucos minutos, é um preço bem barato para quem acaba de ressuscitar...
- Ressuscitar?
Heinz e Schmatz estavam em sua sala, conversando sobre seu assunto preferido: mulheres. O primeiro contava ao segundo de uma tcheca que apanhara em seu estágio na Alemanha e de quantas coisas diferentes ela sabia fazer, quando entrou a chamada no monitor. Deveriam investigar uma falha de proteção numa das grades de acesso ao túnel de ventilação do vestiário das Forças de Segurança.
- Merda mesmo, outro maldito rato. Mesmo não havendo mais fios para roerem, os desgraçados vivem se enfiando em alguma fonte de plasma.
- Gozado é fazerem isso numa grade, não faço idéia de como conseguiram subir tanto nem o que estavam procurando, eles geralmente vão aos locais onde há algo de comer, lá só tem armas, equipamentos e uniformes...
- Bem – disse Heinz, erguendo o corpanzil da cadeira – se tem que ser feito, melhor que seja logo, esse Oberscharf novato é um pé no saco, acha que ainda está na Academia de Germania, quer tudo certinho a hora e a tempo, o palhaço...
Apanharam suas maletas de ferramentas e instrumentos e se dirigiram ao vestiário. Com um leve toque de seu polegar direito no lugar exato, a porta deslizou suavemente e parou. Entraram juntos, ainda comentando sobre mulheres e rindo. De trás dos armários, o Pajé e o Judeu emergiram como relâmpagos, facas de combate em punho, e os degolaram. Nenhum som. Os corpos foram cuidadosamente depositados no chão. A porta continuava aberta.
Sala de Controle da Segurança Interna:
- Senhor, há algo muito errado aqui!
- O que foi, Hans?
- Os sinais vitais de Heinz e Schmatz desapareceram do monitor tão logo entraram na sala.
- Diabos, não pode ser alguma interferência?
- Difícil, mal entraram e os sinais desapareceram. Não mexeram em nada, disso tenho certeza, não houve tempo.
- Será que temos uma pane geral no vestiário? Que inferno, logo no meu turno, vai dar um trabalhão preencher tantos relatórios, hoje não é o meu dia de sorte. Façamos assim, vá lá você mesmo e veja o que diabos está acontecendo e volte em seguida para reportar, eles podem nem ter se dado conta da pane...
- Herr Oberscharf, não seria melhor mandar uma patrulha? Isso está com cara de...
- Deixe de ser frouxo, não vamos alertar todo mundo só por causa de alguns ratos, quer fazer papel de bobo? Bem se vê que vai durar muito como Oberschütze, até chegar a Rottenführer já serei Oficial. Aprenda a ser prudente, Hans... – disse, com ar condescendente. – e vá de uma vez!
- Jawohl, Herr Oberscharf!
- E pare de me chamar de Oberscharf, o correto é Oberscharführer, sim?
- Jawohl, Herr Oberscharführer!
Hans dobrou um corredor e se encaminhou para o vestiário. Ao dobrar o segundo, sentiu-se agarrado, seu pescoço forçado com violência para a esquerda, uma leve cócega no pescoço, uma rápida agonia e estava no chão. Morto. Uma imensa poça de sangue se formava em torno de seu corpo. O Coronel Bolovo:
- Ele dobrou aquele corredor, vamos ver o que tem lá.
Seguiram ainda em fila indiana, armas prontas. Ao chegarem à esquina para o novo corredor, o Comandante espiou rapidamente, à israelense, retirando a pequena parte do rosto que expusera. Sussurrou:
- Há uma sala envidraçada, deve ser a central de segurança deles. Vamos tomá-la e controlaremos o prédio.
O Oberscharführer olhou para a porta da sala: Hans deixara aberta. Não tinha jeito, podia ser um dos operadores mais experientes mas estava ficando desleixado, pelo jeito. Teria de dar parte dele e solicitar outro auxiliar. Estendeu a mão para o botão que fechava a porta quando, com o rabo do olho, viu que havia alguém ali. Então entendeu. O homem – um soldado, naturalmente e, pelo uniforme e equipamento, inimigo – lhe apontava uma arma de desenho antigo. Decidido, apertou o botão: a porta era, bem como todos os vidros da sala, à prova de balas. O homem uniforme estranho com alguns objetos estranhos, parecendo granadas, pendurados no peito, fez fogo e calçou a porta com o pé. Um violento estrondo e o Oberscharführer, com o peito dilacerado, desabou sobre os controles.
- Bem, cagou-se a discrição. Agora é tudo ou nada. – disse em voz alta o Coronel Bolovo. Removeu rudemente o corpo do SS de cima do painel mas não entendeu nada, simplesmente não compreendia como aquilo funcionava, era uma tecnologia nova e, portanto, desconhecida.
O tremendo barulho feito pela burst do AN-94SM ecoou pelos corredores. Sem opção, o Comandante manteve os homens juntos, seguindo à frente. Chegando a outra esquina, usou a mesma técnica de olhar rapidamente. Vazio. Mas desta vez não estava direito, algo não parecia normal. De súbito as mesmas sensações de quando entrara em uma emboscada na Chechênia lhe voltaram. Era a mesma coisa, não via nada de anormal mas seus instintos lhe diziam que algo estava muito errado. Daquela vez fora um dos poucos sobreviventes, mas com duas balas e vários estilhaços no corpo. Então, agachou-se e ergueu o punho, cerrando os dedos. Todos os homens se agacharam também. O ar parecia carregado de eletricidade. O Coronel deu nova e rápida espiadela. Nada. Fez sinal ao Perdigueiro para fatiar lentamente, enquanto se preparavam para uma entrada de assalto no corredor. Tinha de haver algo lá, só parecia vazio. Seus instintos o alertavam com mais vigor do que nunca. A morte estava bem perto, tinha de haver inimigos ali, por alguma razão não conseguia vê-los mas sentia que estavam ali e vinham para matar. Então olhou para o Perdigueiro, que começava a entrar no corredor, pela usual rota circular do fatiamento. Então seus alarmes mentais chegaram ao máximo. Ouviu um levíssimo zumbido. Esticou o braço e puxou o RATO pela manga da camisa com tanta força que este ficou com as duas pernas no ar. Sentiu-se um forte cheiro de queimado. Olhou para a perna do homem: parte da bota havia desaparecido, junto com o pé que havia dentro dela. O coto fumegava, cauterizado. Os homens olhavam, horrorizados, sem entender. Então, o Coronel Bolovo sacou uma das estranhas granadas, puxou o pino de segurança e a lançou contra uma das paredes do corredor adjacente, imediatamente saltando para o mais longe possível e sendo imitado por todos os outros, inclusive o Perdigueiro, que ainda não assimilara que estava com um pé a menos. Todos deitados de bruços e com as mãos nos ouvidos, de acordo com o que viram o Cmt fazer.
Então uma explosão, depois uma forte emissão de calor e um vento intenso passou pelos homens deitados. Segundos depois, o Coronel invadia de peito aberto o corredor, fuzil apontado e pronto, para encarar uma cena tão dantesca quão incompreensível.
- Vou lhe dizer o que aconteceu, Herr Stauffenberg. O senhor atacou os dois SS que o conduziam a seus aposentos provisórios. É difícil imaginar como lhe foi fácil fazer isso, em menos de meio minuto – sim, foi filmado em cores e com som, lhe mostrarei alguma outra hora – dois homens muito fortes e altamente treinados estavam a nocaute. Por infelicidade, um daqueles bastões de microondas deles, ainda acionado pela violência de seu ataque lhe bateu de leve na cabeça. Falando em alemão claro, o senhor morreu ali mesmo, seus pulmões e coração pararam imediatamente. Sua sorte – e a nossa – é que temos uma medicina muito mais avançada que a do mundo exterior. Vou poupar-lhe os detalhes enfadonhos, o fato é que tivemos de reconstruir parcialmente seu cérebro, que foi receptivo em um nível nunca visto à cirurgia, mesmo à nossa. Para que o senhor tenha uma idéia, tudo isso aconteceu ontem e aqui o temos, intacto. Agora são aproximadamente onze e meia da manhã, tem o resto do dia para se recuperar, exercitar ou o que quiser fazer, pois à noite desejo que nos faça companhia no Baile de Gala. Aliás, é o convidado de honra. Voltarei mais tarde para lhe explicar melhor o que Germania espera do senhor. Até lá, aproveite a companhia de Fraulein Eisenkopf, conheçam-se melhor. Não é dádiva concedida a muitos...
Com estas misteriosas palavras, retirou-se. Wolfgang perguntou:
- Senhorita Eisenkopf? Que formal. Meu nome é Wolfgang. – e estendeu a mão.
Algo receosa, ela retribuiu o aperto de mão. Ele tinha uma mão enorme, calejada, mas cálida e apertava suavemente. – Me chamo Arianne.
- Arianne? Lindo nome. Apropriado também...- sorriu, agora intensamente. Ela gostou do brilho dos olhos dele. Era intenso e transmitia também honestidade e firmeza. Teria se enganado a respeito dele? Não parecia falso e artificial como nos tapes a que assistira no laptop. Sua voz também, era realmente agradável de ouvir. Sentiu vontade de perguntar a ele se sabia dançar valsa mas achou idiota e calou-se. Não se dava conta, mas seus olhos, normalmente cinzentos, passavam a um azul cada vez mais intenso. Ele notou e falou:
- Ei, você me lembra minha prima. Desculpe, posso chamá-la de você?
- Sim, esteja à vontade (quase disse “vai ser meu marido mesmo, pode tomar as liberdades que quiser”).
Em que lembro sua prima?
- Ela também tem olhos assim, normalmente cinzentos quando está triste ou indiferente. À medida que fica feliz ou interessada em algo, eles vão ficando azuis. Acho lindo, até pela raridade...
- Essa sua prima, como se chama?
- Ora, é a...- parou. Simplesmente não conseguia recordar-se do nome da prima. Recordava-lhe perfeitamente as feições, o talhe, a voz mas não o nome... – é a filha do tio Schneider, a...a...
- Calma, lembre-se do que meu pai lhe disse, sofreu uma...
- Seu pai? Aquele homem é seu pai?
- Sim, Otto Eisenkopf.
- Otto Eisenkopf? Aquele Otto Eisenkopf? O banqueiro? Um dos caras mais ricos do mundo?
- É, creio que o definiria bem...
- Não me entenda mal mas o que um homem como ele pode querer de mim? Sou Soldado, não financista.
- Ele vai lhe explicar isto, pode ficar tranqüilo.
- E qual o seu papel nessa história?
- Ele também lhe explicará. Agora precisa recuperar-se, talvez mais algumas horas de sono, será uma longa noite...
Diante do Coronel Bolovo, três homens completamente carbonizados, enroscados sobre si mesmos, jaziam imersos em forte odor de carne e materiais sintéticos carbonizados. Típicas vítimas de uma arma termobárica, que fora o que o Cmt utilizara. Mais atrás, o inusitado: apenas a metade de um homem, as pernas e cintura, apareciam. Nem sinal da outra metade. Nada de marcas ou pedaços do corpo, apenas...nada. Mais adiante ainda, um outro homem, vestindo um estranho macacão preto, cheio de estranhas caixas e equipamentos e cuja cabeça não se via em lugar algum. Intrigado, o Cmt se aproximou deste. Entre os ombros, nada, era como se o pescoço do homem estivesse vitrificado. Foi tocar com a mão e percebeu que não alcançava. Havia algo ali. Apalpou e era uma espécie de capacete. Havia uma cabeça ali mas, por alguma arte tecnológica, não podia ser vista. Continuou apalpando, até sentir uma alça flexível. Puxou e esta cedeu, então viu que eram óculos de combate. Puxou mais e apareceu um par de olhos fechados. Mas haviam fios presos que também não podiam ser vistos, foi apalpando-os até achar o ponto onde se fixavam, uma pequena caixa no peito do homem. Retirou a caixa inteira. Então colocou os óculos, agora visíveis, em seu rosto. A caixa devia ser a bateria e algum chip, pois agora apareciam sinais e símbolos. Notara uma pequena chave rotativa do lado direito dos óculos, girou um nível e notou que a sala ganhava novos contornos, portas que antes não vira agora apareciam. Voltou ao nível anterior e percebeu que agora podia ver a parte superior do corpo do meio-homem. Então era isso, eles podiam se mesclar maravilhosamente à paisagem cincunjacente mas conservavam a capacidade de se verem entre si, o que evitaria esbarrões e mesmo fratricídios. Agora estava ficando claro: os homens que haviam saltado na floresta haviam sido atacados e provavelmente mortos por homens que sequer puderam ver...
Bem, agora ele podia vê-los. As armas que usavam também eram estranhas. Já havia visto o efeito que causavam, haviam praticamente amputado o pé do Perdigueiro. Funcionariam contras aquelas roupas? Apontou para o peito do ‘sem cabeça’ e pressionou o gatilho, que parecia com qualquer outro. A arma emitiu um leve zumbido e logo a seguir o peito do homem se abriu como manteiga perfurada por um ferro em brasa. Os homens estavam espantados. Foi até o ‘sem tronco’ podendo vê-lo perfeitamente. Tirou seus óculos e a caixa-bateria e passou ao Judeu:
- Coloque isso. – depois juntou a outra arma intacta e entregou-a igualmente a ele.
Ordem cumprida, o Major maravilhou-se com o efeito do extraordinário visor, sua interação com a arma e a leveza desta. Bolovo então dirigiu-se aos demais:
- Senhores, vamos nos dividir em dois grupos, um me segue e explora a ala esquerda do prédio e o outro a direita com o Judeu. Fiquem sempre atrás de nós, pois podemos agora ver o que os senhores não podem...
- Só uma coisa, senhor – sugere o Judeu. – E aquela sala em que começamos? Aqueles armários eram bem esquisitinhos, bem que podia ter algo lá...
- Cara, tem razão. Na hora não reparei mas parecem armários militares, vai que tem mais disso...sim, vamos voltar lá primeiro e ver o que há...
Ele acabou mesmo pegando no sono. Ela o observava ainda. Parecia tão desamparado, num mundo para ele tão estranho e original. Não se cansava de olhá-lo: o Ariano Perfeito, igual a ela. Aquele que lhe geraria filhos que seriam os verdadeiros comandantes e timoneiros do Grande Futuro imaginado por seu pai. O futuro em que a Fênix Negra imperaria sobre a terra, suas asas abertas de ponta a ponta, a tudo cobrindo e a tudo impondo a disciplina e a camaradagem nazistas. A cooperação entre todos sem interesse maior que o bem comum. Nada mais de horríveis negros, índios, latinos, asiáticos, judeus, árabes e, portanto, nada mais de eternas guerras e disputas por pedaços de terra, lençóis de petróleo, cursos d’água, matérias primas, hegemonias políticas e, portanto, nada mais de exércitos contrapondo exércitos e nada mais das matanças daí advindas. Mesmo as Waffen acabariam, restariam apenas SS e Gestapo como polícias para manterem a ordem, subordinadas e submissas ao Verdadeiro Poder, o Poder Teutônico, que emanaria, benigno, da Casa da Montanha. Nisso, ele se moveu na cama. Então seu pai entrou:
- Filha, poderia me deixar a sós com nosso Hóspede? Segundo os médicos ele está acordando e tenho pouco tempo para explicar muitas coisas.
Sem nada dizer, Arianne obedeceu aquele que era seu pai mas também era seu Führer.
Desta vez sem preocupações com discrição, os armários mais próximos foram rapidamente arrombados pelos homens, enquanto Bolovo e o Judeu vigiavam. Cada um continha um daqueles estranhos uniformes, completo. Avisado, o Coronel mandou que os vestissem sobre a farda. Mesmo o Perdigueiro, o pé destruído insensibilizado por morfina, calçou as curiosas botas multiamortecidas usando uma bucha de pano para preencher o espaço vazio. Era ótimo o conforto dos uniformes. Em poucos minutos todos estavam fardados da cabeça aos pés. Os últimos foram Bolovo e o Judeu. Outros armários, mais baixos, após arrombados, revelaram armas iguais às duas que possuíam e baterias extras. Após, colocaram o resto das cargas explosivas entre os armários: nada daquilo deveria ficar para ser usado pelo inimigo. Então, devidamente equipados e irreconhecíveis à primeira vista, saíram novamente para o corredor, o Cmt lendo desesperadamente um manual bem básico de instruções em alemão para tentar entender as funções. Apreendeu as principais. Tocando num botão no interior do pulso esquerdo, a camuflagem funcionava. Outro botão no mesmo pulso controlava a temperatura no interior do uniforme, bastando regular para a desejada e esta era automaticamente mantida da cabeça aos pés. Para se comunicarem entre si, bastava sincronizar as freqüências mas achou desaconselhável: apenas ele falava alemão. Assim, determinou silêncio absoluto, comunicação apenas por gestos. Após obter as informações que pôde, partiram na direção oposta à que haviam seguido na primeira vez em que haviam saído dali. Ele, Coronel Bolovo, liderava a marcha em fila indiana, o Judeu a fechava. Ao dobrar uma esquina, deparou-se com um grupo de quatro homens, armados e também camuflados, dispostos de modo a bloquearem a passagem. Ouviu em alemão:
- O que está acontecendo? Que explosões foram aquelas?
- Parecem haver terroristas por todo o prédio.
- Mas isso é imposs...
Não terminou a frase: os quatro, da maneira que estavam dispostos, eram um alvo fácil demais, sendo todos destroçados pelas armas que haviam sido desenvolvidos para sua própria vantagem. O RATOS continuaram a progressão. Nova esquina e apenas um longo corredor, que conduzia a uma única porta. Correram para lá. No que iam chegando, abre-se a porta e sai um homem à paisana, com uma pasta de algo parecido com couro na mão direita. O Coronel comanda o desligamento da camuflagem. O homem olha-os sem temor e diz, em tom autoritário:
- Algo está errado. Há sinais de danos e baixas por todo este andar.
- Sim senhor, parece que temos terroristas por toda parte, matamos quatro ali atrás, devem estar vindo mais...
- Então são a escolta que ordenei?
“Mas que sorte” – pensou o Coronel, antes de responder:
- Sim senhor. Mas não fomos informados da natureza da missão, apenas que deveríamos nos apresentar aqui e aguardar ordens.
- Aquele Hauptsturm deve estar doido, fui bem específico...
- Ele também está lutando, senhor.
- Mas então está feio mesmo. Bem, entrem logo.
Os homens adentraram a sala. Era bem grande e totalmente envidraçada para o lado de fora. Haviam mais três homens à paisana. O Coronel sabia quem eram, ao menos publicamente: os líderes da Jungle Watch!
Todos se encaminharam para uma porta lateral:
- Teremos de usar as escadas de incêndio, os elevadores podem estar comprometidos. Os senhores nos escoltarão até o topo, para onde um helicóptero já está vindo nos resgatar. São, como sabem, apenas dois lances de escada mas devem se assegurar de que não haja qualquer oposição. São responsáveis por nossa integridade perante o próprio Reichsführer. Heil Hitler!
- Sieg Heil! O Cmt respondeu de maneira irrepreensível, acrescentando: “Befiehl!”
A porta se abriu, mostrando um amplo lance de escadas. Por gestos, Bolovo manteve três grupos, um à frente comandado pelo Judeu, o central conduzindo os paisanos comandado por ele mesmo e outro à retaguarda, com o Pajé. Foram subindo rapidamente, armas prontas, mesmo sabendo que os únicos terroristas ali eram eles próprios. Os paisanos, já idosos, ofegavam à veloz progressão, os lances de escadaria eram longos. Na segunda metade do final, estavam exaustos, sendo amparados pelos RATOS. Pararam poucos degraus antes da saída, o Coronel Bolovo mandando com um gesto – que foi entendido – e ao mesmo tempo falando em alemão – que só o foi pelos paisanos – que o Judeu conduzisse seu grupo ao heliponto e limpasse o local de qualquer oposição, passando a seguir a assegurar o perímetro. Este cumpriu a ordem, ligando novamente a camuflagem e sendo imediatamente imitado por seus homens. Entraram correndo no amplo espaço aberto, tendo localizado duas sentinelas que se dirigiram a eles, perguntando pelo sistema de fonia o que estava acontecendo. Como resposta, foram mortos ali mesmo e rapidamente arrastados para um canto escuro. Os paisanos não estavam usando os óculos especiais mesmo...
Logo ouviram o som de rotores. Ajustando o zoom do visor, função que o Judeu recém descobrira, pôde identificar um grande Sikorsky com matrículas brasileiras. Aeronave civil com marcas de uma empresa de voos fretados. Reportou por fonia ao Coronel, que repassou a informação aos paisanos.
- É uma aeronave estranha, não é das nossas... – arriscou.
- Não há nenhuma disponível, tivemos de fretar.
A aeronave já pousava. O piloto estranhou, não via ninguém no heliponto, mesmo estando os RATOS a poucos metros. A camuflagem era mesmo excelente. O Judeu simplesmente reportou:
- Pousado. Vamos tomar.
- Vão em frente. – comandou o Coronel Bolovo, em português. Os paisanos ouviram e se entreolharam.
- Sinto muito, senhores, a brincadeira acaba aqui. – imediatamente tomou a pasta do mais próximo, os demais soldados os imobilizando e também tomando as que traziam consigo.
- Mas quem são v...?
A resposta foi um chute que mandou o nazista escada abaixo. Os demais também foram lançados da mesma maneira.
- Vamos cair fora, caras. Nunca tinha imaginado algo assim, o próprio inimigo providenciar a nossa exfiltração...- riu. E correram para a aeronave. Somente ao entrar foram desligando a camuflagem, diante dos atônitos dois tripulantes, que viam homens com estranhas roupas surgindo do nada. Mas, prudentemente, nada comentaram, apenas:
- Para onde, chefia?
- Vamos sair daqui. Há aquele terreno vazio a uns três quilômetros daqui, conhece?
- Sim, aquele onde ia sair o prédio novo do Supremo?
- Esse mesmo. Pouse lá, espere desembarcarmos e suma como se tivesse mil diabos no seu encalço.
- Pra já, chefia!
A menos de duzentos metros, o Coronel apertou o primeiro detonador remoto, o que explodia os armários de armas e uniformes. Nenhum sinal externo além de um jato de fogo que fez saltar duas coifas de descarga de ar do topo do prédio. Então, apertou o segundo detonador, o das caixas no porão. Não estava de modo algum preparado para o que viu. Primeiro, longos e velocíssimos jatos de fogo irromperam por todas as laterais inferiores do prédio. Então, entre chamas, fumo e fuligem, este simplesmente desabou inteiro, numa implosão quase perfeita.
- Nossa, o que diabos havia naquelas caixas?
A aeronave pousou onde lhe fora ordenado. Tão logo desembarcaram, o piloto decolou o mais rápido que pôde. Os RATOS foram em direção a algumas árvores, que ensombreciam tudo. Ali, tornaram a ligar a camuflagem. Então, seguiram a pé, invisíveis, rumo ao hotel que usavam como base. Lá chegando, foi simples apanhar a chave da suíte sem serem percebidos pelo sonolento recepcionista. Foram pela escada. Minutos depois, já estavam todos em segurança. Pela janela, viam as chamas do prédio da Jungle Watch ao luar da madrugada, enquanto ouviam sirenes de bombeiros. Curiosamente, no hotel não se notava maiores movimentações. Vantagens dos quartos com paredes e janelas à prova de som...
A silenciosa aeronave de passageiros stealth pousa em Germania. Vários passageiros descem. Um deles destaca-se pelo porte e pelas divisas, além da profusão de medalhas de combate. É um oficial da Waffen. É recebido por um ordenança.
- Herr Hauptstürmführer Lang, prazer em revê-lo.