ROMANCE - A FÊNIX NEGRA - CAPÍTULO II - parte 3

Terceira Parte – Acontecimentos

Os paramédicos haviam chegado ao local quase que imediatamente. Um tubo desceu pela garganta do imóvel Coronel Wolfgang enquanto que eletrodos eram afixados ao seu peito e costas. Seus pulmões foram rapidamente reativados pela respiração forçada enquanto sinais cuidadosamente modulados de microondas reativavam seu coração. Chega o médico-chefe e pergunta ao paramédico que liderava a equipe de elite, eis que sempre havia uma de plantão na Ala dos Superiores, que ficava ao lado da ala de laboratórios de altos experimentos, onde estava localizada a pequena cela:

- Então?

- Senhor, ao chegarmos constatamos um caso de morte clínica. O corpo ainda estava quente, devemos ter sido acionados menos de meio minuto após o...incidente. Usamos os procedimentos padrão e ele está respirando e com batimentos cardíacos regulares...

- Perfeito, então. Quanto tempo para ele estar em pé ou ao menos sentado? O Reichsführer em pessoa está vindo para cá agora e vai querer...

- Senhor, não é tão simples...

- Como assim, explique-se!

- Senhor, temos aqui um caso que nunca estudamos a fundo: um homem atingido por um bastão de plasma de microondas na cabeça. Nosso procedimento em casos assim é simplesmente atestar o óbito, levar para o laboratório e abrir o crânio, para ver como e onde foi afetado. Como o senhor sabe...

- Sim, o plasma se forma e age de maneira idiossincrática, dois homens atingidos exatamente no mesmo ponto externo sofrem efeitos internos diversos, isso é coisa que qualquer estudante sabe. O caso é que este homem simplesmente não pode morrer nem ficar com qualquer seqüela ou precisaremos arranjar algo bem bonito para colocarmos sobre os ombros, pois nossas cabeças não vão durar muito em cima deles...

- Bem, o médico é o senhor, eu realmente fiz o que podia e...

- Diabo! Faça o seguinte, remova-o agora mesmo, com todos os sistemas de manutenção de vida para o meu laboratório pessoal, ou o endireitamos lá ou...bem, tenho minha pistola...não precisarei passar pela vergonha de um pelotão de fuzilamento, o Reichsführer entenderá os meus...

- Não entenderei merda nenhuma! Quero esse homem em pé em duas horas!

Voltaram-se: diante deles, o Reichsführer, os olhos normalmente vítreos agora de um azul intenso, exprimindo sua fúria.

- Vocês não entendem? Por uma asneira desses incompetentes aí – apontou os SS, que também eram atendidos – o Segundo Führer deixará de fazer o maior acasalamento de toda a história. Dois Arianos Puros ao nível máximo, planos cuidadosamente elaborados terão de ser refeitos para buscarem resultados mais modestos, a Fênix não renascerá tão poderosa quanto poderia e deveria. Está em suas mãos.

- Herr Reichsführer, só posso prometer...- começou o médico-chefe.

- Não me prometa nada. Faça o que estou dizendo. Quero este homem em pé e saudável em duas horas – olhou para o relógio – a contar de agora! A prioridade do caso é máxima, chame quem tiver de chamar, use todos os recursos que existirem em Germania, eu não quero saber quem vai ficar sem eles, mas me bote este homem em condições. Ande, homem, está perdendo tempo!

Parecia que faziam anos que não a via. Sua mãe parecia curiosamente mais jovem. Arianne comentou isso.

- Ah, minha filha, os homens arianos querem suas mulheres belas e jovens, assim a nossa pesquisa também contempla o rejuvenescimento. Claro que não é eterno mas olhe para mim, tenho 51 anos e...

- Mãe, se não a conhecesse e soubesse disso, duvidaria que tivesse a metade. Numa rua de Berlim diriam que somos irmãs...

Após mais abraços, comentários e reminiscências, além das lágrimas de sempre, Arianne explicou à mãe o que lhe tinha vindo pedir.

- Filha, creio que nisso não poderei ajudar, ao menos não da forma que espera...

- Mas mutti, eu não quero esse homem estranho, Kurt sim, é o...

Frau Eisenkopf respirou fundo.

- Filha, creio que vou ter de lhe contar coisas que a chocarão. Nem tudo nem todos são exatamente o que parecem. Esta conversa não deverá sair daqui, é um segredo nosso...

- O quê? Segredos agora? Mutti, a senhora já enfrentou o vatti antes e...

- Neste caso seria loucura, seria enfrentar Os Quatro mais Germania inteira, seria atacar diretamente a própria Fênix. Ademais, você é muito jovem mas bastante inteligente e madura para a sua idade, vai entender a partir do momento em que passar a conhecer determinados...fatos...que lhe foram cuidadosamente ocultados por trazerem em seu bojo um problema similar – eu diria pior, bem pior – do que o que você vislumbra agora...

- Mutti... – Arianne estava às lágrimas novamente.

- Apenas escute...

Toca o interfone:

- Brigadeiro, o Coronel Mathias.

“É agora” – pensa o Brigadeiro, fumando sem parar. – Mande entrar, por favor.

Instantes depois entra um homem de estatura ligeiramente acima da média, forte e ligeiramente calvo, a “doença do capacete”, como alguns pilotos chamavam a calvície precoce. Quando eram confrontados com casos de pilotos que chegavam ao generalato com a cabeleira intacta, sempre havia uma desculpa: ‘o Saito? Ah, esse é japa, não vale, nem existe japa careca’ ou ‘o Brigadeiro? Esse voou tanto no GTE que nem deu tempo de se acostumar ao capacete’, o que era uma injustiça para com um piloto com mais de duas mil horas em A-1. O homem de macacão de vôo se perfila, presta uma garbosa continência e se apresenta:

- Senhor Brigadeiro, Coronel Carlos Mathias, comandante do...

- Tá, vamos parar com a conversa de AFA e falar que nem gente, curto e grosso! – o Coronel arregalou os olhos: “o que deu no homem?”

- Mathias, eu te conheço e não é da semana passada, não sei quem diabos inventou essa mas lhe digo: dessa vez vai tudo pro papel, eu não quero nem saber das tuas desculpas e cortesias falsas, uma mijada fora do penico e vou assar teu rabo em fogo brando! – nem parecia o cordato e educado Brigadeiro, o homem estava vermelho como um pimentão e expelia fumaça em fortes baforadas junto com as palavras, que saíam literalmente fumegantes.

- Senhor, não entendo, eu...

- Ah, mas vai entender, eu te garanto que vai. Você pegue isso aqui: são as coordenadas GPS que delimitam sua área de atuação. Tudo o que eu preciso é sonhar que você ou qualquer caça do seu esquadrão saiu um caralhonésimo de grau delas e mesmo seus tataranetos irão se borrar só de ouvirem falar no que eu fiz com você em dois mil e picos! – entregou uma pasta fechada, dentro da qual haviam documentos e CDs lacrados. – Cumpra à risca suas ordens e vai se dar bem, invente de ‘tocar de ouvido’ uma vez só e se prepare para segurar o maior rojão da história...

- Senhor, eu realmente...

- Dispensado. Vou acompanhar o Esquadrão num dos biplaces e passar umas semanas com vocês lá. Deus o ajude, Mathias, se eu vir ou ouvir algo que eu não gostar.

- Sim senhor. Permissão para me retirar.

- Concedida. Fora!

Fervendo de raiva, o Coronel prestou continência, deu meia volta e se encaminhou para a porta. Do lado de fora o aguardava seu subcomandante, Tenente-Coronel Gerson Vittorio.

- Credo, que rápido, Coronel. E aí, o que vai ser, nós...?

- Vai pra puta que te pariu, Vittorio, não fala comigo agora, porra!

“Nossa, o que será que aconteceu lá?” – pensa o atônito subcomandante. Mas, sabiamente, caminha quieto ao lado do Coronel. Andam em silêncio, saem do prédio do comando e vão até o caça do Coronel Mathias, que deposita lá a pasta com as ordens. Fixa-a cuidadosamente ao lado do assento ejetor. Quando for voar, a colocará por dentro do macacão, o que causará algum desconforto mas, ocorra o que ocorrer, olhos estranhos só terão acesso ao conteúdo se o tirarem de seu cadáver, pois vivo não a entregará. Colocada a pasta, fecha o canopy e se volta para o sub, ainda ali, em respeitoso silêncio. Sente algum remorso pela brusquidão com que o tratou, homem de confiança e piloto habilidoso que era, não merecia isso.

- Tá, desculpa, cara, mas aquele velho corno chupador de pau me deixou doido. Tu imagina que o viado nem me deixou abrir a boca e já me encheu de desaforo, putaquipariu. Vamos tomar uma cerveja na cantina e te conto direito o que rolou...

- Sim senhor, com prazer, senhor! – assentiu o Tenente-Coronel Vittorio. A história deveria ser boa, não era costumeiro alguém pisar nos calos do Coronel Mathias e se sair bem dessa...

Arianne soluçava desconsoladamente. Não podia ser verdade, simplesmente não podia. Mas sua mãe lhe mostrara fotos e filmes feitos sigilosamente, onde Kurt e seu irmão Rudy, o querido Rudy, apareciam em cenas simplesmente grotescas perante sua alma nazista. Aquilo não podia acontecer, dois homens fazendo o que só um homem e uma mulher deveriam. Era crime, além de tudo. E o fervor apaixonado com que se abraçavam e beijavam, as palavras de amor que proferiam um ao outro, as conversas de mãos dadas. Vira cenas assim nas ruas da Alemanha e lhe haviam sido mostradas diretamente por Herr Friedrich, como exemplo da degradação a que a velha Vaterland (NDA: Pátria) vinha sendo submetida. Mas os seus, gente de Germania... E isto vinha de tempos, haviam fotos e filmes de um Rudy e um Kurt ainda adolescentes, tanto quanto de várias fases de seu crescimento e mesmo de agora, Rudy adulto e casado. Não era possível, Kurt, seu Kurt, o Super-Soldado do IV Reich, o garboso Oficial em farda de gala, o cavalheiro atencioso e gentil, de passos e gestos marciais, de olhar tímido e apaixonado, não era mais do que um mísero criminoso pederasta, junto com seu amado irmão, aquilo tinha que ser um pesadelo...

Frau Eisenkopf deixou a filha chorar à vontade. Não lhe agradava, chorava junto em sua alma, mas sabia que tinha de ser assim. E o gran finale ainda não chegara. Conhecia bem demais a filha. Esta se recuperaria e, com sua proverbial inteligência e capacidade argumentativa, acharia um jeito de tentar convencê-la de que era tudo por causa da vida espartana de Lang, sempre entre homens e armas, combates e marchas; uma mulher como ela o colocaria no rumo certo. Para isto a mãe guardara um último arquivo, que liquidaria o assunto embora também fosse abrir um abismo intransponível entre Arianne e seu irmão. Doía-lhe ter de fazer isso mas não queria para a filha a mesma vida infeliz que tinha para si, confortável mas sem amor nem carinho, porque teria de dividir seu homem com outro. Ela mesma dividia Otto com o que ele julgava uma missão sagrada – ela mesma achava pura tolice, poderiam viver confortavelmente onde quisessem e criar os filhos normalmente mas a isso os sonhos de grandeza de Otto Von Eisenkopf se sobrepunham sem que qualquer argumento o demovesse. Pois Frau Eisenkopf tinha uma rival muito maior do que um simples rapaz bissexual: sua rival era a própria Fênix, tão odiosa quão invencível...

Sim, Frau Eisenkopf, esposa amada do Segundo Führer e Grão-Mestre dos Cavaleiros Teutônicos, odiava a Fênix. Porque como poucos conhecia sua verdadeira face, e era uma face horrenda...

No laboratório, o interior do crânio de Wolfgang era minuciosamente examinado por sofisticados instrumentos não-invasivos. O mais proeminente neurologista de Germania, Doktor-Professor Lübeck, liderava os trabalhos.

- Mas é muito azar, o plasma se formou quase que exatamente no centro do cerebelo e matou milhões de neurônios no caminho. Não admira que seu coração e pulmões tivessem parado imediatamente...

- E agora, Herr Professor? Temos menos de uma hora para... – o médico-chefe da emergência olhava o tempo todo para o relógio.

- Você realmente se importa com as bravatas do imbecil do Reichsführer? Por favor, tire este relógio e o coloque numa gaveta, sim?

- Mas Herr Professor...

- Olhe, assim você não vai conseguir trabalhar. Seu problema é aquele bestalhão emproado? Espere um minuto...- voltou-se para o monitor:

- Operadora. – no mesmo instante apareceu uma mulher algo obesa e de aparência pouco agradável mas com uma voz surpreendentemente gentil.

- Às suas ordens, Herr Doktor.

- Preciso falar agora com o Reichsführer, pode fazer-me esta gentileza? – sorriu.

- Imediatamente, Herr Doktor. Segundos após, aparecia o rosto ansioso do mandatário.

- E então, ele...?

- Vou lhe dizer uma coisa apenas. Se alguém pode salvar este homem somos nós, compreende ao menos isso?

- Ora, eu...

- Então vou dar-lhe um conselho: um única ameaça ao meu pessoal e lhe deixo explicar pessoalmente ao Segundo Führer que, não podendo trabalhar em paz por sua causa, perdemos o paciente. Entregarei em mãos o meu relatório ao meu irmão, que o discutirá pessoalmente com ele e você sabe onde isso será feito e em presença de quem. Aliás, diria que seus dias de...

- Mas por Deus, Herr Professor, não quis...

- Pois tenha a bondade de continuar não querendo, sim? Aqui mando eu, não você!

- Mas o Segundo Führer estará aqui em menos de uma hora...

- Esta conversa, até onde sei, está sendo gravada como qualquer outra, não? Mostre-a e ele entenderá pois, ao contrário de você, está inteirado de todos os detalhes da Fênix. Assim, esperará o que tiver de esperar, já esperamos tanto mesmo que um pouco mais não fará diferença.

O Reichsführer, cenho carregado, replicou:

- Como queira, Professor, eu apenas...

- Para você é Herr Doktor-Professor Lübeck, sim? Ou é tão burro que não sabe mais quem eu sou?

Lívido de ódio, o Reichsführer pediu desculpas humildemente. Maldita a hora em que o irmão mais velho de um dos Quatro resolvera estudar medicina e, como sempre fora natural naquelas quatro famílias, logo se destacou pelas qualidades nada comuns, tendo se apaixonado tão profundamente pelo estudo que abrira mão de sua prerrogativa de primogênito. Sim, era para ele ser um Deles, e trocara todo aquele poder por um ridículo laboratório, desse modo o poderosíssimo caçula devia seu lugar na Kehlsteinhaus a ele, confrontá-lo seria suicídio. O monitor escureceu: o doutorzinho miserável desligara em sua cara...

- Bem, creio que agora você sabe que não precisa temer este pobre diabo. Vamos trabalhar, preciso de culturas múltiplas de neurônios originais dele mas de agora, além das antigas. Vamos consertar um por um os que tiverem conserto e substituir o restante por novos ou, onde for o caso, antigos.

- Herr Doktor-Professor, muitos ainda estão em análise nos laboratórios e vai ser difícil...

- Não se preocupe, requisite todo o material em meu nome. Se alguém quiser falar grosso, chame o idiota do Reichsführer e diga que é ordem minha. Ah, mande preparar acomodações e liberar salas extras no entorno daqui, há um grupo que chamei para ajudar, pode fazer isso por mim? Agora cada segundo conta, neurônios têm vida curta e são bem frágeis...

- Será feito, Herr Doktor-Professor!

- Coronel, espero sinceramente que esteja certo.

- Não há outro caminho, Judeu, ou é assim ou nunca entraremos lá.

- Mas um simples caminhão de coleta de lixo...

- É, mas entra lá e fica quase duas horas. Por que não colocam o lixo na rua para a coleta comum? Claro que fazem múltiplas triagens para ver se nada comprometedor escapou, homem! Ademais, você viu o relatório do Pajé, esse caminhão só trabalha para eles e leva a coleta direto para um incinerador...

- Pois é, e num prédio daquele tamanho não dava para ter um? Isso me cheira mal...

- Até dava, Freitas, mas ia chamar a atenção, uma ONG de preservação com uma chaminé fazendo uma fumaceira dos diabos. Não, o que eles fazem é o mais lógico. Detalhe: segundo o Pajé, o caminhão sai vazio da usina de dois em dois dias e volta cheio, você mesmo pôde comprovar isso pelas observações...

- Sim senhor, dois dias, duas horas, bem certinho...

- Bem, amanhã este caminhão não vai entrar vazio...

- Como estamos indo?

- Herr Doktor-Professor, as culturas estão sendo desenvolvidas e aplicadas imediatamente mas há o problema do tempo, não podemos correr, é cada neurônio em seu lugar exato ou teremos um grande problema aqui...

- Sem preocupações, Frau Professorin Haas, tempo não nos falta. O que tiver de ser adiado o será.

- Ótimo, Herr Doktor-Professor. Posso lhe garantir um prognóstico entre 97 e 99,9 por cento de recuperação, sem seqüelas maiores do que pequenos lapsos de memória, provavelmente em coisas de somenos importância, como brincadeiras de infância, algum animal de estimação, uma antiga namorada. Claro que nos primeiros momentos após despertar estará em completa confusão mas durará pouco, aliás, que genética fantástica tem este paciente: seu corpo drena e metaboliza corretamente os recursos que lhe inserimos como se fosse um bebê esfomeado, isso facilita muito o nosso trabalho. Os novos neurônios vão praticamente sozinhos para os devidos locais e começam quase que imediatamente a interagir...

- Sem querer me intrometer e lembrando o que falei antes, não deve se apressar, mas teria alguma estimativa? Não nego que estou muito curioso...

- Bem, ao ritmo atual acabaremos pela metade da madrugada, o resto é com ele. Pessoalmente, diria que estará desperto e consciente pela metade do dia, talvez até antes...

O mundo de Arianne praticamente desabara. Tentando argumentar com a mãe, esta lhe dissera que havia um último filme que desejava que ela assistisse com atenção: se após isso ainda pensasse da mesma forma, ela a apoiaria mesmo sabendo que a história acabaria mal. Esperançosa, Arianne acedera e vira. Rudy colocara uma espécie de moeda sobre a mesa, esta começara a piscar e se estabilizara numa cor clara. Sua mãe havia explicado que o objeto desativava qualquer instrumento de monitoração, ou melhor, quase isso. Haviam alguns que mandavam sons e imagens direto para os arquivos do Segundo Führer e estes não havia como desativar, nem mesmo Rudolph Eisenkopf sabia que todo instrumento de codificação/decodificação/desativação era projetado e programado sempre com a mesma precaução: o Segundo Führer tudo pode, tudo sabe e tudo vê. Assim fora produzido aquele filme. Frau Eisenkopf repassara várias vezes uma parte, a cada vez que o fazia provocando maior sofrimento em Arianne, a parte em que ela era mencionada por Lang. Ele parecia referir-se a ela como uma espécie de animal de estimação, a metade de algo, isso era intolerável. Então este era o verdadeiro Kurt Lang. Canalha, pederasta, criminoso, sujo...

Daí a ser convencida a pelo menos conhecer primeiro o estranho antes de rejeitá-lo sumariamente foi apenas questão de tempo e habilidade.

Afeganistão. Vendo que seus tanques haviam parado de explodir sem motivo aparente, o Coronel Bender comandou uma feroz carga contra os afegãos entrincheirados no alto do morro. A sua infantaria, desmontada e lutando no sopé, estava nas últimas, ou a apoiava decisivamente agora ou seriam derrotados pelos insurgentes. Ordenando aos obuseiros autopropulsados M-109A6 Paladin que disparassem à maior cadência e com o máximo de precisão possível, atacou com ímpeto irresistível. Seu Abrams havia parado quase que exatamente onde estava no momento da hecatombe mas nada acontecera, exceto por um foguete de RPG-7 que passara voando metros acima e explodira inofensivamente bem atrás. A batalha agora fora curta e feroz: o foco de resistência havia sido completamente eliminado. Os poucos prisioneiros, todos feridos, pareciam nada saber das misteriosas armas que haviam dizimado sua FT superequipada. Um deles havia falado apenas numa interferência direta de Alá que, um dia antes, fizera o mesmo a um jato de combate. O avião simplesmente pegara fogo e explodira, mais ou menos como acontecera a várias VTRs do próprio Coronel Bender. Após assegurar-se dos arredores, mandando várias patrulhas enquanto equipes recolhiam os mortos e feridos, foi chamado por um suboficial para ver algo inusitado: um cadáver de um Tenente.

- Mais um Tenente morto, o que tem de extraordinário nisso? Pena, era um bom Oficial...

O paramédico falou, pacientemente:

- Senhor, nunca vi nem ouvi falar de um ferimento assim.

- Ora, está claro que foi atingido por um RPG ou termobárica, sabemos que eles...

- Aí é que está, senhor: já vi muitos ferimentos, inclusive desses tipos de armas e mesmo granadas fosfóricas mas assim nunca...

- O que quer dizer com ‘assim’?

- É como se tivessem focado alguma forma de energia muito quente nele e isso num ponto específico. Veja, senhor, tudo está cauterizado num diâmetro de umas doze polegadas com umas oito de profundidade. Fora isso, intacto. Se fosse uma termobárica o corpo inteiro teria sido incinerado, se fosse fosfórica haveriam marcas de explosão ao redor do ponto onde foi encontrado e as queimaduras teriam sido muito mais extensas e desparelhas, um RPG o teria despedaçado...

- O que quer dizer, afinal?

- Simples, senhor: este homem foi morto por alguém que dispõe de uma arma inacreditavelmente poderosa, semelhante aos super-lasers que estamos testando mas suficientemente pequena e discreta no disparo para nenhum dos nossos sensores poder detectá-la, até porque...

- ...porque não procurávamos nem esperávamos por nada assim. Correto. Mas isso ainda não explica o que aconteceu aos veículos e aeronaves nem como eles nos atacaram daquele jeito e sumiram.

- Bem, senhor, podem estar por aí ainda, nos observando...

Isso gelou o sangue do Coronel. Podia estar neste exato momento na mira de uma arma terrível daquelas. Pensou e concluiu em voz alta:

- Não. Não houve qualquer interferência com nosso segundo ataque, foi só entre nós e os terroristas mesmo. Quem quer que tenha feito isso, deveria estar apenas testando suas armas, tendo se evadido logo a seguir. Sim, deve haver mais de um tipo, uma menor que acaba com a Infantaria e outra maior, que acaba com blindados e aeronaves. Fico pensando é quem: russos, chineses, israelenses, quem, por Deus?

Na sala do Reichsführer Otto Von Eisenkopf esbravejava:

- Mas como você é idiota, homem! Só um completo ignorante não levaria em conta que um homem de tal nível e altamente treinado em operações especiais tentaria alguma coisa. Você deveria ter destacado ao menos um grupo de elite completo para acompanhá-lo de perto o tempo todo, uns dez Einsatze desarmados e cuidadosamente escolhidos e instruídos o teriam mantido na linha, mesmo que ele tentasse algo seria logo imobilizado...

- Mil perdões, Mein Führer, não podia imaginar que...

-...e não satisfeito com isto, ainda tenta afrontar o próprio irmão mais velho de um de meus pares, atrapalhando-o quando a sua própria alma está com a Fênix, ele preferiria morrer do que perder um paciente; este então, ele de bom grado daria sua vida pela dele...

O Reichsführer agora se queda silente. O Segundo Führer pensa. Então fala para o monitor:

- Operadora!

- Jawohl, mein führer!

- Pergunte a Herr Doktor-Professor Lübeck se ele poderia me atender por um minuto.

Instantes depois aparece o médico, sorridente:

- Otto, que prazer vê-lo! Temos que marcar alguma coisa.

- Homem, ainda nem vi a minha mulher e filha, esta situação me pegou completamente desprevenido...

- Pois vá para casa, aqui está tudo sob controle.

- Então..?

- Sim, amanhã pelo meio-dia, no máximo pelo meio da tarde lhe entrego o rapaz novo em folha...- seu sorriso se alargou.

- Mas o Baile de gala é justamente amanhã à noite...

- Não se preocupe, eu mesmo danço a valsa com ele, se isso o fizer relaxar, kamerad. – caiu na risada. O Reichsführer jamais vira o doutor sequer sorrir de leve. Claro, ele devia guardar seu humor para os iguais, no fundo os nobres sempre foram os mesmos esnobes de sempre. Isso teria um fim quando raiasse o Novo Mundo, regido pela austeridade nazista, onde o que importava era a posição no Partido, não besteiras de tradições heráldicas e sangue azul. Sim, a Fênix Negra engoliria seus criadores originais, corruptos por sua natureza desigual, ainda que arianos puros. Tudo o que precisava era de tempo, tempo para que os planos vingassem, tempo para que a terra estivesse coberta apenas pelo povo alemão, então apenas um pequeno e especialíssimo grupo Einsatz seria sutilmente introduzido na Casa da Montanha e, eliminados os malditos e obsoletos Teutônicos, se iniciaria o Reich Eterno, sob a égide das SS, tendo ele como Supremo Führer...

O caminhão de lixo passou rigorosamente no horário. Apenas o motorista na cabine, um velho louro e corpulento, com cara de poucos amigos. Seu itinerário já havia sido estudado a fundo pelos RATOS. Um sinal de trânsito em seu caminho havia recebido uma ligeira modificação: iria abrir e fechar por comandos de um pequeno controle remoto empunhado pelo Coronel Bolovo. Ao chegar próximo ao sinal, o motorista viu o sinal ficar amarelo, logo depois vermelho. Maldita cidade, já com embromações àquela hora da manhã...

Não viu um grupo de homens com uniformes de combate completos embarcando na parte de trás, onde ficavam o misturador e as lâminas de trituração nem eles fizeram qualquer ruído ao passarem para a parte interna. Ao entrar o último, o controle foi acionado e o sinal abriu. O caminhão seguiu em frente. Acelerou um pouco em seu percurso, atrasos não eram bem tolerados ‘lá’. Chegando ao posto de controle, foi reconhecido por um dos guardas que falou, em alemão:

- E então, Johann, como estão as varizes?

- A merda de sempre. Ah, vá se foder!

O guarda riu e acionou a abertura da cancela. Outros dois apenas olhavam. Um perguntou:-

- Não vamos revistar a carroceria?

- Do quê? Do velho Johann? Na entrada? Cara, você não sabe o que esse velho bêbado desgraçado é capaz de aprontar, já basta o que ele resmunga quando revistamos na saída, aí sim, não tem jeito...

- Só perguntei...

-Tudo bem, você é novo aqui, recém chegou de Germania, vai ver que aqui fora as coisas andam de um modo um pouco diferente...

O caminhão rodou para dentro do prédio imenso. Os homens notaram que fazia curvas e mais curvas, depois entrou em uma espécie de elevador e começou a descer. O Coronel Bolovo espiou para fora e falou baixinho:

- Tudo bem, pessoal, estamos dentro. Quando essa coisa parar, saltamos. Pelo que vejo, temos muito o que subir, ninguém me tira da cabeça que o que nos interessa está no último andar...

Os homens checaram as armas. Pareciam AKs mas lhes fora explicado ainda no Mato Grosso que eram fuzis AN-94SM, em 5,56mm com cano poligonal e balas de ponta de tungstênio com revestimento de teflon, uma burst de dois tiros a menos de setenta metros perfuraria qualquer colete balístico conhecido e causaria sérios ferimentos em quem o estivesse vestindo. Provavelmente mataria o infeliz. Estranharam também as quatro longas granadas de mão com listras avermelhadas que o Coronel conduzia, presas ao peito do colete tático. Apenas ele as usava. Haviam argumentado sobre sua estranheza com aquele material, aparentemente todo russo, ao que o Coronel redargüira com simplicidade: “o governo não pode ter nada com isso, para todos os efeitos somos terroristas agora”...

Isso satisfizera os homens, afinal, tinha lógica: cada um carregava cinco quilos de C-4 e vários detonadores remotos...

O caminhão parou. Já saindo, o Coronel Bolovo:

- É agora, senhores. Ou resolvemos aqui essa história voltaremos como carga para o incinerador.

E saltou, arma em punho.