A chave (miniconto)
A chave abre a porta. O aroma penetra nas narinas, e, por conseqüência, lembranças retornam como vórtices cinematográficos, e inundam a alma. O retorno foi gratificante. No forno a lenha o bolo de fubá começa a dourar. Na chapa o café entrelaça os odores pelo ar. A serpentina passa pelo braseiro, a água na pia e no chuveiro sai quente. Na mesa posta o pão de torresmo e o de lingüiça, ainda quente espera a manteiga. A cozinha fica movimentada. Primeiro, as crianças esfomeadas acocorocam ao redor da mesa. O falatório termina. O pai olha para todos agradece a compreensão e carinho, enquanto esteve adoentado. Por meses o medo foi seu maior algoz. Medo de não conseguir discernir na prancheta; o lápis, a borracha, a caneta de nanquim, a régua, o papel vegetal. Medo de a linha reta sair curva e de a linha curva sair reta. A noite é interminável. Na madrugada quando Rosa o acaricia e o chama para dormir a desdenha. Pensa o quanto ela foi bela e sedutora. Agora, com aquela camisola vermelha tinha ares de matrona. Ela joga um beijo. Ele o repele com uma careta de nojo. O sorriso que rodopia pelos lábios da mulher não o faz feliz. Ele a quer longe. A mãe dos seus filhos perdeu o valor. Como isso pode acontecer? O seu pai um dia também enjoa da sua mãe e foi embora. Leva tudo que tinha de valor. O abandono torna a família assustada, desorientada, pobre. Como pode o seu pai estar agora refletido em suas atitudes? A resposta veio como um soco na nuca. Ele não é o pai. O pai não é ele! Procura ajuda com especialistas. Valeu à pena acreditar. Valeu investir no amor da família. A chave abre a porta... A consciência toma o lugar do medo. Rosa lhe estende a xícara. A acaricia com os olhos. Sorve um gole de café forte, adocicado. O líquido quente desce pela garganta, refrigera a alma.