Era sempre o primeiro a chegar na repartição, nunca faltava ou se atrasava sem que houvesse justificativa extrema. Antes de iniciar o serviço, que consistia no ato mecânico de protocolar processos e contratos, preparava o café para os colegas.
Querido por todos, esforçava-se por ser aceito mais pelo seu espírito prestativo e afável do que pela agilidade nas tarefas que lhe cabiam. No início era feliz sendo mais dos outros do que de si mesmo.
A escada entre a superfície e os porões obscuros da sua alma era composta por degraus finos e traiçoeiros.
Não tinha a compulsão de falar além do necessário, era introspectivo na maior parte do tempo, desconfiava dos olhares furtivos que, na sua imaginação, buscavam desvendá-lo, monitorá-lo.
Lutava todos os dias contra a sua fobia social, sua repulsa por gente. Era um misantropo sentenciado a conviver com o que lhe causava pânico.
Enojava-se de si próprio quando se consentia levar pelos instintos. Exercitava-se para ser frio e racional, sempre! Ceder às emoções fazia com que se sentisse um animal condicionado ao seu lado mais primitivo. Não tolerava agir como um ser indomado, distante do autocontrole.
Com o passar dos anos, a rotina estressante conseguia quebrar ocasionalmente a sua forçada concentração. O trabalho transformou-se numa pena que precisava cumprir diariamente e indefinidamente. Seu chefe, seus colegas, um simples servente, todos lhe pareciam carcereiros impassíveis às suas dores. Sonho e flagelo concentravam-se no desejo íntimo de se libertar.
No entanto, sua tormenta continuava a camuflar-se sob o aspecto solícito e sorridente pelo qual ele tratava seus pares. Quem o via, jamais desconfiava que seu peito abrigava uma bomba-relógio, que cada sorriso contraído era contrariado e indicava os ponteiros dando mais um passo em direção à explosão iminente.
Mas havia um segredo que ele guardava dentro de uma mesa-de-cabeceira trancada a cadeado. À noite, antes de dormir, era naquela gaveta que conferia o bálsamo e extravasava a angústia oprimida; daquele criado-mudo extraía o anestésico para a sua ansiedade. Seu segredo era a promessa da sua libertação.
Não acreditava na busca da felicidade tão proclamada no século em que vivia, enxergava o amor como mera ilusão biológica. Sua única crença era a liberdade. Porém, sem falhar, acorrentava-se à mesa do escritório dia após dia. Rebelava-se contra a raiva que o acometia, mas ressentia-se da falta de coragem, sentia-se um escravo.
Costumava almoçar duas vezes por semana com a equipe da qual fazia parte. Certa vez, durante uma conversa descontraída do grupo, cortou o assunto para afirmar que sabia o dia de sua morte. Atraiu os olhares constrangidos dos seus parceiros para logo depois os ouvir desatarem em sonoras gargalhadas.
- Eles não acreditam no livre-arbítrio! – Pensava. – São ovelhas conduzidas por um pastor metafísico.
O romper interminável dos dias sempre fazia renascer o ódio, o câncer contra o qual peleava e que desejava lhe tomar os sentidos. A submissão ao chefe o sufocava, a competência impecável dos colegas o ofendia, o expediente diário o massacrava. Olhava para sua vida e não via nada, tudo era um vácuo inútil, um imenso buraco negro que o sugava lentamente, sem trégua.
Sua fé era o segredo trancafiado no criado-mudo, ele abria e vislumbrava as chaves que o livrariam dos grilhões da opressão. Mas lhe faltava cumprir algumas etapas para que atingisse a certeza jubilosa de quem decide.
Morava na Tijuca e trabalhava em Botafogo, seu transporte era o ônibus, sua claustrofobia cada vez mais acentuada não lhe permitia embarcar no metrô. Ademais, gostava de apreciar os cenários que se descortinavam pelo trajeto.
- A morte é cinza! – Foi o que definiu após dois anos observando a miséria encardida em cinza-escuro proliferar pelas calçadas.
Esqueceu-se do dia exato em que pôs em prática o seu plano macabro, mas lembrava que havia sido durante a noite. As razões ele sabia bem: sucumbiu à pressão, abriu-se para a fúria que represava.
A primeira a morrer foi sua colega de baia, envenenada pelo café que ele mesmo preparava todas as manhãs, ao servi-la decretou seu fim. Depois dela, um a um dos quatro colegas restantes tombaram: o primeiro foi apunhalado no elevador da empresa, o segundo morto a tiros na porta de casa, a terceira foi estrangulada enquanto dormia e o último atropelado numa rua escura da Glória.
Cinco assassinatos e um único autor.
Mas restava o chefe e para este ele havia determinado um ritual elaborado, cruel, capaz de cicatrizar as feridas de todas as humilhações sofridas sob o seu julgo. Como os dois costumavam atravessar o expediente em longas horas extras, escolheu consumar o intento quando todos tivessem saído. Era seu hábito levar um copo de água para a sala do gerente, que ficava colada à sua mesa. Não demorou muito para que o narcótico misturado ao líquido mostrasse efeito, o velho chefe desmaiou poucos minutos após o primeiro gole.
Começou então sua planejada sessão de horrores. Fincou a estaca pontiaguda e afiada no centro do peito do homem; continuando o rito, serrou-lhe todos os membros e os espalhou pelo departamento. Saciado, considerou sua vingança concluída.
Remexeu mais fundo na gaveta da sua mesa-de-cabeceira e sacou um minúsculo frasco contendo uns grânulos acinzentados, um exterminador de ratos comprado há semanas num camelô do Largo da Carioca, derramou o conteúdo num copo com vinho e bebeu...
No dia seguinte, o chefe e todos os seus colegas de escritório surpreenderam-se com a notícia do suicídio e ficaram ainda mais estarrecidos quando souberam que foram assassinados numa ficção detalhadamente escrita nas páginas de um caderno do suicida.
A polícia jamais descobriu a motivação do ato, tampouco compreendeu a fantasia dos assassinatos e menos ainda o título da obra mórbida: “A morte é cinza”.
Querido por todos, esforçava-se por ser aceito mais pelo seu espírito prestativo e afável do que pela agilidade nas tarefas que lhe cabiam. No início era feliz sendo mais dos outros do que de si mesmo.
A escada entre a superfície e os porões obscuros da sua alma era composta por degraus finos e traiçoeiros.
Não tinha a compulsão de falar além do necessário, era introspectivo na maior parte do tempo, desconfiava dos olhares furtivos que, na sua imaginação, buscavam desvendá-lo, monitorá-lo.
Lutava todos os dias contra a sua fobia social, sua repulsa por gente. Era um misantropo sentenciado a conviver com o que lhe causava pânico.
Enojava-se de si próprio quando se consentia levar pelos instintos. Exercitava-se para ser frio e racional, sempre! Ceder às emoções fazia com que se sentisse um animal condicionado ao seu lado mais primitivo. Não tolerava agir como um ser indomado, distante do autocontrole.
Com o passar dos anos, a rotina estressante conseguia quebrar ocasionalmente a sua forçada concentração. O trabalho transformou-se numa pena que precisava cumprir diariamente e indefinidamente. Seu chefe, seus colegas, um simples servente, todos lhe pareciam carcereiros impassíveis às suas dores. Sonho e flagelo concentravam-se no desejo íntimo de se libertar.
No entanto, sua tormenta continuava a camuflar-se sob o aspecto solícito e sorridente pelo qual ele tratava seus pares. Quem o via, jamais desconfiava que seu peito abrigava uma bomba-relógio, que cada sorriso contraído era contrariado e indicava os ponteiros dando mais um passo em direção à explosão iminente.
Mas havia um segredo que ele guardava dentro de uma mesa-de-cabeceira trancada a cadeado. À noite, antes de dormir, era naquela gaveta que conferia o bálsamo e extravasava a angústia oprimida; daquele criado-mudo extraía o anestésico para a sua ansiedade. Seu segredo era a promessa da sua libertação.
Não acreditava na busca da felicidade tão proclamada no século em que vivia, enxergava o amor como mera ilusão biológica. Sua única crença era a liberdade. Porém, sem falhar, acorrentava-se à mesa do escritório dia após dia. Rebelava-se contra a raiva que o acometia, mas ressentia-se da falta de coragem, sentia-se um escravo.
Costumava almoçar duas vezes por semana com a equipe da qual fazia parte. Certa vez, durante uma conversa descontraída do grupo, cortou o assunto para afirmar que sabia o dia de sua morte. Atraiu os olhares constrangidos dos seus parceiros para logo depois os ouvir desatarem em sonoras gargalhadas.
- Eles não acreditam no livre-arbítrio! – Pensava. – São ovelhas conduzidas por um pastor metafísico.
O romper interminável dos dias sempre fazia renascer o ódio, o câncer contra o qual peleava e que desejava lhe tomar os sentidos. A submissão ao chefe o sufocava, a competência impecável dos colegas o ofendia, o expediente diário o massacrava. Olhava para sua vida e não via nada, tudo era um vácuo inútil, um imenso buraco negro que o sugava lentamente, sem trégua.
Sua fé era o segredo trancafiado no criado-mudo, ele abria e vislumbrava as chaves que o livrariam dos grilhões da opressão. Mas lhe faltava cumprir algumas etapas para que atingisse a certeza jubilosa de quem decide.
Morava na Tijuca e trabalhava em Botafogo, seu transporte era o ônibus, sua claustrofobia cada vez mais acentuada não lhe permitia embarcar no metrô. Ademais, gostava de apreciar os cenários que se descortinavam pelo trajeto.
- A morte é cinza! – Foi o que definiu após dois anos observando a miséria encardida em cinza-escuro proliferar pelas calçadas.
Esqueceu-se do dia exato em que pôs em prática o seu plano macabro, mas lembrava que havia sido durante a noite. As razões ele sabia bem: sucumbiu à pressão, abriu-se para a fúria que represava.
A primeira a morrer foi sua colega de baia, envenenada pelo café que ele mesmo preparava todas as manhãs, ao servi-la decretou seu fim. Depois dela, um a um dos quatro colegas restantes tombaram: o primeiro foi apunhalado no elevador da empresa, o segundo morto a tiros na porta de casa, a terceira foi estrangulada enquanto dormia e o último atropelado numa rua escura da Glória.
Cinco assassinatos e um único autor.
Mas restava o chefe e para este ele havia determinado um ritual elaborado, cruel, capaz de cicatrizar as feridas de todas as humilhações sofridas sob o seu julgo. Como os dois costumavam atravessar o expediente em longas horas extras, escolheu consumar o intento quando todos tivessem saído. Era seu hábito levar um copo de água para a sala do gerente, que ficava colada à sua mesa. Não demorou muito para que o narcótico misturado ao líquido mostrasse efeito, o velho chefe desmaiou poucos minutos após o primeiro gole.
Começou então sua planejada sessão de horrores. Fincou a estaca pontiaguda e afiada no centro do peito do homem; continuando o rito, serrou-lhe todos os membros e os espalhou pelo departamento. Saciado, considerou sua vingança concluída.
Remexeu mais fundo na gaveta da sua mesa-de-cabeceira e sacou um minúsculo frasco contendo uns grânulos acinzentados, um exterminador de ratos comprado há semanas num camelô do Largo da Carioca, derramou o conteúdo num copo com vinho e bebeu...
No dia seguinte, o chefe e todos os seus colegas de escritório surpreenderam-se com a notícia do suicídio e ficaram ainda mais estarrecidos quando souberam que foram assassinados numa ficção detalhadamente escrita nas páginas de um caderno do suicida.
A polícia jamais descobriu a motivação do ato, tampouco compreendeu a fantasia dos assassinatos e menos ainda o título da obra mórbida: “A morte é cinza”.