O Túmulo

- Preparada para um dia inteiro de diversão leviana e preguiça quase mórbida?

- Talvez, se você tiver trazido aquilo.

Harry abriu um sorriso e tirou de dentro da cesta um embrulho de padaria.

- E você achou que eu não traria os meus deliciosos croissants, Millie?

Millie ergueu os braços, agradecendo aos céus, e deu um gritinho de alegria.

- Ai, meu Deus, o que seria de mim sem esses croissants?

- Eu sei, eu sei. Você seria capaz de me atacar como se fosse uma canibal. Eu sei que seria.

- Harry, eu sou louca por essas coisas, você consegue entender isso?

- Claro que entendo. Não estou alimentando esse vício?

- Não é vício. É predileção. Muitas civilizações antigas tinham preferências, sabia?

- Claro que sabia, boneca. Bem como também sei que os serial killers desenvolvem predileções por retalhos do corpo humano. É tudo uma questão de progresso. Você começa por uma coxinha de galinha, depois passa para um croissant e em seguida estará cobiçando um pedaço da batata da perna de alguém. A propósito, reparou que eu engordei uns quilos nesses dois últimos meses? Não estou com um aspecto tão suculento, estou? Carne magra é muito mais saborosa, não acha?

- Pra falar a verdade, você parece bem no ponto, Harry.

- Vai me dar uma mordida, então?

- Mais tarde. - disse Millie com os olhos na direção dos croissants e explicou em seguida: - Há muitas testemunhas aqui.

- Muito bem – disse Harry, esticando-se ao lado da toalha, alisando a barriga cheia e fechando os olhos. – Estou cheio e acho que a primeira parte da diversão leviana já foi. Está tão farta quanto eu, meu bem?

Millie ainda terminava um pedacinho de massa folhada. Queria fazer aquele pedacinho do céu durar o máximo de tempo possível dentro de sua boca.

- Ei, Mi, os mosquitos estão fazendo festa na sua mão, não está vendo?

Então, ela engoliu o resto e olhou para dentro da cesta. Pegou uma maçã envolta em filme plástico.

- O que vamos fazer agora, Harry? – ela tirou o plástico e passou um guardanapo pela fruta, polindo-a.

- Vamos tirar um cochilo. Depois a gente come mais alguma e dá uma volta por esse bosque aí.

Millie deu uma mordida na maçã e olhou distraída para o bosque. A sombra sob as árvores agora era maior. Pelo solo, no meio de arbustos e avançando por entre as gramíneas, pequenos ramos de uma flor branca e delicada cresciam graciosamente.

Harry estendeu um braço preguiçoso cobrindo os olhos e caiu no sono. Efeito da comida, certamente. Millie, no entanto, ficou admirando aquela flor, cujos tentáculos enganchavam-se em tudo que encontravam pelo caminho, nas pedras, nos caules das árvores e arbustos, até no gradil do parque.

Aos poucos os sons ao redor foram mudando, eram as pessoas cansadas e enfastiadas que desistiam de continuar ali e queriam voltar para casa. Mas, uma minoria, como Harry e Millie, estava disposta a permanecer espalhada pelo parque, atirando pedras no lago e conversando qualquer bobagem; essas pessoas levavam muito a sério o espírito da preguiça domingueira.

Millie remexeu-se enquanto dormia. Havia se deitado sobre a grama e sentia as folhas roçando em seu nariz. Rolou para um lado e teve a péssima sensação de que estava sendo picada por algum bicho, bem nas costas da mão.

- Aiai! – exclamou ela e sentou-se massageando a pele, logo notou que havia se virado sobre um galhinho espinhoso – Só pode ser brincadeira. Como eu não vi essa praga antes?

Mas ela vira sim. Era um dos ramos da mesma flor branca que saía da sombra do bosque.

Examinou a mão e encontrou uma carreira de furinhos dos quais brotavam pequenas gotas vermelhas.

- Harry, acorde, você deitou em cima desses espinhos.

Harry despertou lentamente e começou a coçar insistentemente os olhos para afastar o sono.

- O que você disse, Mi?

- A gente está sentado em cima dessa plantinha nervosa. Olhe só o que aconteceu com a minha mão.

Harry franziu a testa para os furinhos na mão de Millie. Mas ele não havia se deitado sobre os espinhos. O que fora uma sorte e tanto já que havia uma porção de focos da planta crescendo em volta.

- Escuta, Millie, essas plantas por acaso acabaram de nascer assim do nada? Eu não as tinha visto antes.

Millie pegava um guardanapo para limpar o sangue que saía dos arranhões e dos furos.

- Também não reparei. Fui ver agora quando acordei. Ai, não para de sair sangue.

- Deixa eu ver. Vamos lavar com água gelada.

Harry pegou uma garrafinha embaçada de água mineral e despejou o líquido cristalino sobre as costas da mão machucada. Não parecia ser sério. Eram só alguns arranhões, pelo amor de Deus, não devia sair tanto sangue! Vai saber se não estava infeccionando...

- Mantenha o papel apertado aí, Mi. Assim. Vou guardar as coisas e a gente vai para casa.

- Não, Harry. Vamos ficar mais um pouco, ainda está muito cedo.

- E se isso for grave? Pode ser que a planta seja venenosa.

- Ah, para com isso! Vamos só dar uma volta ali no bosque. Quero visitar o memorial antigo e ver se as pessoas deixam mesmo bugigangas em cima dele.

- Isso é bobagem. Podemos voltar outro dia. Amanhã, por exemplo.

- Nós já estamos aqui, Harry, e não vai demorar muito. Só mais uma horinha; olha quanta gente está se divertindo, entrando e saindo do meio das árvores.

Harry bufou ante a teimosia de Millie. Conhecia-a tão bem que tinha certeza de que se fossem antes de ela ver aquele monte de pedras à toa no meio do mato ele nunca mais teria sossego. A mão dela podia até cair depois, o que seria trágico, mas no momento presente a curiosidade dela exigia ser satisfeita.

- OK, Millie. Mas só uma olhadinha rápida.

- Está certo.

Millie apertava o guardanapo sobre a mão, como Harry havia pedido, e ele viu, surpreso, a superfície branca do papel ficando vermelha. Seria muito bom se eles fossem direto para casa, aquilo não parecia normal.

Depois de guardar as coisas dentro do carro, Harry voltou para o parque com um kit de curativos. Sua intenção era dar uma limpadela na mão machucada de Millie e envolvê-la com gaze até que, quando voltassem, pudessem ir ao médico. Intenção impossível de ser executada uma vez que a doida tinha sumido do lugar onde ele a deixara.

Sacudindo a caixinha do kit na mão e coçando a cabeça irritadamente, lá foi Harry em direção ao bendito bosque, pois tinha uma leve suspeita de que aquele fora o destino tomado por Millie.

Estava escuro sob as árvores e isso não intimidava as pessoas que passeavam por ali. Faixas de luz solar cortavam a penumbra, a brisa fazia essas faixas mudarem de lugar à medida que os galhos carregados de folhas balançavam. As cascas grossas de algumas árvores traziam mensagens entalhadas, assim como iniciais impressas dentro de coraçõezinhos tortos.

Harry procurava de um lado para o outro a sua Millie. Parecia que se passara um tempão desde que entrara ali e não havia nem sinal da mulher. Um grupinho compacto de adolescentes cruzou seu caminho e ele não resistiu em perguntar:

- Com licença, por acaso vocês não viram uma moça usando uma blusa azul clara, loira, andando sozinha por aqui, viram?

Os adolescentes apontaram para o kit na mão dele: - Olha, moço, a gente viu sim e a mão dela ‘tava bem empapada de sangue. A gente até perguntou se tinha sido algum cachorro que mordeu, mas ela disse que não e foi embora, lá para aquele lado. Eu acho que ela foi ver o monte de pedras. Faz uns cinco minutos, isso.

Cinco minutos? Puxa vida, o tempo para quando a gente não está se divertindo.

- Obrigado, gente.

Millie chegara sozinha ao memorial, meio dormindo, aparentemente. A mão envolta no guardanapo estava sangrando sem parar, mas ela não se incomodava. Parecia estar vendo uma coisa muito interessante no monte de pedras empilhadas cuidadosamente a sua frente, bem no meio daquela clareira. O ar permanecia parado, frio e nenhum ruído podia ser percebido; era provável que por ali não houvesse um animalzinho sequer. No entanto, havia explosões de moitas de flores brancas crescendo sobre a terra coberta de folhas mortas e entre os vãos das pedras cobertas de musgo.

O mais curioso era que as pessoas haviam se mandado dali quase ao mesmo tempo em que ela acabava de chegar. Talvez elas achassem que fosse chover dentro de pouco tempo, talvez houvessem se lembrado que esqueceram o forno ligado. Fosse o que fosse, todas elas haviam se dado conta de que não queriam mais ficar perdendo tempo olhando o memorial.

Enquanto Harry não encontrava Millie, ela estava parada e alheia, deixando seu sangue gotejar sobre as florzinhas, tingindo-as de um vermelho doentio e enjoativo. Podia-se ver, pela ausência de vivacidade em seus olhos que ela não estava nada normal. Podia-se chegar à mesma conclusão observando como ela inclinava a cabeça para o lado para ouvir sons que ninguém mais ouviria. Pelo menos, por hoje.

Harry, ofegante, suado e extremamente aflito, perdera-se bonito entre aquelas árvores. Estava danado consigo mesmo. Como fora tão distraído? Não passara por ali antes? Afinal de contas, quantas vezes antes não fizera o trajeto conhecido até aquela droga de memorial? E por que aquela maluca resolvera se enfiar no mato logo hoje? Logo hoje que ele não se lembrava nem a pau onde ficava o caminho do negócio?!

Uma criatura dotada de um supersentido, capaz de escutar pensamentos ou mesmo vozes sobrenaturais, que passasse por ali naquele momento, se arrepiaria toda ao deparar-se com a pobre Millie, que ia se deixando desmoronar de joelhos no solo pedregoso. Essa criatura ouviria as palavras que estavam sendo sussurradas nos pobres ouvidos de Millie e trataria de vazar rapidinho dali, antes que a coisa sob a terra resolvesse dar o ar da sua desgraça, pois se só a voz fazia a mulher tremer daquele jeito, imagine você o que o resto da coisa seria capaz de provocar.

- Infecto – murmurou Millie, os olhos cegos -, venenoso e podre.

Ela puxou o ar para dentro dos pulmões como se ele fosse feito de ferro. E continuou.

- Deslizando sobre ossos. Sedento de sangue fresco. Tão grande... tão inchado.

Era possível que o que ela descrevia estivesse precisamente sob aquelas pedras velhas, não era?

Era possível que seu sangue estivesse reavivando um mal antigo, sepultado há milênios atrás debaixo de uma camada grossa de terra e de uma camada ainda mais grossa de feitiçaria, não era?

Sendo isso possível, aquele devia ser um túmulo e não um memorial, como todo o mundo imaginava.

- Rastejando no escuro, ele está. Rastejando como um verme.

Estava escuro. Harry cria que já era tarde. Umas cinco horas, sua mente dizia. A sombra das árvores se estendera como betume e ele tinha medo do que aconteceria se alguém acendesse uma luz.

Você está totalmente perdido, seu idiota. E por que está carregando esse kit, você não está ferido. E que raios está procurando nessa mata? Ficou maluco? Dê meia volta e vá embora!

Harry para, coça a cabeça sem saber o que fazer, de repente sente que não quer mais brincar de caça ao tesouro. Quer ir embora.

Mas...

- Eu preciso continuar. Preciso.

Então, Harry continuou. E depois de um tempo, durante o qual pareceu vagar a esmo no meio das sombras, avistou uma chama fria adiante. Ele correu, impressionado. Na metade do caminho, conseguiu ver que a chama fria tratava-se de uma camiseta azul, quase branca, que vestia uma moça. E a moça jazia estendida sobre o monte de pedras, pálida que nem cera.

Harry abaixou-se para tocá-la e quando viu a trilha de sangue sobre as flores, caiu para trás, ofegando como um cachorro. Os olhos da moça estavam abertos, fitando o musgo.

Ele nunca mais gritaria como dessa vez e não é a visão do cadáver que o apavora, mas sim o movimento que sente, sob a terra. E aquelas malditas flores, por que o estão espetando tanto?

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 16/09/2009
Código do texto: T1813165
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