Memórias de uma noite de chuva

Parte I

Eta, chuvinha boa! Pra você que tá no quentinho da cama, curtindo as melhores da madruga na Difusora, delicie-se com essa pérola de Cascatinha e Inhana.

Saudade, palavra triste

Quando se perde um grande amor

O rádio ligado, som abafado típico de rádio AM era interrompido pelos trovões e pelo vento forte, naquela noite de outono. Ele havia colocado o despertador para tocar as 3:30. Ainda faltavam alguns minutos para que o relógio com dois grandes sinos de metal quebrasse o silêncio da noite com seu barulho estridente. Mas Zinho já estava acordado. Tinha um compromisso àquela madrugada, as 3:43, precisamente: cavar no fundo do quintal da casa que pertencera aos seus antepassados, hoje um casarão decadente e abandonado..

Na estrada longa da vida

eu vou chorando a minha dor

Sem esperar o toque do despertador, empurrou as cobertas longe, levantando-se num salto e procurando as botas largadas casualmente no chão do quarto rústico. A chuva caia forte, sem dar trégua. Zinho encheu a velha caneca esmaltada de café forte enquanto espiava pela vidraça a noite molhada e fria, com ventos e trovões desaconselhando os aventureiros a desafia-la. Apesar do temor, ele não ia se intimidar. O momento chegara. Tinha que ser naquela madrugada, as 3:43.

Igual uma borboleta

vagando triste por sobre a flor

Vestiu rapidamente a calça e a camiseta, virou a caneca tomando o resto do café e saiu, deixando o rádio ligado e a luz do pequeno quarto acesa. Pegou a capa que flutuava detrás da porta e a pá, encostada na parede do casebre de madeira, do lado de fora. Montou na velha bicicleta, uma mão segurando o guidão, outra empunhando o objeto que usaria para revelar o enigma que o atormentava todas as noites. O casebre foi ficando para trás. As moradas, distantes uma das outras, dividiam os espaços com grandes plantações de cana, café e pomares das mais diversas frutas. A estrada de terra, amolecida pela chuva, dificultava o desempenho da bicicleta, que atolava e derrapava com facilidade.

Encharcado e ofegante, ele finalmente encontra o número 56 da Gustavo Richard, outrora a rua mais movimentada da cidade. Com o fechamento da estrada de ferro, a antes próspera cidade virara um povoado esquecido no tempo. Só alguns poucos agricultores insistiam em ficar naquele lugar carente de tudo.

Zinho estava há dois dias na cidade fantasma. Durante dois anos tivera sonhos recorrentes, idênticos. Nesse sonho, uma mulher, idosa, mandava-o cavar "onde a goiabeira faz sombra", no dia 14 de junho, as 3:43. Exatamente no dia 14 de junho, exatamente no horário alertado. Ela ainda o alertou sobre as "visagens". O demônio ia impedir de qualquer maneira quem se atrevesse a mexer em coisas do passado. A ousadia teria um alto preço. Mas ele não se importava com mais nada. Apesar de seus temores, de seus muitos medos, como escuridão e cidades perdidas no passado, noites de chuva e trovões que fazem a imaginação ver muitas coisas, nada podia ser pior do que estava vivendo. Aquele mesmo sonho, noite após noite, tinha lhe tirado a paz. Tirou mais. Há dois anos tudo desandara na vida do rapaz. Perdera o emprego, a namorada. Os amigos simplesmente sumiram. Relutante, não dera ouvidos aos avisos da anciã, que lhe alertara: enquanto não acertasse as contas de seus antepassados, nada daria certo em sua vida. Decidido, encostou a bicicleta no muro decadente, empurrou o velho portão e adentrou. Hora do acerto de contas.

Parte II

3:35. Esse era o que indicava o relógio no display do celular, que ele carregava no bolso traseiro do jeans. Faltavam 8 minuts para a hora combinada. Passou pela lateral da varanda, através de uma calçada já tomada pelo mato. Caminhou mais um pouco, tropeçando numa pequena árvore que descobriria mais tarde ser um pé de figo. Chegou ao fundos do casarão, tomado pela escuridão da noite fechada. Buscou a pequena lanterna no bolso da capa e a ligou, procurando a goiabeira. Quando o clarão de um relâmpago iluminou o quintal, trazendo a luz do dia num segundo, ele viu, num flash, a árvore citada pela ancestral. Viu ainda um homem, de terno. Com uma expressão marcante, sarcástica, arqueava uma sobrancelha, sorria de canto de boca e balançava a cabeça, da esquerda para a direita, como se reprovasse a presença do forasteiro naquele lugar.

Quando soou o trovão, segundos depois, não havia mais ninguém defronte a árvore. Talvez tenha sido mera ilusão de ótica. O estresse, o medo, o breu absoluto. Todos esses elementos, combinados, poderima ter prodzido uma miragem, fruto dos temores, de traumas da infância, das estórias que ouvia cheio de medo sob as cobertas quando era apenas um menino inocente. Talvez não. Mas isso seria uma eterna dúvida. Chegara a hora. Steve Tyler quebrara a rotina dos pingos caindo ao proclamar

Lovin' you's got to be (take me to the other side)

like the devil and the deep blue sea ( ... )

forget about your foolish pride

c'mon, take me to the other side

The other side, música que Zinho escolhera para tocar as 3:43. O outro lado. Hora de encarar os fatos e descobrir o que lhe fora reservado no outro lado. Pá em punho, caminhou na direção da goiabeira, parando exatamente onde vira, ou imaginara ver o homem de terno. Respirou fundo, empunhando a pá como se fosse Artur com a excalibur em suas mãos. Ergueu a ferramenta com vigor.Toda a raiva, rancor, frustração e ódio por tudo que vivera até então, durante dois anos de infortúnio e revéses, todos esses sentimentos tomaram conta de si, dando a ele um poder e força jamais imaginados antes. A força que só os que sofrem conseguem atingir. A pá, sua excalibur, sua esperança de fugir daquela situação repleta de pesadelos e decepções, entrava firme na terra escura e fofa. Tomado pela força estranha, os golpes no solo foram se acentuando, a terra voando sobre seus ombros, uma pequena cratera se formando no fundo do casarão. O silêncio da noite, agora que a chuva parara, era apenas quebrado pelo som da lâmina fatiando o solo e pelo impacto das porções de terra jogadas pela pá, de encontro ao solo. Alguns raios ainda iluminavam o céu do povoado, mas os trovões soavam distantes, denunciando a passagem da tempestade para outras bandas.

15 minutos depois, havia cavado pouco mais de meio metro. Tomado pelo cansaço, diminuiu o ritmo, como se o ápice do transe tivesse chegado ao fim. Ofegante, ainda cavou mais duas vezes, mas já sem o ritmo frenético de antes. Fincou a pá no fundo do buraco e sentou na borda, observando o trabalho feito até então. Percebeu que havia cavada um buraco circular, como se fosse um poço. Levanta-se, procurando a lanterna no bolso da capa e prendendo-a num galho da goiabeira. A luz, ainda que fraca, o ajudaria na conclusão do trabalho. Havia acabado de prender o objeto na árvore quando um barulho chamou sua atenção. Olhou para trás, por reflexo. O barulho ia aumentando gradativamente, como um crescendo numa música clássica, como se Carmina Burana estivesse sendo executada por uma orquestra que se aproximava mais e mais. Algo riscava o céu chuvoso da madrugada de 14 de junho. Como num show pirotécnico, uma bola de fogo cortava o breu, vindo exatamente na direção do velho casarão. O barulho aumentando. Carmina Burana em seu apogeu. Sem tempo para qualquer outra coisa, Zinho se atira no buraco, com os joelhos dobrados, as mãos sobre a cabeça, a cara enfiada na lama. Como se fora um muçulmano reverenciado a Meca, se encolheu na trincheira que ele mesmo cavara. Sentiu o calor do fogo a poucos metros de seu corpo. Mal tem tempo de entender o que acontecera quando o forte estrondo o faz levar as mãos aos ouvidos. Atônito, levanta a cabeça para ver o que acontecera. Sem entender direito o que houvera, pula para fora do buraco, na direção oposta do estrondo. Na tentativa desesperada de sair dali, tropeça e cai, olhando na direção do objeto que se consumia pelo fogo.

Perto da goiabeira, uma placa de metal retorcida. Na placa, uma inscrição.

PT-AMP.

Parte III

A escuridão, até alguns instantes quebrada pela fraca luz de uma lanterna, cedera seu lugar ao clarão imponente do fogo, que consumia avidamente o combustível da pequena aeronave, agora um amontoado de ferro retorcido fumegante.

Surpreso e confuso, fez menção de correr para a estrada, sem olhar para trás. A chuva, agora bem mais amena, ainda insistia m cair. Em choque, ficou contemplando o incêndio, como se assistisse a um filme sem som. O silêncio total causado pela emoção do instante. Apenas o calor gerado pelo fogo, sua ofuscante luz laranja e o cheiro forte de borracha e querosone queimando na madrugada tranqüila.

Deu alguns passos em direção aos destroços, levando o braço em frente aos olhos para evitar o clarão. Aos poucos, vai recuperando a razão. Voltar a perceber os sons. Ouve os gritos desesperados, gemidos que jamais ouvira. E que não esqueceria tão cedo. Gritos implorando por socorro, clamando por Deus, implorando por misericórdia e perdão. No momento crucial, na temida hora da verdade, todos se tornam fiéis fervorosos e tementes a Deus. A súplica desesperada mexeu com os brios de Zinho. Contrariando o bom senso, ele conseguiu juntar forças para vencer o temor. Talvez em choque, agindo somente com a emoção, ele correu na direção da aeronave. Com a pá em punho, golpeu a porta do monomotor, que se abriu facilmente. Lá dentro, 5 pessoas. O piloto, desacordado. Um casal que também estava lá, sem mostrar sinal de vida. Apenas uma garota, uma adolescente que tremia de pavor e gritava histericamente. E em seu colo, um bebê assistia a tudo. Com os olhos bem abertos.

Sem saber direito o que fazer, pegou a criança do colo da garota. O bebê se aninhou carinhosamente em seu peito e, mesmo naquele campo de batalha, com morte, destruição, fogo e fumaça a seu lado, ele sentiu uma sensação que jamais sentira antes: um misto de paz, ternura e carinho. A fumaça tomava conta daquele pequeno espaço, irritando os olhos e dificultando a respiração. Por instinto, ele sai correndo do avião com a criança no colo. Ao chegar na velha varanda, tira a jaqueta e com ela cobre o pequenino.

- Fica aqui que vou buscar sua mãe. Volto já, não sai daí!

Sem esperar a reação do bebê, ele dispara em direção ao fundo do quintal, indo socorrer a jovem aflita. O fogo aumentara, a fumaça estava ainda mais intensa. Antes de passar pela catraca do inferno pela segunda vez, ele sacode a goiabeira, fazendo a água retida nas folhas cair e molhar seu corpo. Completamente encharcado, invade o que restou do pequeno avião. Lá, a garota perdera os sentidos. A cabeça inclinada para o lado, parecia estar dormindo. A luz laranja iluminava seus belos traços enquanto ela dormia, alheia ao pesadelo que vivera até então. Presa ao cinto, não conseguiu escapar por si só. O cinto estava travado, o calor aumentando, não havia nada ali para cortar aquele cinto. Pegou a pá e golpeou a janela, na tentativa de pegar um caco de vidro. Mas o material da janela é feito de um plástico resistente, que não estilhaça nem forma pontas. Então ele golpeu um pedaço da carenagem arrebentada, conseguindo tirar uma lasca para cortar o cinto. Cinco golpes foram suficientes para cortar o cinto e sua mão. Ao pegá-la no colo, mancha o jeans claro e a blusa branca com seu sangue. Estava saindo do avião quando perde o equilíbrio ao tropeçar numa valise. O impacto o faz cair no quintal enlameado, com garota a seu lado e uma valise entreaberta, que timidamente mostra seu conteúdo. Rapidamente ele se levanta, pegando a garota pela cintura com um braço e a valise com o outro. Quando deu por si, estava na varanda, com aquele bebê de olhos arregalados brincando tranquilamente com sua jaqueta. Ao seu lado, deitada, a moça começa a tossir e recobrar os sentidos, enquanto o fogo consumia o que restou do avião.

La Paz – Continua desaparecido o monomotor prefixo PT-AMP que decolou de La Paz com destino a Montevidéu. O avião levava o empresário Pedro Sanchez, dono de várias casas noturnas na América do Sul, sua esposa e filho, além da babá e do piloto. Sanchez é suspeito de comandar um cartel de cocaína no sul da Bolívia. O avião decolou de La Paz com 343 mil dólares declarados às autoridades bolivianas. Depois de uma semana de investigações no interior do Brasil, onde a aeronave fez contato pela última vez, as autoridades brasileiras e bolivianas deram por encerradas as buscas.

Enquanto isso, em alguma praia do Caribe, Zinho tomava uma Piña Colada com uma bela jovem boliviana, enquanto um bebezinho de olhos grandes e dois dentinhos brincava sob um grande e colorido guarda-sol, sorrindo feliz ao por do sol de verão.