II - Insanidade e despedidas
Após a morte da Bruna, eu fiquei um bom tempo em estado de torpor. E fui gradativamente me afastando de todos que eu conhecia. Não havia nada em mim. Não havia alegria, não havia tristeza, não havia dor. Eu simplesmente não sentia nada.
Meus dias, eram preenchidos apenas pelo vazio, nada fazia diferença, mas durante a noite, eu simplesmente não conseguia ter paz. Sempre que me deitava para dormir, era atormentado por pesadelos, dos tipos mais confusos que jamais havia tido, mas algo neles sempre se repetia. Em todos, havia a presença que de algum modo me assustava, uma figura negra, como que feita de sombras, com olhos luminosos como o fogo, que trazia enroladas em seus braços, duas serpentes, uma em cada braço. O ser avançava um pouco em minha direção, então as serpentes se tornavam chamas, e aquela figura que as segurava em seus braços, começava a mudar de forma, e assumia algo como a forma de um dragão, a sombra de um dragão, que após soltar uma espécie de urro angustiante, em um misto de ira e dor, caia desfalecido no chão, e quando eu me aproximava, era a minha face que eu via.
Naqueles dias, Kaulí veio conversar comigo, eu estava assentado nas escadas do portão de entrada do colégio, recostado em uma pilastra, meus olhos estavam voltados para além das grades do colégio, porem não na rua movimentada, mas sim voltados para o passado.
– Oi. – disse ela, desta vez sem o seu entusiasmo habitual, sem o sorriso e o tom debochado de quem sabe como levar a vida.
– Oi, Kaulí. – minha resposta foi mecânica e sem expressões, como estavam sendo todos os meus dias.
– Como você está? – ela se assentou a meu lado – Não tenho te visto muito, ultimamente.
– Acho que... – eu olhava para o chão com um olhar vazio – Eu... – um longo suspiro – Eu gostaria de saber.
– Argus, sabe... eu sei que é difícil, eu sei que dói, mas acho que você tem de tentar ser forte, tentar melhorar. – ela se engasgou um pouco para continuar a falar, talvez por também sentir muito a falta dela – A Ninha, não gostaria de te ver assim, pense nisto.
– Mas,... eu poderia... se eu tivesse insistido para ela ficar...
– Não foi sua culpa. Como você poderia saber? Como qualquer um poderia saber?
– Você não entende – na verdade ninguém entenderia se eu dissesse – podia ter sido diferente, se eu... – outro longo suspiro e um momento de silêncio entre nós.
– Argus – ela me olhava ternamente – por favor, por ela, não fique assim, as vezes olhar para você, é como olhar para... sabe, há um vazio nos seus olhos. Ela não gostaria de te ver neste estado, tente, se não por você, por ela. Tente, e se precisar de algo, eu vou estar aqui.
Ela beijou a minha testa e se levantou, e eu continuei ali, com meus olhos vazios, perdido em meus pensamentos.
Alguns dias se passaram, e eu tentei seguir o conselho da Kaulí, e aos poucos eu estava tentando voltar a interagir com as pessoas, mas embora eu parecesse melhorar, a dor simplesmente não diminuía, eu apenas a estava disfarçando.
Mas algo diferente ainda me atormentava. Os sonhos, eles continuavam, e em todos havia aquela figura negra. Eu sempre tive estes sonhos estranhos, desde que eu era apenas uma criança, eu apenas não dizia as pessoas, pois elas não compreendiam, ninguém nunca compreendeu, eu mesmo não compreendia, tudo que eu sabia, era que as vezes, quando as coisas iam acontecendo, eu conseguia relaciona-las com os sonhos que tinha. Então com o passar do tempo, à medida que eu crescia, fui buscando meios de compreender essas coisas, mas nunca cheguei a uma verdade sobre o que de fato acontecia comigo.
Mas agora, depois dos últimos acontecimentos, eu voltava a buscar este conhecimento. Mais do que nunca, eu queria saber o que estava acontecendo, queria compreender o por que, e também queria um modo de acabar com a dor, e me ocupar com estas coisas, me deixava menos tempo para pensar na falta de meu anjo, e eu queria de alguma forma extinguir esta dor, eu queria ficar forte, queria ter força suficiente para nunca mais sofrer desta forma. Foi então que eu descobri o poder da abstração. Me abstrair das coisas ao meu redor, me ajudava a simplesmente não pensar em nada, fazia a dor parar, era algo fantástico, não havia dor, não havia sofrimento, lembranças, nada. Não havia nem mesmo o presente, era como perder a consciência de mim mesmo, era como morrer, simplesmente ser desligado, e depois tudo era paz. Para alcançar este estado mais vezes e com maior facilidade, comecei a praticar meditação. Eu só não sabia que estas práticas poderiam me levar a transcender.
Com o tempo, eu fui aprendendo a meditar da forma correta, e rapidamente eu entrava em alfa. Até que um dia, eu simplesmente me dei conta que não estava em mim. Que havia saído do meu corpo, e estava adentrando um espaço diferente, eu estava atravessando para o plano astral. E foi neste plano que tudo aconteceu. Em um destes dias nos quais eu estava em torpor, desejava tão ardentemente eliminar minha dor, não importando de onde viesse a cura, eu atravessei para o outro lado e acabei por adentrar na Umbra. E lá tudo era estranho para mim, era como uma espécie de deserto, no qual haviam apenas rochas frias e árvores mortas, a luminosidade era quase nula, e o ar tinha um cheiro perturbador e reconfortante. Então, eis que surge a minha frente aquele ser, feito de sombras e com olhos de chamas.
– Eu sei de tua dor – disse o ser, com uma voz andrógena –, eu sei de teus desejos, sei tua historia.
– Quem é você? – eu perguntava, ainda me perguntando se realmente queria saber.
– Nomes não importam aqui.
– Eu te fiz uma pergunta.
– Eu conheço a tua verdadeira face – quilo pareceu não me ouvir – o teu verdadeiro nome. Eu te conheci através das eras, através do tempo e antes do tempo nascer. O que você era antes de você surgir.
– Mas do que você está falando? – novamente aquilo me ignorou e continuou seu discurso.
– Eu sei que hoje, você vive em sofrimento, que tua vida não lhe parece real, que tudo é apenas dor. Mas eu tenho a cura. Tua vida é como um pesadelo, algo que lhe atormenta, mas você simplesmente não consegue acordar. Mas eu,... eu venho lhe dar o despertar. Eu venho lhe dar a força que busca, venho lhe dar a chance de parar com a dor que sente.
– Você não sabe do que está falando.
– Ah! Sim eu sei. Tu quem não sabes, pois ainda dormes e teus olhos estão fechados.
– Então prove o que me diz. Faça-me despertar. Dê-me poder. Eu não acredito nas tuas palavras.
Neste momento, aquele ser veio em minha direção, assim como nos sonhos, e seus olhos, feitos apenas de chamas, estavam fixos em mim, eu podia senti-los olhando dentro de minha alma, como se procurassem por algo escondido ali. Aquilo continuava caminhando e me observando, assim como um predador espreita a presa, e então começou se mudar de forma, e assumiu a forma de uma serpente, e rastejando pelo chão veio até mim, eu estava paralisado, enroscou-se em meu corpo, e sussurrou em meu ouvido:
– Eu lhe dou o conhecimento. Desperte filho do fogo.
E aquele ser me mordeu no pescoço, na jugular. E eu senti o veneno adentrando em minhas veias, senti a dor de uma morte e em seguida um momento de paz, mas então o veneno em minhas veias, tornou-se como fogo líquido, e estava correndo por todo o meu corpo, queimando todo meu corpo, eu sentia uma agonia que é simplesmente indescritível. Eu olhei para o meu corpo, e de fato ele estava em chamas, mas eu fui vendo estas chamas diminuírem gradativamente, e elas se concentraram em meus olhos, que ardiam como uma floresta em chamas. Eu exalei um som gutural e cai.
Ao despertar, eu estava de volta ao plano material, estava meio zonzo e sem saber quanto tempo poderia ter se passado. Eu olhei em volta e as coisas pareciam continuar as mesmas, eu ainda estava em meu quarto, a cama a minha direita, com sua colcha azul mal arrumada, a cômoda ainda era mogno e tinha a ultima gaveta quebrada, no chão, a mistura habitual de calçados de revistas. Me levantei e olhei pela janela, já estava escuro e a lua brilhava cheia no céu noturno de inverno, quando comecei a meditar o sol ainda estava se pondo e a julgar pela lua no céu, devo ter ficado fora por cerca de umas duas horas. Minha cabeça latejava e eu não parava de pensar no que havia acontecido, me dirigi para a porta que se encontrava fechada, mas quando estendi a minha mão para a maçaneta, tive uma sensação estranha, algo próximo de um déjà vu, mas não havia exatamente a sensação de que aquilo já acontecera. Eu fui até o banheiro e joguei um pouco de água no rosto, mas ao levantar meu rosto e vê-lo no espelho, tive a impressão de que aqueles olhos não eram meus. Meus olhos sempre foram verdes, com uma faixa castanha, como as folhas secas do outono, ao redor da íris, mas desta vez a faixa parecia girar em chamas, e depois meus olhos oscilaram do castanho absoluto ao verde absoluto e voltaram à coloração normal. Tentei me convencer de que aquilo não era real, tomei um banho e fui dormir.
Acordei no dia seguinte e fui para o colégio como era de costume, e como já vinha acontecendo, eu estava vazio e não percebia quase nada do que acontecia ao meu redor, vagava como um zumbi. E então a Kaulí veio para me cumprimentar.
– Oi Argus! – eu me virei para ver o rosto dela – como você... – ela tinha uma expressão de susto e questionamento no rosto – O que houve com seus olhos? Eles estão... castanhos.
– Hã?! Do que você está falando?
– Seus olhos. Eles estão castanhos. Você usava lentes?
– Não, você sabe que não.
– Mas então por que...? Cara, você está estranho mesmo.
– Vamos embora. Esqueça os meus olhos.
Ao longo do dia mais algumas pessoas repetiram a mesma pergunta que Kaulí me fizera. Mas foi ao final das aulas que algo estranho tornou a acontecer. Eu estava descendo a escadaria que dava para o portão principal do colégio, quando de repente fui surpreendido por alguém que pulou de trás de umas das pilastras que cercavam a escadaria. Era o Lucas.
– E aí cara?! – ele disse em um tom muito jovial, ele sempre foi muito agitado.
– Oi Luck.
– Então? O que tu pretende fazer hoje?
– Nada.
– Então, o que você acha de sair pra beber comigo? Conheci um bar de motoqueiros muito bom, com belas garçonetes.
– Hoje eu só quero ficar um pouco só. – ele virou os olhos com um ar de descrédito.
– Está bem. Mas cara, é que queria te dizer uma coisa. Acontece que conheci uns caras nesse bar e eles estão pensando em montar uma banda, e me chamaram pra ser o baterista. E também estão a procura de um guitarrista, então, o que você acha de voltar á ativa?
– Não Luck. Eu estou meio cansado desse dia-a-dia de banda. Não me leve a mau, mas não vai rolar. – eu simplesmente passei por ele e fui descendo as escadas em direção à rua.
– Porra cara! – ele veio descendo atrás de mim – o que houve contigo? Você não é mais o mesmo Argus que conheci. Desde que aquela garota morreu, você anda assim, sem vida. Eu entendi no começo, afinal é dura uma situação dessas, mas cara, já fazem meses desde que aquilo aconteceu, e vocês nem ficaram juntos tanto tempo assim. O que está acontecendo? Nenhuma garota vale tudo isso. Eu cansei de te ver assim. Acorda cara. Se fosse ao contrario aposto que ela não estaria como você.
– Pare de falar isso – aquilo estava me dando raiva, eu sentia cada parte do meu corpo vibrar.
– É a verdade – eu me virei para ele estava determinado a socá-lo se ele não parasse – e você não quer aceitar... – ele deu uma pequena pausa, e tinha a respiração presa e um ar de susto que eu não acreditava ser apenas por ele ver um sentimento em meu rosto, ainda que fosse ira – Cara o que foi isso? O seus olhos... eles de repente mudaram de um castanho para o verde... bem na minha frente. – aquela frase me chocou e até me fez perder parte da raiva.
– Você não sabe do que está falando – eu me virei e segui o meu caminho – apenas me deixe em paz.
Eu desci as escadarias e peguei a minha moto, que estava estacionada do lado de fora do colégio, e segui o meu caminho, deixando o Luck ali atrás, com aquela cara de espanto e suas palavras de indignação entaladas na garganta. Naquele dia, fui para casa e tentei me manter calmo, tudo estava ficando muito estranho, havia também decidido que não meditaria por um tempo, até eu saber o que havia acontecido naquele dia.
No dia seguinte, decidi começar a usar óculos escuros, ao menos isto evitaria que as pessoas ficassem me perguntando sobre a cor dos meus olhos e o modo como eles mudavam. Eu segui o mesmo ritmo de sempre ao longo do dia, mas eventualmente, eu ouvia algo como vozes, que as vezes pareciam se lamentar de algo, outras pareciam sugestionar coisas a serem feitas, não exatamente para mim, parecia mais que estas vozes tentavam falar com as pessoas que eu via, algumas diziam boas coisas, outras não. Os dias foram se passando e eu tentava conviver com aquilo, tendo a cada dia mais a certeza de que tinha enlouquecido de vez. Mas à medida que o tempo passava, a vozes iam aumentando, até que em determinado dia eu tive algo parecido com um surto.
Era o horário de saída das aulas, eu já estava na rua, atrás de mim estavam as grades verdes do colégio, a rua estava movimentada como sempre são as horas de rush, a minha moto estava parada virando a esquina, algo em torno de cinquenta metros. Estava tudo normal no momento, então as vozes voltaram, com uma intensidade que nunca haviam vindo antes, e de repente, quando eu olhava para as pessoas, algumas delas tinham seus rostos desfigurados em algo parecido com o rosto de um corpo mumificado ou de um morto em decomposição, outras tinham vultos enormes que lhes seguiam, eu tomei um susto, ao ver uma garotinha se transmutar em uma dessas coisas bem na minha frente, então eu tentei correr para trás e acabei por esbarrar na Kaulí que havia acabado de sair pelos portões do colégio, nos dois caímos no chão. E as vozes aumentaram, eu entrelaçava as mãos atrás da cabeça e fazia pressão com os braços sobre os ouvidos para tentar abafar o som. Ao me ver daquele modo Kaulí se mostrou muito preocupada e tentou falar comigo.
– Argus? O que está acontecendo? Você está bem?
– Faça elas pararem.
– Fazer quem, parar com o que? – ela não compreendia e estava assustada com o meu estado.
– As vozes – meus olhos começavam a lacrimejar e eu me encolhia no chão – faça elas pararem. Por que elas não param?
– Que vozes Argus? Do que você está falando?
– Por que eu continuo ouvindo?... Essas vozes... O que eu fiz?... – eu tremia, mas tentava me levantar – Deixem-me em paz, onde quer que estejam. – eu estava tremendo, minha face era puro terror e confusão, eu olhei nos olhos de Kaulí e segurei em seus ombros, ela também estava muito assustada por não saber o que havia comigo – Eu ouço tantas vozes, mas não há ninguém falando. Não há ninguém... – eu chorava – não há ninguém Kaulí. Ninguém...
Eu a soltei e sai correndo em direção a minha moto, ela tentou me impedir, mas não teve força, eu montei e sai desesperado, quase atropelando as pessoas que passavam pelo rua. Ao chegar em casa as vozes já haviam parado, eu precisava me acalmar, sabia que tudo isso havia começado no dia em que me deparei com aquela figura negra, sabia que aquele ser poderia ter as respostas que eu precisava. Tentei começar a meditar, mas eu estava muito agitado, só depois de um longo tempo eu consegui ficar calmo o suficiente para meditar, entrei em alfa, depois acabei por passar para aquele outro plano, para o mesmo deserto no qual havia estado, mas desta vez havia algo diferente nele, desta vez à minha frente, havia uma flor, uma rosa que estava passando do vermelho ao negro gradativamente, eu a contemplei até que ela se tornou totalmente negra, negra como uma noite de lua nova. Eu olhava em volta e não havia nada, apenas o mesmo deserto frio e a rosa negra. Eu comecei a gritar.
– Onde esta você? Apareça! O que você fez comigo? Apareça seu desgraçado! Vamos apareça!
– Está feito – disse aquela voz andrógena às minhas costas.
– O que você fez comigo? – eu me virei e lá estava aquela figura com os olhos de chamas e corpo de sombras.
– Eu? Eu apenas lhe dei a força que você desejava. Eu lhe dei o veneno do despertar. Mas a sua alma ainda não estava pronta para sobreviver a ele. Sua alma está morrendo e logo você não terá forças suficientes para controlar o próprio corpo, então será a hora do verdadeiro despertar, o seu espírito será forçado a despertar e assumir o controle. O seu verdadeiro espírito, aquele que transcende as eras além do tempo. Será a hora do dragão surgir novamente.
– Do que você está falando? Não há outro eu para surgir – ele me interrompe.
– Tolo! Você verá no momento certo.
– Não me chame de tolo – eu começava a ter espasmos e a me agachar no chão.
– Veja só, já está começando. – eu sentia meu corpo arder novamente.
– Eu não vou acabar aqui desta forma – eu senti meus olhos entrarem em chamas e eu comecei a me levantar.
– Você vai. Então você ascenderá. E terá mais poder do que imagina. Alguém como você, que seguiu o caminho que escolheu seguir, ascenderá muito rapidamente. Então o dragão poderá voar até os céus.
– O meu caminho... então eu escolho cair. Eu não vou morrer para que o dragão ascenda e você obtenha a sua gloria.
– Não seja tolo. Você não sabe o que é a queda. Você não conhece essa dor. Aceite me e não terá de sofrer desta forma, as pessoas ao seu redor não terão de sofrer.
– Não. Eu morrerei, mas eu cairei na minha morte. Eu não me curvo a ninguém.
– Então, que você se torne aquele que cai por escolha própria. Você morre agora filho do fogo e cairá em sua morte, e se torna de agora por diante o guardião, e quando em sua queda você falhar, o dragão assumirá o controle do lugar que é dele por direito.
Então a dor intensificou-se, eu senti realmente que estava morrendo, e o chão sob mim desmaterializou-se e eu caí, girando em espiral e apaguei, atingi o solo ainda sem desfalecido, e ao abrir os meus olhos eu me sentia eu vi que tudo era apenas escuro, e não havia nada, além de uma grande porta à minha frente, devia ter de três a três metros e meio, era feita de um escuro material sólido e pesado, algum tipo de madeira eu acho, parecia ser muito grossa, tinha acabamento rústico como se fosse tão antiga quanto o próprio tempo, seu portal era do mesmo material e também muito grosso, mas tinha o acabamento bem trabalhado, com muitos símbolos arcanos que eu reconhecia e outros totalmente desconhecidos para mim, no topo, no meio do portal, havia o símbolo de um olho dentro de uma pirâmide, o olho que tudo vê. Eu tentei abrir a porta, era muito pesada, e com dificuldade eu consegui movê-la, e do outro lado, veio uma luz muito forte, que me ofuscou por completo, eu me senti tonto e senti que estava caindo, quando voltei a tomar consciência eu estava de volta ao plano material.
E eu fiquei pensando em tudo aquilo que havia acontecido, no que aquele ser havia dito sobre sofrimento para quem estava próximo de mim. Foi então que o telefone tocou. Era Kaulí, ela disse que estava preocupada e que viria me ver.
Algum tempo depois a campainha toca, era ela.
– Oi Kaulí.
– Oi. Como você está?
– Eu acho que estou bem agora.
– Serio? Por que há algo diferente nos seus olhos, e não estou falando do fato deles estarem castanhos... – eu não usava os óculos escuros em casa – a propósito, agora eles estão normais de novo. Argus o que está acontecendo?
– É difícil de explicar. Nem eu mesmo sei o que está havendo – um longo suspiro – eu... eu acho... não eu sei que eu tenho que ir embora garota.
– Ir embora? Argus, essa é a sua casa. O que é que você está pensando? Você não está dizendo em... – eu a corto.
– É exatamente o que eu estou tentando te dizer. Ir embora daqui. – Mas por que? Você não pode fazer isso. É a sua vida. O que você está pensando?
– Não, Kaulí, me escuta – ela não me deixa terminar.
– Escuta aqui você. Olha o que você está falando. Abandonar tudo e ir embora... Eu sei, que as coisas devem estar difíceis pra você e eu vi o que houve hoje, mas Argus, se você estiver doente a gente pode procurar ajuda, se for qualquer outro problema, a gente pode encontrar um meio, eu estou aqui. Eu não vou te abandonar.
– Acho que não adianta procurar ajuda, acho que ninguém pode me ajudar. Já faz algum tempo que as coisas vem tomando este rumo, e eu me decidi, eu vou embora amanhã pela manhã, após a hora mais movimentada.
– Não, você está errado – a essa altura ela já estava chorando e com o tom de voz alterado de modo que quase gritava. – você não vai. Não pode ir.
– Você não entende – eu volto meus olhos para baixo e suspiro.
– Não entendo o que? – ela gritava – O que? Que minha melhor amiga está morta? Que eu me apaixonei pelo namorado dela e que ainda me sinto meio culpada e confusa por isso? E agora você me diz que está indo embora? Você... Então vai embora! Vai e me deixa aqui! Vai!
Ela saiu correndo pelo portão, na verdade nem tínhamos entrado de verdade estávamos conversando na entrada e com o portão aberto. Ela chorava, enquanto ia embora e eu fiquei ali, meio chocado com o que havia ouvido, com a cabeça confusa demais, mas com uma certeza, a de que tinha de partir o mais rápido possível, mesmo que não houvesse razão eu tinha de ir, pois o ser de sombras disse que quem estivesse próximo a mim sofreria, então eu tinha de ir, nem que fosse para poupar a Kaulí de mais sofrimentos.
O dia seguinte amanheceu sem nuvens no céu, seria um dia claro de inverno. Eu peguei a minha mochila e coloquei dentro dela coisas suficientes para enche-la, vesti uma jaqueta para me proteger do vento que enfrentaria na viagem e peguei meus óculos escuros, desta vez não só para evitar comentários sobre meus olhos, mas sim por que o dia estava claro. Ao sair eu olhei para a minha casa por mais uma ultima vez, e me lembrei de tudo que vivi até aquele momento, pensei em tudo que deixaria para trás, os lugares que me traziam boas e más lembranças, e me despedi mentalmente e com uma mesura à casa. Montei em minha moto e quando dei a partida, ouvi a voz da Kaulí me gritanto.
– Espera! – eu olhei para trás e ela vinha correndo, atravessando a esquina.
– Oi! Pensei que não fosse te ver antes de ir.
– Eu também pensei. – ela olhava para baixo e trazia um envelope nas mãos – mas eu não podia te deixar ir assim.
– Kaulí, eu já tentei te explicar – ela não me deixou terminar.
– Eu sei. – ela agora olhava para mim e seu olhos estavam cheios de água – Mas você tem mesmo que ir?
– Tenho. Infelizmente sim. Acho que não há outra escolha. – ela tentava se conter, mas uma lágrima começou a rolar por sua face.
– Então tome isto – ela me entregou o envelope que carregava, eu abri, e ali havia uma foto de nós três, eu ela e Bruna – queria que você tivesse algo para se lembrar, se sentir saudades... e quem sabe um dia se lembrar de voltar. – eu olhei para ela e sorri com o coração partido, ela me deu um beijo rápido na boca, mas que me fez pensar se o que eu estava fazendo era certo – me desculpa.
– Não se desculpe. Não é preciso.
– Você volta? Um dia, quando você estiver se sentindo melhor, bem o suficiente? Volta?
– Não sei – um suspiro – não se vou estar bem um dia... Mas pode ter certeza que não vou te esquecer, e que se eu um dia estiver bem, eu volto. – eu a puxei para perto de mim, encostando a sua cabeça em meu peito e dei-lhe um longo beijo na cabeça, tentando conter as minhas lágrimas – Adeus Kaulí – eu baguncei o cabelo dela como eu costumava fazer para irritá-la, ela sorriu tristemente. – eu vou sentir saudades.
Ela tentou dizer adeus, mas começou a chorar quando abriu a boca, então ela não disse nada, eu enxuguei uma lágrima de seu rosto e beijei sua mão. Então eu parti.
Parti deixando tudo que um dia tive para trás, fugindo de algo que eu não sábia o que poderia ser, provavelmente de mim mesmo, e indo em busca do que não conhecia. Eu parti. Deixando para trás as memórias e lugares de tudo que um dia amei.
III - Hotel Califórnia
Numa estrada escura e deserta, o vento fresco em meus cabelos.