CORAÇÃO CIGANO

A velha tinha uns cem anos, falava com uma voz arrastada, quase inaudível, mas eu fazia um tremendo esforço para entendê-la:

- Só há um jeito! Traga-me o coração de uma cigana, e você terá a sua vida de volta!

Eu realmente não sabia como tinha me metido naquilo. Sempre fui um cético. Mas o fato é que o câncer já estava espalhado e a medicina nada poderia fazer por mim.

- O coração de uma cigana! O sangue será o sabão, que tirará esta sujeira do seu corpo! O sangue de uma cigana!

Eu tinha mais um mês de vida. E quando se está a um mês da morte, é a hora certa para deixar certas frescuras de lado e começar a acreditar naquelas coisas que você sempre achou uma bela bobagem. Eu estava sendo prático. Se aquela velha dizia que o coração de uma cigana iria me curar, não custava nada tentar, afinal de contas eu já estava praticamente morto mesmo...

Saí do sítio da velha bruxa pensando no que ela havia me dito. Merda! Onde vou achar uma cigana! Esses malditos ciganos estão sempre para lá e para cá, como baratas chapadas pelo inseticida! Eu dirigia pelas estradas de chão batido pensando nestas coisas, no curto período de vida que me restava e na fala arrastada e enigmática daquela velha. Um coração! E de uma cigana! Eu odeio ciganos! Sempre querendo negociar alguma coisa enquanto lêem a sua mão! Filhos da puta! Cheguei em casa, peguei a faca mais afiada que encontrei e saí correndo. Entrei no carro e comecei a rodar pela cidade. Ciganos! A única coisa que eu sabia sobre os ciganos eu tinha visto numa porcaria de novela! Eu rodava pela cidade sem rumo, como um perfeito idiota, observando as mulheres e tentando achar algo que as identificassem, como roupas coloridas ou colares de ouro, até que comecei a sentir fome. Fui até o centro e entrei no primeiro restaurante que encontrei. Já era tarde, o restaurante estava quase fechando e os garçons almoçavam também. É sempre bom saber que os garçons comem no restaurante onde você almoça, é um bom sinal de que eles não mijam na comida. Comi rapidamente e quando voltava para o carro tive a visão que tanto esperava: Uma mulher com vestidos coloridos, que pedia insistentemente para ler a sorte dos que passavam pela rua. Quando vi aquela cena, senti como o jogador que sai com uma quadra de ases. Não é possível! Uma maldita cigana! É muita sorte para um azarado como eu! Fui até lá e depois de muita conversa e de deixar que ela lesse as cartas por cinquenta paus, a convenci de ir comigo, argumentando que minha mulher queria fazer uma consulta, e que obviamente seria muito bem remunerada para isso. Ela prontamente aceitou, e nos dirigimos até o carro. Cigana filha da puta! Iria me cobrar uma fortuna por esta consulta! Mal sabia ela que ler a minha sorte seria o seu azar! Entramos no carro e fomos até um local distante, no caminho do sítio da velha bruxa. Descemos do carro e antes que ela pudesse ver qualquer coisa, puxei-a por trás e dei-lhe um talho profundo na garganta. A faca estava afiada mesmo, pois abriu um rombo no seu pescoço e a cabeça ficou pendurada para trás, segurada somente pelo osso da coluna vertebral. Aquela cigana sangrava como uma porca. Eu estava ansioso e satisfeito, havia tirado a sorte grande! Arrastei a mulher até um descampado e tratei de começar logo a extração. Com um golpe violento cravei a faca na parte superior do tórax e fui cortando com cuidado para não atingir o coração. Os ossos não são fáceis de serem cortados, mas com o entusiasmo que eu estava nem liguei para esta dificuldade. Após abrir um longo corte vertical, soltei a faca e fui afastando os dois lados do peito, terminando de romper os ossos com as mãos. Ali está ele! A minha cura! Peguei o coração, seccionei os vasos que ainda o seguravam ao corpo e ele facilmente se soltou. Aqui está! Enrolei o coração da cigana num saco plástico e saí correndo, deixando o corpo ali mesmo. Entrei no carro e segui até o sítio da bruxa. Cheguei lá e fui entrando, extremamente afobado:

- Está aqui! O coração de uma cigana!

A velha me olhou com aqueles olhos quase brancos, pegou o embrulho em silêncio, abriu e começou a examinar o coração com cuidado. Ela tinha um jeito enigmático e aquela voz arrastada e de difícil audição me deixava nervoso, então eu perguntei:

- E agora, eu faço o quê?

- HUmm... Agora você não faz nada!

Aquela voz firme, mas quase sussurrada me enlouquecia.

- Hein? Como assim não faço nada?

- Não faz nada!

- Mas minha senhora, eu lhe trouxe o coração de uma cigana! E a senhora não sabe o trabalho que deu para arrumar essa porcaria de coração!

- O problema, meu jovem, é que esta mulher não era uma cigana!

- Impossível! Eu mesmo a vi lendo as cartas na rua!

- Humm...Era uma farsante! Não é cigana! Ela só se vestia como uma! Este coração não serve, não é um coração cigano!

Quando a velha disse isso, senti o mundo cair... Puta merda!

- Mas minha senhora! Por favor! Não dá para aproveitarmos este coração mesmo? Os corações são todos iguais!

- Não! Não há como enganar o demônio! Se quiser viver, arrume o coração de uma cigana, mas uma cigana legítima!

Todo esse trabalho em vão! Sem saber o que fazer apanhei aquele falso coração cigano das mãos da velha e atirei para os cães que estavam soltos pelo pátio. Sai apressado, em silêncio. Puxa vida, uma cigana de araque! Entrei no carro e sai em disparada em direção à cidade. É claro que eu me sentia ridículo naquela situação, ouvindo aquela mulher que parecia um boneco de trem fantasma sussurrar coisas como "não há como enganar o demônio" ou então "o sangue será o sabão que limpará o seu corpo", mas eu estava praticamente morto, e a morte é uma coisa ridícula mesmo. Maldição! Uma farsante! No caminho encostei o carro perto da onde tinha deixado o corpo. Deci e fui tratar de escondê-lo melhor, estava muito a vista. Filha da puta! Cigana de araque! Bem feito, agora está aí com um buraco cheio de formigas no meio do peito! Coloquei o corpo numa vala e dei no pé. Eu precisava achar uma cigana, então saí em alta velocidade em direção a cidade.

Entrei na cidade com o pé embaixo, foi quando olhei para a direita e vi um lugar minúsculo, com uma placa meio apagada que dizia: Bar do Cigano. Grudei o pé no freio e fui lá conferir. Entrei no estabelecimento, era realmente pequeno, com a tinta da parede toda descascada o que dava um ar meio depressivo ao ambiente. Olhei para o balcão e lá tinha um homem, com um bigode grande, uma camisa vermelha aberta até o peito e uma corrente de ouro no pescoço. Eu estava desconfiado, então sentei no balcão e pedi um maço de cigarros. Em quarenta anos de vida eu nunca havia fumado, mas como estava fodido mesmo, resolvi começar.

- Então quer dizer que o senhor é cigano?

Eu precisava ser meticuloso, conferir, ter certeza, não poderia arrancar o coração de outra mulher sem ter certeza absoluta, seria trabalho em vão, eu já estava vacinado, e então ele disse:

- Cigano! E com muito orgulho!

Ele falava alto, como todo dono de bar e como todo cigano, pelo menos aqueles que eu tinha visto na novela.

- Mas o senhor é cigano mesmo? Dos legítimos?

- Pois mais cigano que eu o senhor não vai encontrar pela redondeza.

Ele tinha mesmo jeito de cigano. Algo me dizia isso...

- E o senhor tem família, com certeza...

- Mas é claro! Onde já se viu um cigano sem família! Tenho minha mulher e as minhas filhinhas, que são os meus tesouros!

O cigano filho da puta deu a pista que eu precisava. Agora era só escolher uma e arrancar-lhe o coração...

- E estão aqui?

- Não, infelizmente estão em São Paulo, com os avós.

Cachorro desgraçado! Nem falei mais nada, sai do bar entrei no carro e sentei o pé no acelerador. Estava tão nervoso que nem percebi o caminhão que passou por cima do meu carro. Morri sem nem me dar por conta...

Zé Dylan Walker
Enviado por Zé Dylan Walker em 12/09/2009
Código do texto: T1807020
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