CARMELA
Estou louco em ouvir sua voz mas ela está fechada em si mesma. Vejo-a caminhando, diariamente, pela rua. Ela sorri para mim, acena com a cabeça, mas não fala.
Presumo que não more muito longe. Ignoro seu endereço. É uma fada solitária? Será a Branca de Neve residindo com os sete anões? Terá um príncipe encantado acordando-a todas as manhãs com um beijo?
Guardo segredo de minhas dúvidas. Um desejo infinito de, ao menos uma vez, ouvir sua voz assalta-me toda vez que a vejo. Tão jovial e bela ela caminha, sempre solitária, pela minha rua que é pouco movimentada. Moro num recanto calmo cercado de pessoas pacatas. As casas estão sempre abertas, raras são as que possuem grades. As crianças brincam na rua. Os meninos jogam bola usando, como goleiras, os chinelos que tiraram para ficar descalços e dominar melhor a pelota, às vezes, um simples par de meias enroladas. As meninas brincam de roda, pulam sapata e fazem casinhas na calçada indo visitar umas às outras levando suas hipotéticas filhas, as bonecas, elegantemente vestidas e maquiadas com exagero. Poucas vezes passa um carro, raramente, em velocidade alta.
Assisto a tudo, sentado no passeio. Quando a vejo apontar na esquina, em seu passo sempre igual, fico no aguardo que ela cumprimente com um sonoro “Boa Tarde!” ou, ao menos, um discreto “Oi!”. Mas é, invariavelmente, um aceno e um sorriso, o sorriso de Alice, aquela do País das Maravilhas.
Já são três meses que a conheço. Conheço, na verdade, a sua figura esbelta a passear pela rua. Às vezes, está de vestido, outras, de saia e blusa e, quando faz um pouco de frio, de blusa e calça de brim. Vista como se vista, é sempre uma silhueta de princesa, fugitiva de algum castelo medieval, perdida no meu recanto, a abalar meus sentimentos. Estou a cuidar-me para que não roube meu coração e então me prenda em seus encantos. Para que isso aconteça, talvez falte apenas ouvir sua misteriosa voz. Estou a postos todas as tardes, às cinco e meia, esperando que ela apareça. Ontem, dei-me conta de outra particularidade: só a vejo, à tardinha, indo no mesmo sentido. Nunca a vi em outro horário para ir ao lugar donde vem! Será uma aparição que, só eu, vejo!? Jamais comentei com pessoa alguma sobre ela e ninguém me falou dela nem mencionou seu nome!
Hoje amanheci pensando nela. Será ela Maria, a irmã de Joãozinho, aquela que empurrou a bruxa no forno ardente? Não correrá ela risco de vida com o Barba Roxa? Fiquei, de olho na rua, a manhã inteira desde o clarear do dia. Não almocei para não interromper o plantão. Parei, a tarde toda, no meu posto. Logo vai chegar a hora de sua aparição. Minha cisma chega às raias da irracionalidade. Se ela não vai, como pode vir? Irá por outra rua? Irá voando pelos ares, numa vassoura de bruxa, que, à tarde, se transforma, somente para me enfeitiçar e atrair ao seu reduto, onde atormentar-me-á com seus caprichos e sua maldade?
Penaliza-me o fato de pensar tantas coisas estranhas. Qual será a origem de minhas imagens? Teria eu readquirido minha condição infantil do faz de conta? Estaria ficando um caduco precoce? Ou estou loucamente apaixonado por ela?
Estou quase em transe. Um sufoco invade meu peito. Uma dor de cabeça me atormenta. Busco um copo de água, mas só gasto um tempo menor que o dela para passar. Sinto-me um pouco melhor, apenas, por alguns instantes. Não percebo a verdadeira duração do tempo. Na minha semi loucura nem consigo notar qualquer outro ser adulto. Somente vejo as brincadeiras das crianças e são elas que passam a distrair-me, fazendo-me esquecer gradualmente a preocupação atormentadora.
Agora passa das seis horas da tarde. Ainda estou sentado, na minha cadeira, no passeio. Não consigo conter as lágrimas, que tento esconder. Mais difícil ainda é a necessidade de abafar os soluços que sobem do peito. Não quero admitir a tragédia. Não posso entender os telepáticos avisos do dia de hoje.
Minha irmã acaba de contar-me que uma notícia de rádio informou, há poucos minutos, que Carmela, aquela linda deficiente auditiva, que todas as tardes passava aqui em frente, quando voltava da escola, onde fazia um curso de crochê, foi atropelada, ao descer do ônibus, na parada da entrada do bairro. Teve traumatismo craniano e está internada em coma profunda. Terá poucas chances de sobreviver.
Evitei qualquer pergunta ou comentário. Em hipótese alguma podia permitir que alguém soubesse da minha admiração pela Carmela.
Obs. Classificado e publicado em Antologia de Contos da UNIVAP - Univ. do Vale do Paraíba.
Estou louco em ouvir sua voz mas ela está fechada em si mesma. Vejo-a caminhando, diariamente, pela rua. Ela sorri para mim, acena com a cabeça, mas não fala.
Presumo que não more muito longe. Ignoro seu endereço. É uma fada solitária? Será a Branca de Neve residindo com os sete anões? Terá um príncipe encantado acordando-a todas as manhãs com um beijo?
Guardo segredo de minhas dúvidas. Um desejo infinito de, ao menos uma vez, ouvir sua voz assalta-me toda vez que a vejo. Tão jovial e bela ela caminha, sempre solitária, pela minha rua que é pouco movimentada. Moro num recanto calmo cercado de pessoas pacatas. As casas estão sempre abertas, raras são as que possuem grades. As crianças brincam na rua. Os meninos jogam bola usando, como goleiras, os chinelos que tiraram para ficar descalços e dominar melhor a pelota, às vezes, um simples par de meias enroladas. As meninas brincam de roda, pulam sapata e fazem casinhas na calçada indo visitar umas às outras levando suas hipotéticas filhas, as bonecas, elegantemente vestidas e maquiadas com exagero. Poucas vezes passa um carro, raramente, em velocidade alta.
Assisto a tudo, sentado no passeio. Quando a vejo apontar na esquina, em seu passo sempre igual, fico no aguardo que ela cumprimente com um sonoro “Boa Tarde!” ou, ao menos, um discreto “Oi!”. Mas é, invariavelmente, um aceno e um sorriso, o sorriso de Alice, aquela do País das Maravilhas.
Já são três meses que a conheço. Conheço, na verdade, a sua figura esbelta a passear pela rua. Às vezes, está de vestido, outras, de saia e blusa e, quando faz um pouco de frio, de blusa e calça de brim. Vista como se vista, é sempre uma silhueta de princesa, fugitiva de algum castelo medieval, perdida no meu recanto, a abalar meus sentimentos. Estou a cuidar-me para que não roube meu coração e então me prenda em seus encantos. Para que isso aconteça, talvez falte apenas ouvir sua misteriosa voz. Estou a postos todas as tardes, às cinco e meia, esperando que ela apareça. Ontem, dei-me conta de outra particularidade: só a vejo, à tardinha, indo no mesmo sentido. Nunca a vi em outro horário para ir ao lugar donde vem! Será uma aparição que, só eu, vejo!? Jamais comentei com pessoa alguma sobre ela e ninguém me falou dela nem mencionou seu nome!
Hoje amanheci pensando nela. Será ela Maria, a irmã de Joãozinho, aquela que empurrou a bruxa no forno ardente? Não correrá ela risco de vida com o Barba Roxa? Fiquei, de olho na rua, a manhã inteira desde o clarear do dia. Não almocei para não interromper o plantão. Parei, a tarde toda, no meu posto. Logo vai chegar a hora de sua aparição. Minha cisma chega às raias da irracionalidade. Se ela não vai, como pode vir? Irá por outra rua? Irá voando pelos ares, numa vassoura de bruxa, que, à tarde, se transforma, somente para me enfeitiçar e atrair ao seu reduto, onde atormentar-me-á com seus caprichos e sua maldade?
Penaliza-me o fato de pensar tantas coisas estranhas. Qual será a origem de minhas imagens? Teria eu readquirido minha condição infantil do faz de conta? Estaria ficando um caduco precoce? Ou estou loucamente apaixonado por ela?
Estou quase em transe. Um sufoco invade meu peito. Uma dor de cabeça me atormenta. Busco um copo de água, mas só gasto um tempo menor que o dela para passar. Sinto-me um pouco melhor, apenas, por alguns instantes. Não percebo a verdadeira duração do tempo. Na minha semi loucura nem consigo notar qualquer outro ser adulto. Somente vejo as brincadeiras das crianças e são elas que passam a distrair-me, fazendo-me esquecer gradualmente a preocupação atormentadora.
Agora passa das seis horas da tarde. Ainda estou sentado, na minha cadeira, no passeio. Não consigo conter as lágrimas, que tento esconder. Mais difícil ainda é a necessidade de abafar os soluços que sobem do peito. Não quero admitir a tragédia. Não posso entender os telepáticos avisos do dia de hoje.
Minha irmã acaba de contar-me que uma notícia de rádio informou, há poucos minutos, que Carmela, aquela linda deficiente auditiva, que todas as tardes passava aqui em frente, quando voltava da escola, onde fazia um curso de crochê, foi atropelada, ao descer do ônibus, na parada da entrada do bairro. Teve traumatismo craniano e está internada em coma profunda. Terá poucas chances de sobreviver.
Evitei qualquer pergunta ou comentário. Em hipótese alguma podia permitir que alguém soubesse da minha admiração pela Carmela.
Obs. Classificado e publicado em Antologia de Contos da UNIVAP - Univ. do Vale do Paraíba.