JUSTA VINGANÇA

A fragrância floral de seu corpo mistura-se ao cheiro de sândalo e cigarro . Preferiu manter as luzes apagadas para o luar derramar sua luz solitária no aposento. Um quadro idílico do luxo. A cama redonda com lençóis de cetim rosa desarrumados como um mar revolto, a estátua de Diana em mármore próxima à janela, as paredes brancas e nuas, um barzinho de mogno, um grande guarda-roupa com dobradiças cromadas, a porta de vidro verde da suíte entreaberta, o piso de madeira corrida cor marfim. Muitos deveriam achar aquele quarto o máximo em requinte, para ela, no entanto, era um ambiente tão espartano quanto a recepção de uma clínica particular. Na verdade, impessoal como um quarto de hotel.

Todas as vezes que esteve ali sentiu-se sufocada. No início, não entendia porque. À primeira vista tudo era tão bonito; luxo e modernidade, uma combinação espetacular. Cada canto transpirava poder.

Levanta suave da cama, aproxima-se da grande janela em arco,uma imagem difusa e azulada desenha-se no vidro. Parecia-se com sua irmã, Isabela. Seu rosto era mais largo na linha das maçãs e se estreitava no queixo levemente arrendondado, o espaço entre os olhos castanho-claros era um pouco maior, as sobrancelhas arqueadas e finas, o nariz pequeno e sutilmente arrebitado, os lábios carnudos. Seus cabelos eram ondulados com tons de castanho e loiro, uma impulsividade recente. Isabela nunca faria isso.

Impressionava-se com a passividade que do reflexo. Era ela mesma? Algumas horas antes achava que se conhecia, agora não fazia idéia.

As milhares de pessoas de pessoas que passavam pelas ruas incandescentes desconheciam o que acontecia na cobertura de um dos condomínios mais caros da cidade, tampouco o furacão que rugia na mente de uma bela jovem de vinte e seis anos. Estava no topo da sociedade e no abismo da alma. Tudo parecia tão surreal, não conseguia sentir nada.

Ela se volta para a estátua. Sempre achou que ali não era o lugar de Diana por sua indiferença ao amor. Devia ser condenada aos jardins. Se deveria haver uma estátua naquele quarto, embora achasse inapropriado, que fosse Vênus ou Afrodite. De qualquer forma, tudo não passava de uma grande besteira, bizarrice da alta sociedade. Aquele recinto com suas janelas imponentes, sua amplidão impressionante nada mais era que a o retrato de uma personalidade ordinária. Isso a enojava.

Qual o limite da razão? O que define o normal é viver dentro das leis, cumprir com suas obrigações? O que é a justiça num mundo em que ela pode ser tão facilmente comprada por quem transpira dinheiro como se fosse um quilo de arroz? Ninguém poderia determinar regras ali. Estaria enlouquecendo? De repente sentiu vontade de conversar, mas não com alguém que discordasse ou concordasse, contaminado pelo sistema sujo do mundo.

Foi então que ela notou os olhos de Diana. Aqueles glóbulos totalmente esbranquiçados pareciam injetar-se nela surpreendendo-a em algum ato. Pelo pouco que sabia da lenda, Diana transformou o caçador Acteão em um cervo quando este a flagrou tomando banho. Talvez o mesmo quadrúpede que agora recostava-se alegre em suas pernas. Se todas as mulheres tivessem esse poder...

-Não gosto de você- diz ela a Diana-mas reconheço que é corajosa. Já eu, sou uma covarde, tenho medo de confrontos. Basta falarem num tom mais alto para eu chorar, por isso evito discussões. Se alguém me flagrasse como você?Não sei se lançaria uma flecha se tivesse ao alcance como fez, talvez gritasse, xingasse, mas agredir...Odeio violência.

Uma sombra perpassa sobre a face da estátua emprestando-lhe uma expressão inquiridora. Os pêlos da nuca da jovem se arrepiam.

-Nunca surpreendeu a si mesma?Eu não acredito em vidas milimetricamente corretas, se cavarmos bem fundo sempre encontraremos algo de sórdido. È a natureza humana.Tudo bem que alguns cometem erros maiores que outros, mesmo assim, ninguém pode dizer que é puro. No final das contas somos todos corruptos...

A última palavra fica suspensa no ar, o silêncio a incomoda. Até então não se dera conta, mas havia uma música algumas horas atrás, um instrumental de sax sabia-se lá de quem. Um frio úmido toca em seu corpo esguio. Sentia-se tão solitária e vazia como aquela escultura.

Fecha o robe de seda vermelha, caminha até a cabeceira da cama, apanha um controle remoto, em seguida aponta para alguma direção e uma música inunda a atmosfera: “What a wonderful world” na voz de uma cantora que ela não lembrava. Melodiosa, afinada, no entanto, nem se comparava ao vozeirão de Louis Armstrong. Era o tipo de música que só vivia pelo timbre do próprio autor.

Ela entra no banheiro. De frente para a porta há um espelho de um metro e oitenta por dois com folhagens entrelaçadas em jato de areia nas bordas.À esquerda havia uma banheira de hidromassagem com água pela metade, à direita um vaso verde musgo e uma pia de mesma cor. Aproxima-se do espelho, toca na própria imagem com a ponta dos dedos.

-Ah, Isabela, por que as coisas tinham que ser assim?Eu sinto tanto a sua falta. Acho que nunca vou me conformar com isso. Agora que posso ser eu mesma parece que minha vida não tem sentido. Será que agora você vai me perdoar? -abaixa a cabeça, bate com o punho na superfície espelhada- Por muito tempo tive raiva de você, mas no fundo te amava, minha irmã. Não sei porque parecia que papai gostava mais de você, éramos tão parecidas. Marissa é irresponsável, inconsequente, dizia ele.Ha,ha.Se ele soubesse o que fiz agora...

Seus olhos se voltam para a imagem e ela se assusta. Aquele era seu rosto, mas o cabelo curto, claro e rebelde era de Isabela. Aterrorizada e confusa, Marissa se afasta de costas, as mãos trêmulas tateiam o vazio, se aquietam ao sentir o frio da parede. Ela não consegue tirar os olhos do reflexo imóvel como uma fotografia.

Isabela seria exatamente daquele jeito aos vinte e seis anos. Talvez se tornasse uma bióloga como sonhava, vivesse fazendo pesquisas em arquipélagos, lecionasse numa faculdade. Acreditava tanto em seus objetivos e na vida que não se podia imaginá-la frustrada ou desesperançada. As dores eram menores que sua personalidade, tinha uma energia incrível!Até que conheceu um homem magnífico e mais velho. Na época, contava apenas dezoito anos e ele trinta. Conheceram-se na academia, descobriram afinidades;ele se encantou com o entusiasmo, força e beleza que ela tinha e Isabela, sempre gostara de homens maduros. Não tinha paciência para garotinhos.

Quando todos achavam que era apenas uma fantasia adolescente e acabaria logo, ela decidiu morar com o homem. Impedir Isabela de fazer alguma coisa era o mesmo que tentar conter uma tempestade, ela sempre conseguia o que queria por bem ou por mal. Mesmo sob ameaças de não encontrar mais a porta de casa aberta ,arrumou suas malas e foi viver seu sonho.

Foram os piores dias no lar dos Oliveiras. O pai tornara-se taciturno e áspero, a mãe deprimida e Marissa, cada vez mais indignada com a atitude de Isabela. Várias foram as vezes que tentou persuadi-la a voltar para casa e recebeu desaforos.

Cinco meses depois, numa noite chuvosa, Isabela retornou. Mas era uma imagem distante da menina entusiasmada e linda que saíra pela mesma porta. Em torno dos olhos havia manchas escuras e profundas, a face encovada, os cabelos repicados, desalinhados e sujos, o corpo esquálido, a postura curvada e uma protuberância na barriga. A irmã de Marissa, tal como ela conhecia nunca mais voltara,aquela era uma sombra distorcida do que Isabela foi.

Ela não pôde ficar em casa. Seu estado de saúde, debilitado por uma rotina de drogas e bebidas, a obrigou a ir para uma clínica de reabilitação, como se não bastasse, estava grávida.

Nas muitas vezes que Marissa visitou a irmã, viu-a sempre cheia de ódio e rancor, principalmente contra a vida que carregava dentro de si. Achava que estava tudo acabado e não poderia continuar em frente. Marissa esforçava-se para fazê-la enxergar algo de bom e encontrar forças em Deus.Mas havia raros períodos em que aquela estranha deixava a antiga Isabela transparecer e contar como outrora os seus sonhos.

Há poucos dias para o Natal, Marissa ajudava a mãe na decoração da casa quando o telefone tocou. Seu pai foi quem atendeu e a expressão dele ficou marcada em sua memória. Ela nunca soube exatamente como disseram na ocasião, mas os olhos de seu pai traduziram tudo. Isabela havia fugido da clínica. Isso foi um dia depois de terem combinado que ela passaria o Natal em casa.

Essa fase não demorou muito. Em uma batida policial numa clínica de aborto encontraram Isabela, morta. Desde então, aquela família nunca mais foi a mesma.

Marissa estava naquele quarto porque durante anos não perdoou o responsável pela desgraça de sua irmã e a destruição de sua família. Estava lá porque entendia que ninguém iria puni-lo, que continuaria feliz sem qualquer peso na consciência.

Ela se despiu de si mesma para assumir o lugar da irmã. Construiu uma identidade falsa, mudou hábitos, apenas para se aproximar daquele homem . Não encontrou dificuldades visto que ele nunca mais soube nada a respeito de Isabela e eram por demais parecidas. Qualquer tipo de diferença poderia ser atribuída ao tempo, afinal conheceram-se há quase sete anos atrás.

Firmaram um relacionamento de três meses nos quais Marissa procurou não só cativar a confiança dele como dominá-lo por completo até o momento adequado, até aquela noite. Na verdade ele mesmo contribuiu com seus planos ao deixar-se dominar pela bebida e as drogas. Não tinha idéia do que havia tomado, mas o efeito o deixou inconsciente e vulnerável.

Marissa remoía suas recordações quando viu aquela aparição no espelho e isso a instigou a seguir adiante com seu plano. O que mais tinha a perder? Sua vida era medíocre como professora de uma escola pública, sua mãe encontrava-se internada como um vegetal, não tinha grandes ambições. Mas aquele infeliz tinha muita coisa a perder, era um homem bem sucedido, tinha propriedades, filhos até, embora distantes devido ao divórcio.

Ela se volta para o quarto com um novo ânimo. O homem está sentado no chão recostado na cama, a cabeça caída para frente, os braços pendidos, ao lado um copo virado.

Devagar e resoluta, Marissa sobe na cama. Tira o cinto do robe, enrola-o no pescoço do homem e sussurra em seu ouvido:

-Você acabou com a vida da minha irmã, com a minha família e a minha, agora vai pagar por tudo. Achou que poderia se safar assim? Eu sei que foi você que levou ela para a mesma fossa de drogas, sei que a engravidou e expulsou de casa quando soube, como se fosse uma cadela. Desgraçado, você não merecia aquela garota. O maior erro dela foi ter se apaixonado por um cretino.

Ela suspira, sorri. Com uma das mãos puxa a cabeça dele para trás pelos cabelos.

-Seu maior erro foi se apaixonar por ela de novo. Que ironia. "Quisquis iniqua facit, patiatur iniqua, necesse est".Acredita nisso? Quem faz neste mundo, aqui mesmo paga, não é o que muitos dizem?Meu pai achava que a justiça está nas mãos do Criador, só que não sou paciente,certas pessoas demoram muito a serem punidas...na verdade acho que isso é muito pouco para você.

Marissa se levanta, vai até o barzinho, apanha uma garrafa de vodka e uma caixa de fósforos. Em seguida, derrama o líquido sobre a cabeça do homem.

-Interessante como a vingança nos torna mais criativos- diz ela.

Joga a garrafa sobre a cama e inspira fundo. Sentia-se frustrada por achar que aquele safado não sofreria a metade do que sua irmã sofreu. Talvez a morte fosse até um alívio, ainda mais no estado em que se encontrava. Não, não poderia ser assim. Ele precisava presenciar o seu fim, que não era poderoso como imaginava.

Com toda força arremessa a mão na face dele, depois outra vez e tomada por uma fúria primitiva, esbofeteia-o até o rosto encher-se de hematomas e seus dedos mancharem de sangue, então cessa exaurida pela raiva. O homem lança-lhe um olhar vazio, os lábios inchados entreabertos. Marissa vira o rosto para o lado. Ele ergue debilmente um dos braços e deixa-o cair.

-Cansei desse jogo.- ela confessa- Não quero mais perder tempo com um idiota como você.

Entrelaça nos dedos o cinto de seda amarrado ao pescoço e puxa. Ele cospe um gemido sufocado, as pernas se debatem entorpecidas, as mãos rastejam até a jugular, tentam desapertar o nó, mas estão fracas demais. Os olhos de Marissa queimam, seu coração palpita acelerado, um gosto amargo escorre em sua garganta.

De súbito, ouve um som distante, abafado, um intruso em seu momento de vingança. Ela não quer parar, mas aquele som a incomoda, mexe com sua determinação. Seus dedos se afrouxam, o corpo aos seus pés desaba para o lado.

Automaticamente ela pega sua bolsa na cabeceira da cama e retira um celular estridente. Abre o flip e antes que possa dizer alguma coisa é interrompida por uma voz autoritária:

-Seja lá o que você estiver tentado fazer, pare. Pode achar agora que não tem nada a perder, mas depois vai lamentar pelo resto da vida, vai desejar voltar no tempo e não cometer o mesmo erro. Vai se odiar a cada minuto e viver um inferno.

-Mas...

-Não quero saber. Escute bem o que estou falando. Saia agora.Não pode consertar o passado, mas pode dar um jeito no futuro.

-Quem, quem é você?

-Não se faça de tola, eu sei o que planeja.

Marissa fica em silêncio. Tenta relembrar de todos os que conhecia, associa rostos, vozes, situações. Impossível! Ninguém sabia de seu relacionamento, muito menos que estaria naquele lugar. Em conversa alguma sequer fez menção de estar revoltada com a morte de sua irmã. Todos achavam que estava conformada.

-Olha, eu realmente não sei quem é você, mas acho que ligou um pouco tarde demais.

-Não adianta querer me enganar, não. Você é que está enganada se pensa que pode esconder as coisas assim. Escute o que tô te dizendo, cai fora.

Está assustada. Seria o porteiro? Não, que bobagem, como ele conseguiria seu número? Quem mais tinha?

A luz do luar aponta para o homem no chão, o rosto arrebentado, o peito subindo e descendo fracamente. Vivo. Marissa não terminara por causa de uma chamada por engano.Que ironia! Aquilo foi o mesmo que uma sacudida nos ombros depois de um choque. Toda aquela raiva e sentimento de justiça se esgotou.Cedo ou tarde acabariam descobrindo, ela perderia a liberdade, o respeito, a confiança por causa daquele lixo. A idéia de passar o resto da vida numa cela infecta, amontoada com criminosas de todo tipo a estremeceu. No final das contas, sua irmã é quem havia tomado a decisão errada, ela não era nenhuma menininha inocente que acompanhou um estranho. Era inteligente, madura, dona de si.

Não, não precisava ser o anjo vingador de ninguém. Seu momento decisivo era agora.

-Ainda está ai?-perguntou a voz.

-Escute, isso tudo é um engano, mas eu agradeço mesmo assim. Se pretendia avisar alguém de alguma loucura, conseguiu com a pessoa errada, mas é melhor tentar de novo...Como se chama?

Silêncio. Ouve-se um chiado. A voz soa mais tranquila.

-Desculpe, e boa sorte- Desliga.

Marissa apanha o cinto do seu robe, cutuca com um pé o corpo estirado no chão, o homem resmunga alguma coisa. Vai ao banheiro, se troca, detém-se no espelho e admira o rosto, seu rosto.

O homem mexe a cabeça para um lado, para o outro, senta-se. Gosto de sangue na boca, cabeça latejando.Não lembrava de muita coisa, apenas da voz distante daquela garota estúpida cujo nome não lhe vinha à memória. Onde ela estaria?Apanha um cigarro no bolso traseiro, olha ao redor, vê uma caixa de fósforos aos pés de Diana.

Ele se arrasta em direção à ela, as mãos trêmulas tateiam o mármore e ao se firmarem para encontrar apoio, acidentalmente puxa-a sobre si.A flecha de pedra perfura seu rosto e tudo se desfaz na escuridão.

Quando Marissa sai do banheiro, não sente e não pensa em nada ao ver o cadáver.Olha-o como se fosse parte da estátua,mais uma caça de Diana.Sorri levemente e sai.

Renan Moraes
Enviado por Renan Moraes em 25/08/2009
Reeditado em 12/05/2010
Código do texto: T1773712
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