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Era um lugar bem grande. Tinha várias ruazinhas cercadas de pequenos bosques. Dentre estes bosques havia algumas clareiras, iluminadas por tochas, que davam um toque de mistério ao lugar. Era noite, com a lua mais cheia que eu já vi.
Estava com um amigo meu, boa pessoa, admirado pelas mulheres, com um instinto de sobrevivência inigualável. Ele é que me havia arrastado para aquela festa estranha, que acabou mudando minha vida.
Circulávamos pelas vielas em busca de duas mulheres que quisessem nos dar um pouco de diversão. Se você está em uma festa estranha, em um lugar estranho, peça ao garçom para te servir vodca com soda e limão. Ajuda muito a entrar no clima.
Foi perto de uma daquelas clareiras que tive uma surpresa.
Primeiro um som diferente do que estava tocando no resto do bosque. Parecia algo espanhol, acompanhado por palmas entusiasmadas. Depois tomei um choque difícil mesmo de descrever. A luz que vinha das tochas dava um tom amarelado à mulher mais maravilhosa que meus olhos já tinham visto. Era alta, com cabelos muito negros que desciam bem lisos pelos ombros, fazendo leves ondas no meio das costas. Tinha um corpo que desconfio que Deus tenha levado um pouco mais de tempo para moldar, seios fartos, cintura um pouco fina e pernas muito bem torneadas. E dançava maravilhosamente bem, jogando os quadris de um lado para o outro, e movimentando as pernas ao som da música espanhola.
Fiquei pasmo, imóvel um momento. Só voltei a mim quando senti alguma coisa no braço direito. Era o meu amigo, Lucas, que me cutucava.
_Ô cara, acorda! Que morena, hein?
_Não sei o que dizer. – respondi, e realmente não conseguiria falar mais nada naquele momento. Ouvi Lucas dizer:
_Vou buscar uma cerveja. Quer alguma coisa?
Pedi mais um pouco de vodca e ele se afastou, mas eu mal notei.
Fiquei olhando aquele monumento rebolando com muita graça e sensualidade. Minhas pernas ficaram moles quando ela se virou para meu lado e começou a vir na minha direção, sempre dançando.
Parou perto de mim e ficou girando como que em um eixo, sem sair do lugar. Só então pude ver melhor seu rosto. Que rosto! Seus olhos eram de um verde forte, cílios longos, nariz levemente pontudo, mas pequeno. E a boca. Grande, bem desenhada, vermelha, como se me convidasse para mergulhar nela e fazer as maiores loucuras.
Mas seus olhos tinham alguma coisa a mais. Não sei descrever, mas na hora me lembrei da Capitu, do Machado de Assis, com seus “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Enfim, eram olhos misteriosos, convidativos, sábios e moleques. Eram olhos irresistíveis.
Chegou bem perto de mim e passou os braços pelos meus ombros. Tinha parado de sorrir e de dançar. Um calafrio passou pela minha espinha no momento em que ela olhou fundo nos meus olhos. Disse:
_Seu amigo, você gosta dele?
Não entendi a pergunta. Como assim, se gosto dele? Claro que sim! É meu amigo.
_Hoje à noite olhe bem para o rosto dele, memorize a imagem. Você nunca mais vai vê-lo.
E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa ela saiu novamente rebolando, mas desta vez passou reto pela roda em que tocavam música e se desapareceu por trás de algumas árvores.
Se você tivesse o poder de saber o futuro antes que aconteça, você faria alguma coisa diferente? Será que nosso futuro já está traçado ou é criado a partir das nossas escolhas, como conseqüência delas? Se eu soubesse o que iria acontecer naquela noite teria agido diferente. Ou não, não sei dizer agora.
 
Lucas voltou com a bebida, estava alegre, mexia os ombros no ritmo da música, não aquela espanhola, que já tinha parado, mas outra. Ele me entregou o copo com a bebida e fez algum comentário sobre a bailarina morena que estivera dançando antes ali. Acho que perguntou onde ela tinha ido. Mas eu não estava prestando atenção.
As palavras desconexas da bailarina ficaram ecoando na minha mente, sem que eu conseguisse descobrir o que significariam.
Mais ou menos às três da manhã decidimos ir embora. A festa não tinha sido proveitosa, não no sentido que esperávamos, e Lucas estava meio bêbado. Pensei em fazê-lo desistir de ir dirigindo, mas o carro era dele e eu estava tão passado quanto ele. Se não mais.
Entramos no carro, um Corcel 77, lindo, quase novo, do qual Lucas sempre teve muito orgulho, muito ciúme. Ele deu a partida e eu meio que adormeci no banco do carona.
Morávamos no mesmo apartamento, num bairro um pouco afastado do centro, onde tinha sido a festa. Para chegar em casa tínhamos que pegar uma estrada mais movimentada, que na verdade era o único acesso ao nosso bairro de periferia.
Acordei ligeiramente, um pouco zonzo, tomar vodca não é tão bom assim. O velocímetro marcava mais de cento e trinta por hora. Talvez tenha falado para o Lucas diminuir a velocidade. Não me lembro. Só me lembro do que vi depois.
Na nossa frente, ainda distante, consegui ver luzes vermelhas, que indicavam a traseira de um caminhão grande, talvez daquelas carretas de mais de quinze metros, não sei dizer. As luzes se aproximaram rapidamente e, antes de desmaiar, vi algo que tenho certeza que Lucas não pôde ver. Luzes de freio. Foi a última coisa que vi.
Ao invés do filme de toda minha vida, a única coisa que passou pela minha cabeça naquele momento foi a imagem da bailarina espanhola e as palavras que ela havia dito. Escuro.
 
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Fábio Codogno
Enviado por Fábio Codogno em 21/08/2009
Código do texto: T1765761
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