Mundos Paralelos
Há um choro de chuva no rosto pétreo do anjo que só vê com olhos de mármore e silêncio. Estar-se ali é estar-se só uma vez que as estátuas só existem para evocar memórias e nunca para acompanhar ou legar conforto. De todo o modo, emergindo dos lírios vermelhos e dos fumos tremeluzentes dos círios, a mulher ergueu-se dando por findo o ritual de saudosa veneração. Apressou-se rumo ao portão de ferro e desapareceu na neblina da tarde fazendo esvoaçar os crepes. Pareceu-me demasiado jovem para viúva mas, por outro lado, muito firme para não ter certezas importantes. Na expectativa de a rever voltei, nos dias seguintes, uma e outra vez, a passar na alameda dos ciprestes, lá onde se perfilam os oragos que sinalizam a capela devotada aos santos do fim. Em vão. Dir-se-ia que o túmulo do anjo cego voltava a estar abandonado tão ermo de velas e flores se mostrava no afago de chuvas e ventos.
Quando amainou o inverno, um azul forte de violetas aconteceu sobre a lousa escura. As flores, presas em laço de seda, foram para mim um sinal de retorno, tão forte foi a sensação de saber que mãos as haviam deixado, que perfil se dobrara na homenagem, que lábios murmuraram as orações do preito. Depois vi-a, elegante e sombria, como que alheia ao ambiente, a tomar chá na esplanada da esquina. Aliviara o luto e parecia serena. Por mais que tentasse não consegui fazer-me notado. Ainda assim, preso ao desejo de a ver, deixei-me ficar naquele verdadeiro posto de observação a inventar mil histórias, todas plausíveis, sobre aquela mulher misteriosa. Foi então que ele chegou, alto, moreno e rude. Puxou a cadeira e sentou-se. Pouco falaram mas percebi que o semblante dela se fechava, os dedos se crispavam sobre o fecho da mala e que grossas lágrimas rolavam pela lisura fresca do rosto à medida que ia lendo as folhas de papel que ele mostrava.
Cada vez mais intrigado com a cena, acompanhei-os com o olhar até se perderem ao fundo da rua. Na verdade não consegui desligar-me de toda esta trama uma vez que voltei a cruzar os itinerários anteriores até chegar ao túmulo de linhas clássicas, cripta colectiva de uma família nobre cujo nome já o tempo delira parcialmente. Havia sinais recentes de intervenção na laje mas nenhuma data das que ali figuravam se reportava ao século vinte e um. Achei estranho e tentei saber, junto da secretaria do cemitério, de quem fora a última inumação e quando tivera lugar. Surpreendente, a resposta viria a ampliar a minha inquietação uma vez que, depois de 1959, ninguém voltara a ser sepultado naquele talhão! Por explicar ficariam, assim, as flores, as velas, o luto e o pranto de uma jovem mulher a honrar um morto recente que, supostamente, ali estaria depositado.
Quando o real se mistura com a ficção há lugar para todas as conjecturas. Se a mulher tivesse sido movida, apenas, por simbolismos por que razão existiam sinais de abertura do sepulcro? Se, por outro lado, houvera, como tudo parecia indicar, um sepultamento, por que não havia registo desse facto? Como se faz um funeral à revelia de normas e leis? Com que objectivo? Aturdido com as várias questões que afloravam ao meu espírito, senti, instintivamente, que deveria mover-me, neste caso, com a maior cautela. Qualquer descuido poderia ser-me fatal. Melhor seria ignorar o casal de desconhecidos e esquecer que algo de anormal poderia estar a acontecer. Afinal, de há uns anos a esta parte, o nosso País, tem sido um lugar privilegiado de encontro de gentes e culturas, entreposto de negócios nem sempre ortodoxos e, mercê da ductilidade do nosso temperamento, a região ideal para bons, medíocres e maus. Somos a periferia da Europa, a fronteira de um mundo que se espraia para o continente africano e para a generalidade das Américas, esse palco de todas as mudanças. Quantos imigrantes ilegais, quantos mafiosos, quanta ralé social se move pelos nossos caminhos? Desamparados uns, perigosos outros e todos desaconselháveis como parceiros de vida, são o mosto de uma sociedade que leveda a sua sede de estabilidade e segurança ao arrepio das facilidades comunitárias que já se esgotam nas novas políticas.
Serão sempre ingénuos os bons samaritanos deste tempo mas, apesar disso, sinto que me cabe, ao menos, descobrir o recorte desta teia onde penso que se debate uma mulher jovem, sensual e distinta, tudo belos motivos para ignorar prudências e vestir a pele do naif desavisado.
Incluí nos meus roteiros, consequentemente, todos os locais ligados a este caso e deixei que a história evoluísse sem forçar as pesquisas. Descobri que o moreno rude, de nome Samuel Gouveia, era chefe da secretaria do cemitério. Homem austero e calado, geria o serviço com inflexível rigor e era temido por todos os demais funcionários. Cabiam-lhe as decisões e não havia lugar a contraditório. Apesar disso era considerado um homem honesto e justo. Como não tinha amigos entre os colegas, ninguém o conhecia em pormenor. Usava nome português mas os seus hábitos e maneiras apontavam culturas estranhas e isso notava-se sem esforço. Provavelmente o féretro fora feito à luz do dia, como é obrigatório, com acompanhamento e função religiosa, bem como com os coveiros do costume. Afinal, a ilegalidade mais viável, é a que se confunde com a lei... O acento, esse, talvez tivesse sido exarado em folhas destacáveis uma vez que não fazia parte das listagens gerais. Fácil para quem manda e pouco provável para quem obedece, conclui. Deste mistério ficava a faltar-me, no entanto, o principal...
Quem era o morto? Que parentesco haveria entre ele e a bela mulher enlutada? Pessoa querida, disso não havia dúvida a avaliar pelo desgosto que patenteava e pela ternura posta nas visitas efectuadas ao túmulo. A minha curiosidade crescia sem controlo e só a custo não forcei um diálogo com a jovem na vez seguinte em que a vi, ainda chorosa, renovando as flores. Ela desapareceria a seguir e o Samuel Gouveia também. O anjo voltou à sua solidão parda uma vez que ninguém apareceu, por ali, durante muito tempo e eu próprio me dediquei a outras e mais dinâmicas procuras esquecendo estas personagens.
Certo dia, porém, assistindo ao telejornal, pareceu-me reconhecer Samuel Gouveia num grupo de reféns em poder de rebeldes russos. Designados por párias, os prisioneiros imploravam às instituições internacionais pela suas vidas mas tudo indicava que seriam sacrificados. Na verdade, aquela organização política possuía ramificações por toda a Europa e operava a muitos níveis em negócios escusos e violentos destinados a pagar a respectiva luta armada. Lisboa estava nos seus objectivos e essa seria a razão pela qual um pequeno conjunto de pessoas fora destacado para actuar entre nós. Especialmente treinados para o efeito, tinham documentação falsa e falavam português. Deste grupo, só o Samuel Gouveia tinha sido identificado pelos serviços de segurança nacional como estando em situação legal uma vez que os restantes continuavam a monte ou estavam mortos. A reportagem contava, depois, como alguns eram abatidos quando as autoridades locais os submetiam a vigilância capaz de comprometer os objectivos. As mortes nunca deixavam rasto porque, salvo poucas excepções, oficialmente, as suas vítimas não existiam!
Teria sido esse o motivo que levou ao sepultamento clandestino? Acreditei que nunca o saberia embora uma forte intuição me aconselhasse a analisar de perto todo o local do anjo de pedra. A inumação fora cuidada, o novo betume fora posto com todo o preceito e, de certo modo, isto confirmou a minha tese de um funeral convencional. Recolhi, a seguir, os restos das fitas, os recipientes das velas e verifiquei de novo a lápida dos nomes que não sofrera alteração. Este material serviria para tema de meditação, se nenhum outro pormenor fosse detectado.
“ Os mortos não sabem nada”, garante a Bíblia, mas as pessoas que lhes prestam culto, acreditam que eles as podem ver, escutar e sentir. Deveria ser terrível para a jovem deixar flores para um ente querido num jazigo colectivo abusivamente utilizado e isso talvez justificasse a dedicatória, quase ilegível, no verso das fitas : a Mikhail José, com amor. Também estava assinado com um M.
Congratulei-me com as descobertas. As peças do “puzzle”, finalmente, principiavam a encaixar-se! Sabia o nome do defunto e, também, que havia fortes probabilidades de ter ascendência russa e portuguesa tendo em consideração o nome híbrido. A verdade total, no entanto, não seria fácil de obter a menos que viesse a falar com a mulher ainda incógnita ou que, por outro acaso insólito, ela me fosse abruptamente revelada. É óbvio que poderia continuar a especular imaginando soluções diversas mas achei que isso não seria nem razoável nem tranquilizador.
Voltei ao cemitério no dia de fiéis defuntos, isto é, a 2 de Novembro. Brilhavam milhares de flores ao sol matinal. Rosas e agapantos, crisântemos e lírios. As pessoas de negro marcavam presença, trocavam a água das jarras, postavam-se à beira dos jazigos e por ali ficavam entre as conversas de família e o assear das campas. Pesava o ar e a tristeza só se aligeirava nos olhares dos mais novos para quem o luto não pesa nem tem sentido. O túmulo do anjo, sem sinais de visita recente, assim permaneceu quase até ao final do dia, altura em que ela apareceu amparando uma velhota de chapéu e luvas, bengala de punho de prata e andar vacilante. Depositaram o ramo de rosas brancas, recolheram-se como que em meditação e saíram, discretas, pelo portão lateral quando já todos haviam abandonado o local. Segui-as de longe e pude, finalmente, ver a casa onde ambas entraram.
Era um palacete de estilo neo-romântico, do século XIX, a ameaçar ruína. As ervas daninhas medravam nas floreiras do pórtico e o brasão, quebrado, lembrava as antigas glórias da família que foi socialmente importante até à implantação da República, altura em que quase todos os seu membros emigraram para Leste para evitar as perseguições revolucionárias. Armeiros de referência em Portugal e Espanha, presume-se que se tivessem mantido no mesmo ramo e é dado adquirido que os mais novos dos Cantábria e Albuquerque enveredaram mesmo pelo tráfico e venda ilegal de armas tendo, para o efeito, de integrar os grupos políticos que, agora, os perseguiam.
Só a última matriarca permaneceu no País. Velha, viúva, doente e esquecida, sobreviveu aos desaires com o garbo e a qualidade possíveis, disse-me na entrevista que, depois de aludir a Mikhail José, viria a conceder-me. Vivia de uma pequena pensão e, segundo contou, só recentemente soubera do que aconteceu à família mais próxima, designadamente a Mikhail, seu sobrinho, recentemente regressado a Portugal, clandestino e anónimo, para poder tratar-se do mal que o vitimaria pouco depois. Na sua protecção empenhou todos os esforços e influências mas não foi possível libertá-lo para a vivência de uma vida normal impedida pelas perseguições da nossa polícia e das gangues do Leste. Mikhail trouxe consigo a irmã, Mareshka, sobre quem poderiam exercer represálias...
A papelada que Samuel Gouveia mostrara à jovem Mareska era a certidão de óbito, o acento da inumação no cemitério e as respectivas traduções que deveriam ser remetidos aos rebeldes, na Rússia, tendo em vista implorar o fim da perseguição à restante família. Logo que tal lhes fosse possível, legalizariam as situações dúbias incluindo a inclusão do nome do defunto na lápida do túmulo. Esse seria o remate dos seus esforços e, também, o sinal de que deixariam de ter necessidade de se esconder. Saí atordoado com o relato e, decidido a esquecer este caso, voltei às minhas rotinas.
Nunca mais vi qualquer das pessoas citadas nesta história um tanto macabra mas sei que teve um final feliz uma vez que, na lápida do túmulo, destacando-se do conjunto, já figura o nome de Mikhail José Cantábria e Albuquerque.