COMENSAIS

COMENSAIS

O seqüestrador encapuzado perguntou ao refém com os pés e mãos amarrados: “Mano, gosta de que tipo de música?” - Tirou-lhe a mordaça para que pudesse responder : “ música erudita! “ O que é isso, mano?” “ Música clássica, as que têm violino....” “Sei...” “Gosta de funk?” “Que tipo de funk?” “ Os que tocam na comunidade, fala a verdade, mano!” “Não, para falar a verdade não conheço direito...” – queria explicar-lhe os motivos, óbvios, mas preferiu calar-se. “ Claro, gosto não se discute, mas e o senhor é riquinho, tem outro tipo de preferência... já era de se esperar sua opinião. então, mano, aqui só tem funk, vais ficar com esses fones no ouvido escutando nosso funk no máximo volume pra aprender a gostar, e, não tenta nenhuma gracinha, ouviu? “. O refém continuou jogado no chão do pequeno quarto, com os olhos e a boca vendados e pés e mãos atados atrás de seu corpo.

O seqüestrador, como todos os psicopatas, tem uma história singular. Até chegou a cursar o primeiro ano de medicina na USP, e foi o primeiro colocado na prova do vestibular. Sempre se destacou pela beleza física, por seus modos extremamente educados, elegantes, por sua diplomacia e por sua inteligência notória. Mas a característica mais forte era e sempre foi a falta de compaixão ao próximo, a frieza com que lidava com as situações. Só tinha e tem pena de si mesmo, qualidade inerente a todos os que são como ele. O motivo pelo qual abandonou a Graduação, foi estar muito acima dos conhecimentos ministrados pela instituição. Como gênio, já havia lido, em todos os idiomas, tudo sobre medicina, tinha de cor, páginas e mais páginas de livros com descobertas recentes e remotas. Para as pessoas, não demonstrava frieza, pelo contrário, só transmitia calor, interesse pelo outro, visando apenas seu bem-estar. O objeto de suas pesquisas é o cérebro, e tentava a todo custo vender a patente de uma brilhante idéia, que revolucionaria e daria novos rumos às pesquisas. Com audácia, conseguiu, um de cada vez, reunir a nata da pesquisa na medicina e, pausadamente explicava o início de sua mais recente descoberta : Uma forma de ligar certos pontos do cérebro, com ilustração dos procedimentos cirúrgicos feitos em computador, com inúmeros fins, desde terapêuticos indo até a telepatia. Para cada caso, havia um esquema. E o mais importante era, o desenvolvimento de um super-homem, através de uma simples mudança genética no embrião. A proposta dele era ir liberando aos poucos as informações, a medida em que fosse recebendo vultosas quantias. A pesquisa era séria, o único problema era não ter o diploma para o exercício da medicina. O que diminuía sua credibilidade no meio. Também pecava em usar seres humanos como cobaias e não exitava quando precisava tirar suas vidas em nome da medicina. Raptava bebês, pessoas saudáveis, pessoas doentes, brancas, pretas... Levava-as para seu sobrado em um ilustre bairro da cidade, onde havia instalado um laboratório de pesquisas científicas. Um dia a polícia invadiu seu reduto, pois recebeu uma denúncia anônima de um forte mal cheiro nas imediações. Encontraram um cemitério clandestino por toda a extensão do terreno externo a sua residência. O seqüestrador ludibriou o poder e conseguiu fugir, levando suas pesquisas num pen-drive. Trocou suas roupas com um morador de rua, e entrou numa favela. Logo foi adotado por uma mulher que o viu e se apaixonou. Logo estava infiltrado e virou o cabeça de uma quadrilha que praticava crimes hediondos, como seqüestros. Continuou estudando medicina, mas para sobreviver, adequou seu vocabulário ao da comunidade, logo, também, conheceu novas cobaias. As escolhia por merecimento.

Uma vez escolheu uma vítima assim: Um rapaz lindo de um metro e noventa e dois centímetros de altura, revelou-se totalmente desequilibrado, confessando-se ao seu algoz: O senhor já viu uma coisa dessas? Eu, depois de um desfile para a Grife Armani, chegando no meu apartamento em Nova York, cansado e, com sede, fui até a cozinha procurar algo para beber na geladeira e, quem sabe, algo bem leve para comer, pois já era madrugada. Escolho minuciosamente meu cardápio. Com um vidro de água na mão esquerda, porque sou canhoto, e um sanduíche natural nas mãos. Viro-me e o que vejo atrás de mim? Um monstro, com seis olhos no lugar dos botões, abrindo a boca (o forno) cheia de fogo e de dentes, levantando a tampa, como uma grande asa, rosnando e pronto para me atacar, ele queria me comer, meu fogão. Largo tudo e saio correndo para o quarto, com ele atrás de mim fazendo um barulho infernal de aparelho de metal grande sendo arrastado, transportado, empurrado, e gritando meu nome: Sant’tanna!!! . O recinto tem um sistema de segurança permitindo a mim entrar e acionar um botão que trava as portas. Meu quarto vira um cofre. De lá acionei a polícia, dizendo estar sendo ameaçado. A polícia entrou lá, ligou para meu celular e pediu para eu sair, um policial riu da minha cara , dizendo que eu era um veado cheirador, e só não ia me prender por uso de drogas, porque eu era um sujeito conhecido e respeitável, até lá nos States há corrupção; Ainda pediu mil dólares para me aliviar. Eu o paguei, pois estava atônito porque minha preocupação era o fogão. Onde estaria ele? Pedi para o policial me escoltar até a cozinha e vi o fogão parado no mesmo lugar de sempre. Arrumei minhas malas e fui dormir num hotel. No dia seguinte doei todos os meus móveis para uma instituição de caridade, inclusive o fogão. Nem pensei em destruí-lo e na possibilidade de atacar outras pessoas. Espero que seja de grande serventia e que só tenha raiva de mim por alguma ofensa causada a ele, da qual não tenho a mínima ciência. E redecorei a casa, já não era sem tempo, mas a cozinha ficou até sem microondas. Sei lá, vai que queira me trucidar também... Merecia morrer!!!

Sua mulher é inteligente, mas com pouca instrução, gostou dela porque tinha suas peculiaridades. Imaginem que ela, conseguiu, aos dez anos de idade uma câmera digital, fruto de um roubo feito a uma casa nas imediações de onde morava, foi seu tio quem a adquiriu e a deu de presente para a amada menina. Desde então, todos os dias, tira fotos do próprio rosto, para acompanhar seu processo de evolução e envelhecimento. É obcecada por sua linda tez, esse ritual diário não esconde de ninguém. Hoje, uma mulher, prefere usar a câmera de seu sofisticado celular. Semanalmente, grava as imagens em CD. Já prometeu a si mesma contar todas as futuras rugas.

LYGIA VICTORIA
Enviado por LYGIA VICTORIA em 03/08/2009
Código do texto: T1734895
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