Era uma vez...
Atordoada era pouco para definir como Daniela se sentia. Estava grávida e não sabia quem era o pai. Tinha 14 anos, era bonita, mas profundamente infeliz.
Desde muito pequena, vivia num prostíbulo na “Boca do Lixo” em São Paulo, não sabe onde está sua família, nem se tem uma. Em suas remotas lembranças, vê uma mulher que estava sempre ao seu lado e uma boneca de cabelos louros, apenas isso. A partir daí, todas as lembranças são ruins, o primeiro estupro, um homem apertava sua boca e a machucava. A primeira surra que levou de duas outras meninas, uma de 10, outra de 11 anos, afinal, Daniela com apenas 4 seria a mais nova atração do local, os clientes deixariam as duas de lado. Com o tempo não mudou muita coisa, a violência constante, e homens, muitos homens.
Daniela (nem sabia com certeza se esse era seu verdadeiro nome) não freqüentava uma escola, aliás, nunca botou os pés em uma. Aprendeu a escrever seu nome e a ler porque uma velha prostituta lhe ensinara. Também aprendeu muitas outras coisas, como enganar os clientes, beber sem ficar bêbada, a fazer sexo e demonstrar prazer, sem na verdade senti-lo. Fumava e cheirava cocaína, isso sim lhe dava prazer, cada vez mais passageiro, mas era tão necessário quanto respirar. Era sua fuga daquela abominável realidade.
Era uma noite de sexta, a casa estava fervendo, Dany (como era chamada), dançava em cima do “queijo”, e muitos homens atiravam dinheiro para ela. Achava divertido. Sentia prazer em ser admirada e desejada. Terminou seu número e encaminhou-se para o salão a procura de um cliente. Aproximou-se de dois homens que estavam numa mesa e perguntou se queriam companhia, eles prontamente disseram que sim. Ela sentou-se e começou o joguinho de “fingir beber”, eles caíram. Pouco tempo depois já estavam bem soltinhos. Enquanto fingia que tomava a cerveja, Dany passou os olhos pelo salão, suas amigas estavam alegres, com clientes também. Num canto, avistou um casal, nada fora do comum, alguns casais freqüentam prostíbulos. Mas ela percebeu que era observada, a mulher não lhe tirava os olhos de cima.
Dany levou um dos rapazes para seu quarto. Era um cômodo pequeno, com paredes mal pintadas e uma cama que fazia barulho. O programa era pago adiantado. E depois do serviço terminado, o homem estava sonolento (além de bêbado), ela se aproveitou e tirou mais uns trocados de sua carteira. De volta ao salão, percebeu que o outro possível cliente já estava beijando a mesa, dali não sairia mais nada. Então procurou com os olhos o casal que estava sentado num canto, quem sabe com eles… Infelizmente já não estavam lá. Então ela se aproximou de outro sujeito e continuou a lida de sempre, noite a fora…
Alguns dias depois, Dany estava no salão com um cliente, quando avistou o casal da outra noite, a mulher continuava olhando para ela. Então pensou um pouco e levantou-se, indo em direção a eles. Perguntou se queriam companhia, disseram que sim. Ela sorriu e sentou-se já imaginando suas intenções. Depois de conversarem um pouco, suas suspeitas foram confirmadas, os dois queriam viver experiências novas, e Dany foi a escolhida. Por isso a observaram tanto. Os três começaram a se relacionar ali mesmo, no quarto dela dentro do prostíbulo, mas pouco tempo depois, ela já os atendia fora dali, primeiro em motéis, depois, após ganhar a confiança deles, os encontros passaram a acontecer na casa do casal.
Não demorou muito para estarem completamente envolvidos. O homem sentia muito ciúmes por Dany atender outras pessoas. Começaram as brigas. A mulher tentava amenizar as discussões, não queria por um fim no relacionamento dos três. O casal propôs a Dany abandonar o prostíbulo e viver com eles, mas a garota sabia que isso não seria fácil, seu cafetão não gostaria nada, nada de sua saída. Apesar do perigo que enfrentaria, resolveu arriscar, sentia algo muito forte pelos dois, como nunca antes havia sentido. Na noite anterior a sua fuga, Dany recorreu a sua “viagem”, precisava se tranqüilizar.
No dia seguinte, ela avisou ao Louro (o cafetão), que tinha um programa agendado com o casal, sairia dentro de uma hora pra atendê-los. Louro sorriu e falou: “Pode ir, faça bem o seu trabalho, e volte com minha grana”. Saiu da sala com um cigarro entre os dedos e tossindo como de costume. Então ela foi ao quarto, pegou sua bolsa, olhou para aquele compartimento tão feio que foi seu desde que chegou àquele lugar e pensou: “Finalmente me libertarei dessa vida maldita para sempre!”. Saiu do quarto.
Mal podia esperar para alcançar a porta de saída, mas antes de alcançá-la, sentiu um puxão nos cabelos, e um grito do Louro: “Pensa que vai se livrar de mim assim tão fácil?” Ele estava enlouquecido, batia nela sem piedade. Depois de ser jogada dentro do quarto novamente, Louro avisou que estava sabendo de seus planos, que ela não tentasse fugir novamente porque teria morte certa. E a trancou. Dany se desesperou, pegou o celular e ligou para o casal avisando que não poderia ir, inventou uma desculpa, pediu que eles não a procurassem por uns dias, pois estaria ocupada. Temia por suas vidas.
Sentada na cama, passou a mão em seu ventre e teve medo pelo filho que esperava. Precisava fugir, pelo bem dele, não podia e não queria criá-lo vivendo naquela situação. Dany ligou para seus cúmplices amorosos e marcou outra fuga, dessa vez tinha que dar certo. Obviamente não falaria nada para sua amiga traiçoeira que havia contado tudo para o Louro.
Dias depois, já recuperada da surra, ela conseguiu sair pela porta dos fundos sorrateiramente. O casal esperava por ela há algumas quadras dali. De repente, um carro parou ao seu lado, era o Louro, furioso, pegou-a pelo braço e a empurrou para dentro do veículo saindo a toda velocidade. Depois de perceber que estavam se afastando da cidade, ela perguntou para onde ele a estava levando. O que faria com ela? Mas ele se mantinha calado, no rosto, sinais de ódio estavam evidentes.
Chegaram num lugar onde não havia casas, só mato. Ele mandou que Dany saísse do carro. Ela obedeceu. Naquele momento, só pedia a Deus para ter uma morte rápida, pois tinha certeza que Louro a mataria. Quando olhou para ele, viu um revólver em suas mãos apontado para ela. Dany fechou os olhos.
Era uma vez a inocência ultrajada pela morte em vida.
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