Lembranças - Parte 1
O Pálio esverdeado seguia pela comprida rodovia...
Herbert já estava na estrada a cerca de quatro horas, mas enfim parecia que estava finalizando mais uma das viagens a negócios. Logo estaria em casa em companhia de uma esposa mal humorada e um prato de janta, mais tarde veria um pouco de TV antes de cair na cama e tudo se apagar. Pela manhã acordaria pelas seis e meia da manhã e em menos de uma hora estaria na sua posição de sócio, ou puxa saco como o chamavam os menos íntimos a ele...
Perguntado por um maluco qualquer da empresa sobre que título daria a sua vida, respondeu simplesmente: “a vida depois dos quarenta”. Se a transformasse em texto essa teria um início do tipo: sempre houve bons momentos em minha vida, infelizmente houve meu casamento... Não tive filhos, por possuir uma esposa estéril e isso acabou contribuindo para um infeliz silêncio em nosso lar.
O relógio digital do rádio marcava cinco e quarenta da tarde, mas chegaria a casa no mínimo seis horas.
Ao longe já se iniciava o costumeiro crepúsculo alaranjado e... a frente do carro pensou ter visto passar um vulto rápido. Inclinou-se para frente e olhando para cima constatou que deveria ter sido sua imaginação ou o cansaço. Voltou à posição. O barulho vibrante dos pneus no asfalto; a paisagem a lhe passar rápida pelos olhos; a vista panorâmica que passa a surgir diante seus olhos... Todos os fins de tarde durante as viagens eram belos momentos reflexivos, apesar de sentir a cabeça vazia de quaisquer pensamentos, julgava refletir algo.
Um vulto veloz cruzou em seu caminho a cerca de três metros a frente do carro e ganhou as alturas. Herbert mal tivera tempo de desviar o volante ou prender o pé ao freio. O objeto não durou mais que um segundo a sua frente, mas fora real, com certeza. Fora real... Mas, o que era?
Olhou para o alto, dessa vez pondo a cabeça para fora da janela, mas não avistou nada, ah não ser o céu ganhando tonalidade azul escura – a noite chegava...
Dos oitenta por hora, o ponteiro do velocímetro subiu aos cem. Por algum motivo, o vulto pareceu-lhe ameaçador e queria estar longe daquela estrada o mais rápido possível, de preferência, antes que as sombras noturnas já cobrissem o caminho, mas tão de repente a noite chegou, é como se houvesse fechado os olhos por um tempo e os já tivessem aberto diante a obscuridade acima de tudo. Porém, o relógio não ultrapassava com seus números esverdeados mais que cinco horas e quarenta e cinco minutos, da tarde. Nunca houvera acontecimentos de tal natureza, nem mesmo no inverno, época em que Andares (essa era a cidade) ficava mais propícia a noites que chegavam mais rápido – e não estavam em inverno algum, mal começara o verão.
Continuou dirigindo enquanto remoia pensamentos temerosos e apesar de sentir um mau desempenho no automóvel, continuou. Mais meio quilômetro e o carro deu sinais de fraqueza, a velocidade começou a diminuir. Herbert passou a um estado de desespero, principalmente por sentir que havia algo ou alguém atrás de si – não a seguí-lo pela estrada, mas no banco traseiro, escondido pelas sombras do interior do veículo. Já não pensava, talvez estivesse seguindo com as mãos seguras ao volante e o pé preso ao acelerador, por mero instinto. Um instinto de sobrevivência.
O carro parou e por mais que batesse a chave à ignição este apenas roncava, mas não se movia. O desespero aumentou. Preso à noite. Preso ao que estava no banco de trás. Preso...
Por um instante hesitou quanto à idéia de sair do carro e ir andando até encontrar alguém seria o único modo de não acabar morto, mas antes que pudesse tomar uma decisão sentiu um movimento no banco traseiro, e apesar do medo virou-se para ver e não houve mais nada. Não houve mais ele, não houve mais carro, estrada, nem vulto. Somente escuridão e um fiasco de consciência, suficiente apenas para dar-lhe idéia de que ainda vivia, ou apenas de que estava semi-acordado.
Quanto à idéia de semi-sono, semimorto ou morto não saberia o que discutir, mas soube que estava inteiro e sozinho, quando acordou. Deteve-se o passo tentando acostumar os olhos á escuridão, apesar de estar nela momentos antes enquanto ficara desacordado. Depois de reanimado, ou como diria “100% apto”, procurou saber onde estava. Andou um pouco e sentiu-se bater em algo de madeira, a perna doeu, mas ignorou-a e continuou tateando as paredes de tinta grosseira e cheiro forte. Cheiro de tinta fresca. Ao longe, ouvia uma canção, parou a escutá-la. De um violino? Mas, não rondava o ar quando acordara. Concluiu.
Seguiu mais alguns passos e deteve-se, com as mãos, alisava um objeto plástico e quadrado a brotar da parede. Um cabo comprido, a qual sua mão não alcançara o fim, dera-lhe comprovação – um interruptor. Apertou o botão e suas pálpebras se contraíram. A luz nascia de uma lâmpada pendurara em um fio nas ripas do teto. Depois de acostumado à luminosidade, contornou com o olhar atento a parede, e sua superfície inconfundível e conhecida. Voltou-se aos móveis e não demorou a conhecer a mesa com tampo de granito e as cadeiras de aço, brancas e ainda novas, cobertas com plástico. A janela à esquerda da parede. O chão ainda de cimento e sem piso e o corredor levando para a sala, e lá estariam os quartos. Lembrava-se bem do ambiente. Seu lar, melhor, sua casa recém construída, momento em que ainda a considerava um ‘lar’.
Ouviu uma voz inquestionável feminina vindo na direção da sala, mais precisamente do quarto e apesar de ainda não entender o que se passava seguiu até lá. A luz do quarto se acendeu e antes de alcançá-lo viu-se a si mesmo, porém, quinze anos mais jovem. Vestia um short pequeno e quadriculado e uma camisa de botões. Levantava-se da cama e Lívia – sua esposa, também muitos anos mais jovem, mantinha o lençol sobre os seios enquanto apoiava-se num cotovelo e mantinha o olhar alarmado para a cozinha.
- tenho certeza que desliguei a luz da cozinha...
- sei... Assim, como tinha certeza de que fechou a janela semana passada?
- ainda vai implicar assim é?
- assim como teve certeza de que eu seria o homem certo de sua vida?
- e é – respondeu Lívia enquanto lhe deu um leve beijo – e sempre – outro beijo – sempre será.
- vou desligar a luz – disse ele.
Tudo se apagou enquanto mantinha-se próximo ao som do quarto. Assim como teve certeza de que eu seria o homem certo de sua vida? Pensou em qual fora a última vez que ouviu ou contribuiu com Lívia tais palavras apaixonadas. Qual parcela de porcentagem o amor entre os dois gastou até o dia em que se rompera de vez. Qual a última vez em que houvera sexo... Tudo se esquecera como palavras escritas num diário, cujo dono um dia morreu e o deixou num baú velho que depois de vasculhado teve maior parte de seus itens queimados...
Sentiu uma estranha sensação de frio e ao virar-se percebeu uma silhueta atrás de si. À luz do luar a penetrar pela sala verificou uma silhueta não humana a andar em quatro patas pela sala, a pele brilhava como um anfíbio e tinha um brilho amarelado a lhe escapar dos olhos. Rosnava baixo enquanto andando de um lado para o outro. Por acaso mirava-o ali na sala ou, como os outros também não podia vê-lo e sua visão se estendia ao casal deitado na cama na escuridão?
Continua...