Tribunal de Rancor
Um despertar doloroso que seguiu as longas horas de sono foi capaz de produzir um suspiro agudo que tomou conta de todo o ambiente. Todos os terríveis pesadelos que tivera sobre sua existência revelavam-se paradisíacos diante da situação real: a terrível sensação de estar preso enquanto sofre uma dor agonizante. O desconforto era tão forte que fez com que acordasse do sono mais profundo de sua vida. Seus olhos, nos quais sempre pôde confiar, nunca estiveram tão confusos. Tentou lançar um grito de socorro, mas, percebeu então que estava amordaçado.
Foi neste momento que se desesperou ainda mais e se contorceu o quanto pôde, o que resultou apenas numa dor ainda mais forte, que vinha de trás da região de seu umbigo, por dentro, e atravessava todas as suas tripas, terminando nas suas genitálias, onde mais o incomodava. Nesta tentativa falha de escapar, percebeu que tinha seus braços e mão amarrados uns aos outros.
Se não bastassem as sensações horríveis provocadas pelo tato, ainda lhe perturbava um som de gotas pingando que parecia ecoar por todo o local e o gosto nojento de sua boca, fazendo-lhe cogitar a hipótese de sua última refeição ter sido pura carniça.
Não estava tão perturbado pelo que via: uma escuridão azulada, quebrada apenas por um breve feixe de luz que entrava através de uma grade fechada e revelava alguns centímetros de um chão de areia. Então, decidiu olhar para baixo para tentar ver a condição de seu corpo e só conseguiu enxergar o pedaço pontiagudo em formato quase fálico que estava lhe empalando.
Seu olfato, quase sempre tido como um sentido secundário, agora lhe torturava ainda mais do que todos os outros. Pairava no ar um cheiro tão forte que ia do nariz até a alma e era estranhamente familiar. Sabia que já tinha sentido em vários momentos, mas estando como estava, não era capaz de pôr seus pensamentos em ordem para se lembrar do que era exatamente, mesmo que o odor quase lhe deixasse embriagado.
Todas essas sensações disfarçaram sua fome por várias horas, mas não foram tão eficazes com relação à sua sede, que era acentuada pela mordaça seca em sua boca. Os ruídos das gotas pingando ao redor não lhe deixavam esquecer do quanto precisava beber alguma coisa. Faria qualquer coisa, estaria disposto, inclusive, a permanecer eternamente naquela posição em troca de um copo d’água.
O vazio que se seguia sem nenhuma alteração, fazia com que ele chorasse. Logo, ficava exausto e parava, mas não conseguia dormir e chorava de novo. Pensava em tudo que já havia feito na vida e em quais ações poderiam tê-lo levado a estar ali. E no fim, chegou à conclusão de que tinha muitas acusações pelas quais poderia ser condenado.
Subitamente, seus ouvidos anunciaram algo diferente. Eram passos, morosos e pesados. Teve medo, um tão intenso que fez sua espinha gelar por cima da dor. Mas, ao mesmo tempo, ficou estranhamente alegre. A sua solidão já estava deixando-lhe completamente insano e precisava de alguém, ainda que provavelmente sendo a pessoa que lhe deixara ali, para manter a mente nos eixos.
Em alguns minutos, que pareceram durar uma eternidade, uma sombra surgia atrás das grades. Ela se aproximava e revelava uma silhueta alta e forte, da qual só se definiam os olhos. Eram verdes claros e ficaram ali, por momentos a fio, encarando-lhe sem piscar. A figura abriu a grade e caminhou de forma certeira na direção em que olhava. Apesar de estar amordaçado, o homem preso, totalmente vulnerável, tentou esboçar alguma palavra, mas, antes de conseguir, levou um murro no nariz, que fez um barulho oco de osso quebrando.
Quando a mordaça foi retirada da sua boca, tentou iniciar um diálogo pouco comum, com uma voz rouca e tremida:
- O que foi que…
Um forte estalo de osso se chocando com pele caracterizou o forte tapa que recebeu. Mal sentiu a dor física, mas foi tomado por uma forte humilhação.
- Sou eu quem deve perguntar. Sabe por que está aqui?
- Ah, você faz as perguntas? É bom haver um ótimo motivo pra isso, camarada, porque…
O barulho de tapa se repetia.
- Esse foi pela sua estupidez. É óbvio que sua mente deve estar cheia de perguntas das mais diversas, mas, parece ser ainda mais óbvio que você não está numa posição que lhe permita definir quem faz o quê, não concorda?
O agressor, que tinha uma voz grave e uma capacidade oratória excelente que lhe davam uma firmeza na dicção, pegou-lhe pelos queixos e repetiu, num tom severo:
- Não concorda?
- Está bem - respondia assustado.
- Pois bem, voltando à minha primeira pergunta, sabe por que está aqui?
- Não faço a menor ideia. Não negaria dinheiro ou nenhum bem de família que possa interessar os bandidos, a máfia, o seja lá pra quem você trabalha.
- Trabalho? – uma leve risada unia-se às suas falas – Você deve estar brincando se acha que algum trabalho envolve as coisas que estão acontecendo com você. A máfia simplesmente mata, ou, dá um belo susto para achar meios de conseguir o que quer. Os bandidos roubam, não perdem tempo torturando suas vítimas. Agora, isso que lhe foi feito não foi para matar ou assustar. Foi simplesmente para lhe machucar. Sendo assim, eu repito a questão: Sabe por que está aqui?
- Já disse: não!
- Uma de duas: ou está mentindo descaradamente para tentar se safar, seja de mim ou de sua própria consciência, ou ainda não sabe qual dos crimes que cometeu lhe fizeram vir até aqui. Seja sincero comigo e com você mesmo, verme: nas entranhas de seu pensamento, já existe uma boa idéia do que te trouxe até este lugar.
Após um profundo silêncio, infestado de meditações passageiras, ele respondia:
- Sou inocente!
- Inocente uma ova. Você pode ter sido inocentado por um sistema de leis. Um tão sujo, feito para proteger fidalgos monstruosos como você. Essas leis que nunca deveriam ter a credibilidade que têm. Essa justiça maldita que, como citava Decimus, poupa os corvos e persegue as pombas. Mas será você que pode olhar para dentro de si mesmo, demônio, e se considerar inocente?
- Você entendeu tudo errado. Aqueles foram enganos, todas as evidências apontam que…
- Evidências que seus advogados e comparsas forjaram para salvar seu couro. Acredite, eu sei. Desde o primeiro incidente seu do qual a mídia tomou conhecimento, garanto, sei tudo sobre você: seus contatos, suas artimanhas. E sei ainda mais sobre seus crimes violentos: as preferências, o modus operandi, tudo.
- Olha – dizia enquanto percebia que aquele cheiro horrível que sentira ao acordar estava ainda mais forte - você deve estar louco…
- Cale a boca! Um pouco louco, sim. Afinal, é preciso ter uma coragem que vai muito além da sensatez para perseguir um ser como você. Mas loucura não é o termo certo. Acho que estamos falando de obsessão. Sim, uma coisa particular entre nós dois. Por que diabos resolveu entrar na minha vida, justo na minha?
- Eu já disse, você está fora de si e…
- Pare com esses joguinhos, por favor! Ambos sabemos que você é culpado de tudo que fora acusado nos tribunais ignorantes que lhe permitiram sair. E saiba, cretino, que diferente do que você diz, eu nunca estive tão dentro de mim quanto neste momento. Finalmente criei coragem para realizar meu mais profundo desejo. Aliás, tenho até medo de que minha vida perca o sentido quando eu tiver terminado aqui.
- Está bem. Eu admito – começava a chorar como uma criança longe dos peitos da mãe, até recompor-se e juntar novamente as palavras – só que quero saber, e já – começava a mostrar um ar indignado – quem você pensa que é pra me colocar aqui? Acha que é o guardião da justiça, a dita correta e imparcial? Pra mim você parece muito mais um justiceiro egocêntrico que se considera dono de uma verdade absoluta que nem existe.
Terminada a frase, o acusador que ficou toda a conversa de pé na mesma posição, quase caiu de costas com uma gargalhada alta que corria doída por todas as partes do ouvido.
- Verdade absoluta? Isso não tem nada a ver com crenças e juízos. Isso é puro rancor! Não pense que sou hipócrita ao ponto de me achar no direito de lhe julgar. Pelo contrário: lhe julgo sabendo que não tenho este direito. Afinal, magistrados o fazem para todas as questões dúbias do mundo, por que eu não poderia fazê-lo para resolver apenas esta, que tanto me interessa?
- Sua voz me enoja, porque suas palavras são sujas o suficiente para fazer com que ela apodreça. Quem é você, que se julga tão interessado em mim?
- Veja só, não é que você acabou por fazer as perguntas mais importantes da conversa? Parece que tudo ocorreu da forma certa.
O agressor e acusador caminhava em passos ligeiros até a grade. Quando chegou na parte em que a meia-luz conseguia exibir alguns traços toscos, o outro pôde notar que ele usava um sobretudo aparentemente marrom, sem detalhes visíveis e calça da mesma cor. Um dos braços vestidos na jaqueta levantou-se, destacando uma luva de couro preta que acompanhou a mão esquerda até um interruptor.
A luz, que se dissipou por cada centímetro do lugar, revelou aos olhos do acusado a mais terrível das lembranças de sua vida. Centenas de fotografias de uma garota loira de pele clara, nariz pontiagudo e boca sorridente. Destacando-se entre as demais características, todos os retratos exibiam uma insistente expressão serena, vinda dos olhos tão verdes quanto aqueles que apareceram outrora nas sombras.
O cérebro danificado do incapacitado criminoso já havia bloqueado aquelas memórias por muitos anos, para poupar-lhe d remorso e da dor interna. Mas aquelas imagens traziam-lhe um sentimento de asco, o mesmo que pegava de todas as suas vítimas depois de seus crimes.
- Não se espante, desgraçado! – exigia a voz dominante do promotor da vingança, que caminhou até ficar entre o seu réu e as fotografias, revelando um homem de aparência madura, barba por fazer, orelhas pontudas e traços que lembravam muito os da garota retratada. No entanto, sem nada de sorridente ou sereno – Era lógico que dia ou outro você teria que se deparar com ela de novo. Mas espere, porque o melhor ainda está por vir.
Após parar de falar, girou em meia volta a corda em que o outro estava amarrado, mostrando fotos da mesma garota, mas, de um ângulo muito diferente. Eram cópias de fotografias de jornais e revistas que mostravam a garota com a pele totalmente dilacerada e rosto mutilado. Várias manchetes de jornais, tamanhos e letras diferentes intitulavam a obra prima do horror que era exibida.
- Este, seu miserável, é o motivo de você estar aqui. E você, covarde, querendo esquecê-lo. Já imaginou? Tudo ficaria sem coerência alguma, tanto pra mim quanto pra você. Teria sido frustrante. Agora que você já sabe, eu posso ir embora.
Após vários instantes de um silêncio atormentador, o acusado, que já havia assumido a sentença de culpa, resolveu se pronunciar novamente.
- Vai me deixar aqui, não é mesmo? Ela era sua filha, sua irmã? Não importa. – voltava a chorar - No estado em que estou, sei que não demoro pra morrer. Mas espero que você consiga ainda me perdoar, pro seu próprio bem. E espero também que tenha uma boa vida, afastada das coisas horríveis que acabou de fazer comigo e…
- Eu ainda não acabei. Fique sabendo que eu nunca vou te perdoar e, inclusive, espero que um dia Deus possa me perdoar pelo que eu ainda vou fazer com você.
O agora juiz, impiedoso, colocava uma mão em cada bolso. Do esquerdo, tirou um isqueiro dourado brilhante com detalhes em alto relevo que formavam o desenho de um cachimbo fumegante. Do direito tirou um cigarro. Enquanto acendia, ouviu sem dar muita bola para o que o outro começava a dizer.
- Esse hábito auto-destrutivo não vai ajudar em nada. Deveria parar de uma vez com…
- Eu não fumo. Nunca fumei e nem pretendo. O problema é que não consegui encontrar fósforos no caminho e certamente não vou jogar fora esse isqueiro tão caro.
- NÃO! – agora sua mente conseguia fazer as associações certas para revelar do que era o cheiro que tanto lhe incomodava: gasolina. E era essa mesma substância que pingava pelos cantos do local - você não está querendo dizer que vai me…
- Queimar? Não torne tudo tão simples. Digamos que eu quero apagar da minha cabeça tudo de ruim que a respeito dessa garotinha. E você está incluído neste pacote. É evidente que você era especial, por isso todo esse tratamento antes do ponto final. Pois bem, não quero mais perder tempo.
O criminoso imobilizado nada pôde fazer a não ser berrar incessantemente enquanto sua companhia saía lentamente através da grade e jogava de ponta o cigarro que, naquela altura, já estava pela metade. Não havia dúvidas: era culpado.