A partida
O sol escorria preguiçoso pelo telhado do casarão, criando uma sensação monótona de embriaguez diante dos olhos, ainda dormentes, de quem se aventurava a abandonar o conforto e a proteção das casas aquecidas pelo calor envolvente das velhas lareiras naquela doce manhã de primavera. Aquilo tudo lhe trazia, maldosamente, amargas lembranças que insistiam em torturar seu coração e dilacerar sua alma, diante dos infortúnios que pareciam estar ainda vivos na memória, apesar de insistentemente tentar esquecê-los.
Ao longe, ouvia-se a movimentação no cais dos estivadores e marujos embriagados preparando-se para partirem para o velho mundo em busca de mórbidas aventuras pelos mares bravios que os levariam intrepidamente para o distante continente europeu.
Com a roupa amarrotada e a barba por fazer, caminhou trôpego em direção a um enorme espelho, emoldurado a um canto da sala, onde pode ver, então, apenas a imagem de um trógio moribundo que em nada se assemelhava ao prepotente e arrogante cavalheiro de alguns anos atrás.
Com a alma destruída, juntou as rotas malas e partiu. Parecia naquele instante ser o mais infame dos amaldiçoados sobre a face da terra. Sentiu-se condenado sumariamente pelas garras afiadas do passado, que remoíam seus pensamentos como se tivessem o prazer de querer açoitar-lhe impiedosamente, fazendo verter, através das feridas abertas pelos golpes insanos da consciência, o sangue impuro daquele desprezível pecador.
Do lado de fora, postou-se diante do casarão que durante décadas pertencera a sua família e só então se deu conta de que ninguém chorava a sua partida, a não ser os fantasmas do passado, que vagavam morfeticamente desnorteados e maltrapilhos pelos cômodos vazios e úmidos da velha casa, sucumbindo diante de inevitável abandono.
Longe dali ouvia-se, quase que sumido, um sino que badalava solitário chamando os fiéis para orarem sobre a incerteza de seus destinos. Na verdade não lhes cabia direito algum, pois estavam presos a eterna tirania de seus poderosos senhores.
Lembrou-se então que era manhã de domingo. Não havia mais motivos para adiar a despedida. Não havia mais a necessidade de prolongar a provação do amargo fel do martírio, que parecia rasgar as suas entranhas, a ponto de deixar a sua vida sustentada apenas pela instabilidade de um fio prestes a romper-se diante de um precipício habitado apenas por demônios, que infestavam o escárnio profano do umbral.
Tudo ali agora estava deserto. Na noite anterior todos haviam partido. Parecia ouvir ainda o choro desesperado de sua mãe, que caminhava com dificuldades, amparada pelos braços frágeis de suas irmãs, que ainda não haviam assimilado o duro golpe da perda imatura do pai que, dias antes, num ato de desespero, resolveu colocar fim a própria vida.
Caminhou indeciso pelas ruas de cascalhos e, lá do alto, com os olhos marejados, voltou-se instintivamente e observou pela última vez o casarão, que ficou preso para sempre a um passado distante e cinzento, apagando-se definitivamente de suas vidas.