A herança
Era um sujeito de famigerada impaciência com repórteres o reitor, mais ainda se fossem novatos. Vivia recluso, despachava da mansão, não se deixava filmar ou fotografar e apenas pronunciava-se publicamente em ocasiões especiais — como agora, durante a cansativa polêmica sobre mudança de critérios pedagógicos na universidade. Chegava a ser curioso — e só então me dava conta desse pormenor — que se conhecesse tão pouco de figura tão eminente.
Cerquei-me de cautelosa etiqueta para entrar no gabinete. Devo ter pedido licença umas três vezes. Ao que respondeu com inquietante indiferença. Atravessei a porta e ele, da penumbra, ordenou-me, apontando com a mão direita, sentar numa cadeira a metro e meio de distância. Não me encarou. Em vez disso, fitava tal qual estátua um porta-retratos sobre a espessa mesa de mogno.
Antes mesmo que eu fizesse a primeira pergunta, seus olhos opacos começaram a percorrer a estante repleta de livros, dos mais variados assuntos, nos mais improváveis idiomas. Suspirou brevemente e, para minha surpresa, abandonou o ar circunspecto e pôs-se a filosofar:
— Sabe? Nenhum desses livros tem a resposta que procuro. Nenhum deles pode resolver meu problema. O tempo não retrocede. Alguns erros são corrigíveis. Outros, lições que nos farão refletir no sentido das coisas pelo resto da vida. Hoje faz dez anos de saudade. Dez anos sem ele... — disse, mirando novamente a fotografia.
Percebi que havia algo errado com o intelectual. Seu estado de perturbação ia ao ponto de querer desabafar com um estranho. Pensei que os livros não são confidentes suficientemente acolhedores.
Achei melhor ouvi-lo. Não queria, logo no início de carreira, ficar à mercê da formidável ironia do reitor, o que me poderia trazer traumas indeléveis. Ele prosseguiu na autocomiseração.
— Meu filho nadava tão bem! Ganhou tantas medalhas na escola! Mas, naquele dia... Foi culpa minha, eu sei. Certas coisas nunca mudam. Lutei contra nossa maldição, mas minha fraqueza vitimou meu menino... — lamentou-se o sexagenário, já engolindo as sílabas e se debulhando em lágrimas.
Tomei coragem e intervim:
— O que houve? Seu filho faleceu? Sei que não é muito apropriado dar conselhos numa hora tão difícil, mas o senhor não deveria se culpar tanto. Tente se acalmar.
O homem pareceu acordar de um transe ao ouvir minhas palavras de conforto. Era como se só naquele momento tivesse me notado. Trocou a surpreendente fragilidade por uma irascível altivez.
— Me acalmar? Ora, você sabe o que aconteceu? Não sabe? Pois vou lhe contar – esbravejou, socando a mesa com a mão, como se usasse um martelo. — Há dez anos vi meu filho, bêbado, morrer naquela piscina pela qual você passou, ali fora. Afogou-se o rapaz, um pouco mais velho do que você é hoje. Vi quando a água começou a engolfá-lo. Vi quando as primeiras gotas se espraiaram por seus pulmões. Vi quando desfaleceu.
Fez uma pausa, para amansar o coração.
— Permaneci inerte na borda, o desespero a me possuir. Gritei por socorro, mas ninguém havia em casa. Foi uma luta tão inglória para afastá-lo do álcool. Uma guerra que perdi. Tão jovem, tão jovem... Ele estava embriagado, perdeu o controle da situação. Por que entrou na piscina? Por quê? Foi culpa minha.
Àquela altura, eu tinha a impressão de que o reitor principiava a formular pensamentos desconexos. Numa atitude intempestiva, tentei trazê-lo de volta à razão. Eu me arrependeria depois.
— Afinal de contas... Se seu filho estava alcoolizado e se afogando na piscina, por que o senhor não o salvou, em vez de apenas se lamentar?
Só então, revelou-se a limitação de meu interlocutor. Saindo de trás da indevassável mesa, empurrou, com alguma dificuldade, a cadeira de rodas à qual estava preso. E respondeu-me, laconicamente:
— Não o salvei porque não podia. Quem me dera se, há 15 anos, não tivesse sofrido aquele acidente de carro. Se eu não tivesse o hábito de encher a cara e depois dirigir, talvez hoje meu garoto estivesse comigo. Quem me dera poder voltar o tempo, jovem! Mas você ainda vai aprender que certos equívocos nos fazem expiar culpas eternas...